30 março 2012

VISITA GUIADA À ARQUITECTURA DO FERRO – 1.º dia

    A arquitectura do ferro, uma arquitectura tipicamente funcional, feita por engenheiros que, a partir de finais do século XVIII, começaram a utilizar plenamente o ferro como elemento resistente das construções, chegou a Coimbra na segunda metade do século XIX.

    Coimbra não tem nenhuma obra com a assinatura de Gustave Eiffel, como acontece com o Porto e Viana do Castelo, mas não deixa de ter, ainda hoje, alguns interessantes exemplares daquela arquitectura, apesar de outros terem desaparecido há já alguns anos.

    Começamos aqui a visita, no início da rua Figueira da Foz, neste local ermo e desinteressante, onde uma tabuleta anuncia PARQUE PRIVATIVO e onde, durante o dia, estacionam carros, supostamente a gasolina ou gasoil. Curiosamente, de 1929 a 1973 era este o local onde, durante a noite, estacionavam os carros eléctricos. Já poucos indícios restam da denominada Recolha do Gaz, a não ser nos degradados edifícios da portaria, onde tanto a cor como a cancela de ferro como ainda um emblema dos Serviços Municipalizados nos remetem para a anterior utilização deste espaço.

    Mas os eléctricos não ficavam ao relento, como hoje ficam aqui os automóveis. Cobriam-nos os telhados de duas naves que suponho que fossem de estrutura metálica, as quais terão substituído outras existentes no mesmo local ou, quem sabe, terão sido reconstruídas a partir delas. Em relação às mais antigas, construídas há quase 160 anos, sabe-se que eram metálicas e tenho para mim que terão sido um dos primeiros exemplares (se, não mesmo, o primeiro) da arquitectura do ferro em Coimbra. Contemos a sua história:

    Até 27 de Novembro de 1836, Coimbra não tinha iluminação pública e cada um que tratasse de se alumiar, se quisesse andar de noite na rua. A partir daquela data, Coimbra passou a ser alumiada a candeeiros de azeite, que consumiam o azeite de pior qualidade e, também, óleo de peixe. Até que apareceu um súbdito inglês – Hardy Hislop de seu nome – que, sendo já concessionário de uma instalação idêntica no Porto, se propôs construir em Coimbra uma Fábrica de Gás (ou gasómetro, como aparece referido em várias actas da Câmara) e uma rede de iluminação pública. A fábrica produziria o gás a partir do carvão, o qual, aquecido a 1000 ºC numa retorta fechada, se decomporia numa mistura combustível de monóxido de carbono e metano [1]. Vide a chaminé da fábrica e os pavilhões que a ladeavam – as tais naves do tempo da arquitectura do ferro – neste interessante postal de Coimbra, cujo ângulo de visão não é nada frequente.

    Depois de vários atrasos nas obras (ontem como hoje…) a iluminação foi inaugurada a 1 de Outubro de 1856, ficando a exploração sob a responsabilidade da, entretanto formada, Companhia Conimbricense de iluminação a gaz. Nada sabemos da qualidade que a iluminação teria nessa altura mas, 50 anos mais tarde, já com a rede completa, conta-nos António José Soares [2] que Coimbra tinha a melhor iluminação pública do país, chegando a recear-se que tanta luz pudesse afectar o romantismo das serenatas e, até, vir a acabar com elas...

    Como mergulhámos já no séc. XIX, sugiro que nos situemos agora em 1875, sigamos a pé até à Casa do Sal e nos dirijamos depois para o Mondego, onde encontraremos algumas barcas serranas na faina de descarregar o sal vindo da Figueira da Foz. Será uma dessas barcas que nos vai levar aos outros locais que, ainda hoje, iremos visitar.

        Entrados que estamos na barca, sigamos pelo rio para junto da mais antiga das pontes de ferro de Coimbra – a ponte ferroviária da linha do Norte sobre o Mondego – que foi construída em 1864. Esta ponte há-de durar, pelo menos, até ao século XXI, ainda que tenha de vir a ser reforçada quando aumentarem a velocidade da linha do Norte e lhe começarem a passar por cima os comboios do futuro – os Alfa pendulares…

    É em cima desta ponte que os viajantes costumam captar a primeira imagem de Coimbra ao chegar do Sul, já com o comboio muito perto da estação. Será recordando esta visão que Francisco de Ataíde Machado de Faria e Maia, vindo dos Açores em 1896 estudar para Coimbra, escreverá nas suas memórias [3]: Numa nêsga do rio Mondego, entre choupos e salgueiros no primeiro plano, abria-se límpida e fresca aguarela: – a água transparente, serpenteando em regatos nos meandros da areia fina; silhuetas fugitivas de lavadeiras, batendo roupa; um barco subindo à sirga, retesando-se os membros dos condutores no esforço da tracção violenta, e, ao fundo, num monte, a cidade, Coimbra, branca, lavada, banhada de sol matutino, subindo em socalcos para a Universidade que sobre ela levantava a sua Torre quadrada, numa atitude dominadora de Castelo feudal, sobre o burgo vassalo e submisso.
Momentos depois o comboio entrava na estação.

    Deixemos agora o romantismo do Choupal e subamos o rio até perto da zona [4] onde sempre ele foi atravessado, desde que há registos de pontes na cidade.

    8 de Maio de 1875! O alvoroço é grande. Pudera! Estamos no dia em que se procede à inauguração de mais uma ponte metálica, a qual veio substituir a Ponte do O, que, devido ao assoreamento do rio,  já mal permitia a passagem das barcas debaixo dos seus arcos. É a esta ponte que os vindouros hão-de chamar a velha Ponte de Santa Clara. Os carros passam na zona central entre as vigas reticuladas, como se circulassem dentro de uma gaiola, enquanto os peões se deslocam em corredores situados do lado de fora da estrutura principal. O seu custo total, ainda não calculado a esta data, será de 101:730$695, incluindo o custo de demolição da Ponte do O e a construção dos acessos do lado de santa Clara.

    A ponte ficou barata – por isso mesmo se recorreu à arquitectura do ferro – mas muitos a achavam feia e pouco digna para aquele local [5]: Contudo, o Mondego e Coimbra mereciam de certo mais e melhor do que se fez. Embora houvesse de dobrar-se a despesa, uma ponte de pedra elegante e de  estylo romano, como aquella que ha poucos annos se concluiu sobre o rio Cavado, perto de Braga, ou uma ponte de estylo gothico florido, como a de Rialto em Veneza, era o que mais conviria ao sitio afamado do Mondego em frente a Coimbra.
    Aproveitemos agora para sair da barca e matar a fome numa qualquer casa de pasto ali para os lados da praça velha, onde as regateiras já não mercadeiam desde que, há oito anos, passaram para a nova praça – o mercado D. Pedro V, que visitaremos no próximo dia.

    Terminado o repasto, voltemos ao largo da Portagem, subamos um pouco a Couraça da Estrela e viajemos no tempo até aos inícios do século XX, para assistirmos à construção do novo paredão que, roubando terreno ao rio, criará condições para a passagem do caminho-de-ferro e para a construção do Parque da Cidade. Fácil será perceber que irá sobrar um tramo da ponte, por sinal, o mais comprido [6]... Irá ele para a sucata? Será reaproveitado? Vamos encontrá-lo no fim da visita. Mas a parte que agora ficar de pé não durará mais que meio século. Será desmantelada em 1954 para dar lugar à nova Ponte de Santa Clara, que durará, pelo menos, até ao século XXI.

    Seguimos agora rio acima, afastando-nos cada vez mais dos limites da cidade, que há muito ficou para trás. O vento está de feição e em breve chegamos à Portela, junto à foz do Ceira. Acostamos a barca e acenamos às lavadeiras que aqui vêm lavar e corar a roupa, aproveitando o branco areal desta zona do rio. Alguma dessa roupa regressará a Coimbra numa barca serrana igual à nossa.

    Mas é hora de voltar ao século XXI, é hora de voltar a 2012!

    Entremos agora na segunda ponte metálica mais antiga de Coimbra – a ponte rodoviária da Portela, a qual podemos visitar a pé, pois que, ainda que abandonada à sua sorte, não aparenta ruína. Inaugurada em 13 de Julho de 1873, foi há poucos anos fechada ao trânsito. Nesse intervalo de tempo, assegurou a ligação entre Coimbra e o interior, através da estrada da Beira, uma estrada que, de acordo com o Guia de Portugal, ostentava em 1940 o n.º 9, o que atesta bem a sua antiguidade. Está hoje à espera que apodreça e caia de vez ao rio. Uma ponte centenária, que nem é feia, a merecer melhor sorte num Portugal que pouca liga aos mais velhos!...

    Olhando para montante do rio, vemos lá no alto a ponte ferroviária do ramal da Lousã – ponte das Carvalhosas – que tem a idade daquele ramal, o qual foi inaugurado a 16 de Dezembro de 1906. Está hoje de cara bem lavada, quase pronta a receber os comboios que se diz que hão-de voltar a passar… só não se sabe quando! Quase pronta, escrevi eu. É que as travessas e os carris já se foram embora e ninguém os substituiu! Não recomendo que vão lá acima ver (é perigoso!). A fotografia diz tudo.

    Mas não vamos acabar a visita de hoje sem dar um salto ali ao lado, à estrada da Conraria, para ver um bom exemplo de reutilização, que me traz à memória o que dizia Lavoisier: na natureza nada se perde nem nada se cria… tudo se transforma. Aquela ponte metálica sobre o Ceira, pintadinha dum verde ecológico, com um gradeamento delicado que tão bem vai com o bucólico do rio… aquela ponte é, nem mais nem menos, o que sobrou da velha ponte de Santa Clara.



    Caros amigos, o dia foi muito longo e ainda temos mais arquitectura do ferro para visitar em Coimbra. Ficará o resto da visita para um segundo dia, em data a anunciar. Obrigado pela vossa atenção.

    Zé Veloso

Agradeço ao António Figueiredo, à Catarina Padez Duarte, ao João Baeta, ao Jorge Oliveira, ao Pedro Rodrigues Costa e ao Ricardo Figueiredo a disponibilização de elementos vários que permitiram compor este "post".

[1]  "Percursos Químicos - À procura da antiga Fábrica do Gás", http://percursosquimicos.blogspot.pt/2010/06/pq-cc-procura-da-antiga-fabrica-do-gas.html
[2]  "Saudades de Coimbra", Vol I, António José Soares, Edição Almedina, 1985
[3]  “A minha velha pasta: tempos de Coimbra e gente do meu tempo, 1896-1901”. Ponta Delgada: Tip. do "Diário dos Açores", 1937.
[4]  Todas a pontes vinham desembocar na portagem e todas foram construídas sobre os alicerces das anteriores. Apenas a actual ponte de Santa Clara (local assinalado no Google) foi construída ligeiramente a montante das anteriores.
[5]  "Escriptos Diversos", Augusto Filipe Simões, Imprensa da Universidade, 1888
[6]  Os tramos da ponte metálica eram desiguais por as fundações dos seus pilares terem aproveitado as fundações dos pilares da ponte de pedra anterior, sendo que cada tramo da ponte metálica correspondia a dois arcos da ponte de D. Manuel.  


09 março 2012

10 PONTES TEM COIMBRA!

Já por aqui escrevi que Coimbra deve uma boa parte da importância que ganhou, desde tempos muito antigos, ao facto de se localizar num ponto de passagem obrigatória para quem, pelo litoral, precisasse de se deslocar entre o Norte e o Sul da Península.

Não admira, por isso, que Coimbra seja hoje a terra portuguesa que mais pontes tem sobre o rio que a banha. Se Lisboa tem duas e o Porto tem seis, em Coimbra conto nada menos do que dez, compreendidas entre a A1 e a Portela.

Começando precisamente na Portela, logo aí existem três, separadas por poucos metros, o que, visto de longe, sugere uma complexa e intensa rede de tráfego! Puro engano. Só uma das três pontes funciona: a que hoje liga Coimbra à Estrada da Beira. Das outras duas… a ponte da linha da Lousã  –  Ponte das Carvalhosas   –   que tantos comboios carregou de um lado ao outro do rio desde 16/12/1906, está parada há vários anos, pacientemente à espera que lhe voltem a pôr em cima as travessas e os carris que em má hora foram levantados; e a velha ponte da Estrada da Beira, inaugurada em 13/07/1873, para ali ficou abandonada e a criar ferrugem, sem préstimo algum que não fosse o de ver passar os comboios na ponte ao lado… se os houvesse!

A quarta ponte a referir é uma ponte ferroviária que raramente observamos, pois que o normal é passar-lhe por cima, já de malas na mão; e se olhos há nessa altura… é para a Alta, que nos aparece, subitamente, no seu esplendor, mal o comboio entra sobre o rio. A ponte da Linha do Norte foi construída em 1864 e, embora tendo sido reforçada, ali continua a mostrar que “velhos são os trapos”.

Chegamos agora à Ponte de Santa Clara, a quinta deste itinerário, projecto de Edgar Cardoso, a qual foi aberta ao trânsito em 30/10/1954. Olhando a fotografia que mostra a ponte prestes a ser inaugurada e, à sua direita,  a velha ponte (também ela de Santa Clara), facilmente se percebe que estamos perante duas realidades completamente diferentes. A construção desta nova ponte alteou e alterou profundamente a fisionomia do Largo da Portagem e avenidas confinantes. A nova Ponte de Santa Clara, muito mais larga do que a anterior, respondia assim ao crescente aumento do tráfego rodoviário Norte-Sul, tráfego que, à época, atravessava a cidade, escoando-se pelas avenidas Emídio Navarro e  Fernão de Magalhães.

E porque aqui estamos, será altura de falar não apenas na velha ponte de Santa Clara – ponte metálica, em forma de gaiola, com um passeio pedonal de cada lado e apoiada em pilares de pedra, que foi aberta ao trânsito em 8/5/1875 – mas também em todas as que a precederam naquele local e que foram, pelo menos, três.

A primeira de que há indícios fortes, mas fracas notícias, seria uma ponte romana de pedra (ainda que haja igualmente referências a uma ponte de madeira; anterior a esta?).

Sobre as fundações da ponte romana, ou aproveitando muito mais do que essas fundações, construiu D. Afonso Henriques a partir de 1132 uma outra, conhecida como Ponte de D. Afonso Henriques, igualmente de pedra, cujas obras se continuaram por vários reinados. Mas, ou porque a construção fosse fraca ou porque o Mondego arrastasse na sua fúria de Inverno tudo o que da serra se desprendia ou, ainda, porque o rio, cada vez mais assoreado, galgava a ponte nas grandes cheias, a verdade é que, chegados ao reinado do rei venturoso, a ponte do rei fundador estava uma lástima e teve de ser, uma vez mais, reconstruída.

A Ponte de D. Manuel, também conhecida por Ponte do O, ficou concluída em 1513. Está retratada da gravura de Pier Maria Baldi, desenhada em Fevereiro de 1669. No enfiamento do leito mais fundo do rio, tinha 13 arcos que permitiam a passagem das barcas serranas com a vela panda. Na margem direita, a ponte terminava num arco/torre de secção quadrada, onde era cobrada portagem às mercadorias que entravam na cidade. Mais junto da margem esquerda, a ponte tinha agora um novo tramo com 12 arcos (talvez mais um viaduto do que uma ponte), separado do primeiro por uma plataforma a que se chamou O, de onde partiam duas rampas de acesso ao leito do rio. Era a ponte mais comprida e mais bonita do país e era local de passeio obrigatório dos estudantes que, tendo aulas apenas de manhã, eram assíduos frequentadores do Mondego pela tarte, até que a cabra os chamasse ao estudo. Era esta a ponte que deixava boquiabertos os caloiros que a Coimbra chegavam, como refere o Palito Métrico:

                    Quando a Coimbra chegares, não te espantes,
                    Se vires pela ponte passeando
                    A grande multidão dos Estudantes,
                    Por mais que para ti esteja olhando:
                    […]

Quando foi dada como obsoleta, ainda a ponte estava rija e permitia bem que se lhe passasse por cima. O problema é que o Modego já mal lhe passava por baixo, no seu constante assoreamento, que vários conventos foi “enterrando” à medida que os séculos passavam. Por isso a ponte foi demolida e substituída pela ponte metálica em forma de gaiola (foto mais acima), cujos pilares foram construídos sobre as fundações da Ponte de D. Manuel, sendo que cada tramo da ponte metálica ficou a corresponder a dois arcos da ponte anterior.

Deixando para trás este local de atravessamento mais antigo, sigamos agora o aparecimento das restantes 5 pontes, por ordem cronológica.

No início dos anos 80 entrou em funcionamento a Ponte-açude que, conjugada com a construção da barragem da Aguieira e, mais tarde, do açude da Raiva, amansou um Mondego “basófias”. Também por ali o trânsito começou a escoar-se – não tanto como hoje – mas a obra era essencialmente hidráulica e, com ela, muito aproveitou a exploração agrícola do Baixo Mondego, menos sujeita às cheias que causaram a perdição de tantas colheitas. Mas Coimbra aproveitou também! E de que maneira! Apesar de ficar escondida, lá para o fundo do rio, esta é a ponte que mais alterou a fisionomia da cidade nas últimas décadas, ao proporcionar o belíssimo lençol de água onde a Alta se projecta a cada instante. Como não há bela sem senão, perdeu-se o bucolismo das margens que as antigas fotografias documentam, as árvores mais antigas do Choupal ressentiram-se do menor caudal do rio a jusante do açude e as lampreias diminuíram a montante, problema que se espera fique resolvido com a construção da nova “escada de peixes”.

A Ponte dos Casais, na estrada das Figueiras (a montante da A1), é a sétima ponte. Julgo que foi construída pouco depois da Ponte-açude e é bem menos importante do que as restantes de que tenho vindo a falar.

Em 1982, inaugurou-se o troço de auto-estrada Condeixa-Mealhada (A1), construindo-se sobre os campos do Mondego aquele imenso viaduto que passa sobre os dois tramos do rio (Rio Novo e Rio Velho) e, ainda, sobre a Vala do Norte. O trânsito Norte-Sul foi, pela primeira vez em milhares de anos, decisivamente desviado para fora da cidade.

Ficou apenas a passar por dentro da cidade o trânsito da Estrada da Beira, o qual seria definitivamente desviado em 2004, com a entrada em circulação da Ponte Europa que, entretanto, viria a ser rebaptizada com o nome de Ponte Rainha Santa Isabel. E pela primeira vez o Mondego era atravessado por uma ponte sem pilar algum assente no leito do rio.


Tinha chegado a altura de voltar a andar a pé sobre um Mondego que vira há muito desparecer a ponte do Almegue e outras pontes pedonais de madeira, ao estilo da que hoje existe na praia fluvial para cima da Portela.

A cereja sobre o bolo, a décima ponte deste inventário, surge quando, em 28/11/2006, os braços de Pedro e Inês se estendem um para o outro e dão as mãos a meio do rio, espelhando, nos vitrais de tons alegres, os reflexos coloridos do seu eterno amor.

Uma nota final: Ponte de Santa Clara, Ponte Rainha Santa Isabel, Ponte Pedro e Inês – três pontes cujo imaginário nos remete para a margem que fica em frente. Não deixa de ser curioso, quando, do lado Norte, haveria dezenas de nomes igualmente ilustres que poderiam ter sido evocados. Coincidência? Tendência para olhar para "a galinha do vizinho"? Querer ver mais longe? Ou, simplesmente, como diz a canção dos Jafumega, «a ponte é uma passagem para a outra margem»?

Zé Veloso

28 novembro 2011

ANDAR À LEBRE

    No meu tempo de Coimbra, quando se dizia que uma República «andava à lebre» era porque o fim da caixa e do crédito na mercearia tinham chegado mais cedo do que o fim do mês, não restando aos repúblicos outra alternativa que não fosse distribuírem-se por outras Repúblicas, onde comeriam até que a caixa se recompusesse com as mesadas do mês seguinte.
    Se várias Repúblicas andavam à lebre ao mesmo tempo, o problema passava para as cozinheiras, que teriam de fazer mais comida com o mesmo conduto, que onde comem oito também comem nove ou dez, desde que não se fuja muito das arrozadas. Todos passavam a comer um pouco pior para que todos pudessem continuar a comer. A solidariedade sempre foi uma qualidade do nosso povo e também não era negada entre os estudantes.
    O que eu não entendia, na altura, era porque se chamava «andar à lebre», quando lebre era coisa que nem vê-la; e o coelho, se o havia, andava bem escondido por debaixo do arroz ou das batatas. Mas o termo era já corrente nos tempos de Antão de Vasconcelos, estudante brasileiro que cursou Direito entre 1860 e 1865 e que escreveu mais tarde as célebres Memórias do Mata-Carochas.
    Segundo o Mata-Carochas, quando o estudante por estroina, jogador ou vagabundo perde as mesadas, que vai rebatendo, ou a família lhas suspende por castigo ou por pobreza, vê-se ele na contingência de empenhar ou vender tudo o que tem, a própria cama, e assim fica «à pauperibus», como ali se diz. Então, explora as repúblicas amigas, almoçando aqui, ceando acolá, dormindo com alguns amigos ou algures embrulhado na capa, até que melhorem os tempos e sopre a bonança. Este estado é ali denominado – «andar à lebre».
    E Amílcar Ferreira de Castro, em A Gíria dos Estudantes de Coimbra, adianta uma explicação plausível para a expressão «andar à lebre»: acção semelhante à do caçador que para caçar a lebre tem de percorrer muitos lugares. Temos, assim, que, em tempos que já não são os meus, se chamava «caçador» ao estudante que andava à lebre.
    Voltando ao Mata-Carochas, num capítulo do livro dedicado à Associação Filantrópico-Académica (lembram-se dela?), podemos ler:
    Quando chegava ao conhecimento da Associação que algum companheiro «andava à lebre», mandava-lhe pequena quantia e logo abria uma subscrição, sem nunca declinar o nome do «caçador». Era assim:
    Um pegava no gorro, abeirava-se dos grupos ao cavaco e dizia:
    «Oh, coisas; deitai aqui o que quiserdes.» Toda a gente dava, isto é, largava dentro do gorro o que queria ou podia.
    Feita a colecta, embrulhava-se a quantia em um papel; espreitava-se o tipo e logo que era encontrado o portador, descia o gorro pela cara abaixo, mascarando-se, e entregava-lhe o embrulho sem balbuciar palavra; se o sujeito tinha ponto certo, depositava-se no lugar para lhe ser entregue e, logo que saía o portador, entrava outro a vigiar a pontualidade da entrega, de forma a não haver burla ou ladroeira do depositário.
    O «caçador» não sabia quem lho dava e os académicos não sabiam para quem davam, mas sabiam a que fim se destinava.
    Sábado de manhã, ao passar os olhos pelo Expresso, chamou-me a atenção uma notícia: «Estudantes de Aveiro e Algarve lançam campanhas de recolha de alimentos para colegas em dificuldades». A notícia conta que naquelas Universidades foram montados locais de recolha onde os estudantes colocam bens alimentares essenciais que são depois distribuídos aos alunos que se encontram em dificuldade. E esclarece que, na Universidade de Aveiro, para preservar a identidade dos estudantes, a distribuição será assegurada pelo gabinete pedagógico da UA, a única entidade que conhece quem pediu ajuda. Tal como no tempo de Antão de Vasconcelos, o dar sem saber para quem, embora conhecendo o fim, e o respeito pela identidade de quem é ajudado.
    Sábado à tarde fui ao supermercado. Estava a decorrer a recolha do Banco Alimentar contra a Fome. Abeirou-se de mim um jovem que me disse, simplesmente – O que quiser dar. O jovem não vinha de capa e batina mas o gesto era igual ao que vem referido nas Memórias do Mata-Carochas. Só que em vez de me estender um gorro de pano preto me entregou um saco de plástico branco.
    Zé Veloso

18 novembro 2011

... E ASSIM NASCERAM AS REAIS REPÚBLICAS!

Na edição de 1792 do Palito Métrico (1) aparece um curioso texto, no qual um Bacharel aconselha um rapazote, que se prepara para ir estudar para Coimbra, sobre a forma económica de aí viver. Falando na escolha da habitação, diz-lhe a páginas tantas: «Para que em Coimbra habite economicamente, não procure casas; procure, sim, a casa de umas casas, quero dizer, alugue um quarto, o qual baste para recolher-se a estudar, a comer e a dormir.»
Mas nem só nos quartos se habitava. Estudantes mais abastados alugavam casas onde viviam com seus criados, cavalos e alfaias, luxo que, evidentemente, não estava ao alcance de todas as bolsas. Aliás, o nosso Bacharel também advertia contra os perigos de alugar uma casa: «Pelo que pertence à habitação, adopte V. M. o nosso adágio – Casa, em quanto caibas – nem V. M. lá para o futuro caia em gastar o seu dinheiro em obras de pedra e cal.»
Voltando ao Palito Métrico, o Bacharel fazia figura de sábio, mas não contava tudo. Por exemplo, esquecia-se de informar que os alojamentos sempre tinham sido escassos e que havia senhorios que preferiam deixar as casas devolutas, não só porque o tabelamento das rendas (que vigorou até à Reforma Pombalina) tornava o negócio pouco aliciante, mas também porque era difícil a convivência da população de Coimbra, sobretudo a da Baixa, com a sociedade académica, face aos abusos e à vida desregrada de muitos escolares. Mas é interessante notar que o Palito Métrico – uma colectânea de textos  que plasmava as tradições e o modo de viver da sociedade escolar na segunda metade do séc. XVIII – não fazia, ao longo das suas quatro centenas e meia de páginas, uma única referência à existência de Repúblicas! É que, naquele tempo, as Repúblicas não existiriam ainda.
Contudo, admite-se que, desde há muito, os escolares viessem respondendo à escassez de alojamento com formas diversas de partilha, entreajuda e vida comunitária, aproveitando as casas que tanto D. Dinis como D. João III mandaram construir, as deste último rei com vocação para albergar oito a dez estudantes, como bem explica Artur Ribeiro (2), autor que, no entanto, não nos apresenta testemunhos concretos sobre a forma de viver nesses tempos mais remotos. Mas já em tempos mais recentes, é o mesmo Artur Ribeiro que escreve, a dado passo (2)«Ribeiro Sanches, em 1763, traça-nos o seguinte quadro: “Cada dois ou três estudantes têm uma ama, um e, às vezes, três criados;(…)”. Este autor estará a referir-se a pequenas comunidades de escolares com certo poder económico porque, outras comunidades haveria em que o número de estudantes seria bem superior. Uma análise cuidada dos registos de matrículas dá-nos, para esta época, um número médio de cinco residentes, nos casos de habitação partilhada. Todavia, Ribeiro Sanches introduz um novo elemento, a figura da “ama” que estará muito próxima da serviçal ou “servente” das “Repúblicas” do Século XX.»
Muitos estudantes se albergavam ainda na vintena de colégios das ordens religiosas que, depois da transferência da Universidade para Coimbra com D. João III (1537), foram sendo construídos na Rua da Sofia e na Alta. Porém, chegados a 1834, Joaquim António de Aguiar – o "Mata Frades", aquele que ocupa hoje o centro do Largo da Portagem mas que ocupava à época o Ministério dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça – avançou com o decreto de extinção das ordens religiosas, confiscando todos os colégios, conventos, mosteiros, hospícios e demais edifícios que àquelas ordens pertenciam.

E foi este, segundo diversos estudiosos, o clique que fez nascer as Repúblicas! 
Com o fim dos colégios, a pressão sobre o alojamento aumentou mais ainda e grupos de estudantes terão ficado, de um dia para o outro, sem o seu aboletamento garantido. Mas a necessidade aguça o engenho. E a malta, liberta de tutelas, parte decididamente para a autogestão, organizando-se por conta própria e governando as suas casas à maneira de uma República – quem manda é o povo, que elege os seus chefes! – que os ventos de mudança vinham de França, sob a égide dos princípios Liberdade, Igualdade, Fraternidade!
Estávamos em meados do séc. XIX. Nasciam as Repúblicas, mas Portugal era ainda uma monarquia! Chamar a essas casas simplesmente "República" seria demasiado desafiador. Mas "Real República", sendo uma forma dúplice, já agradaria a todos: aos de fora da casa, que entenderiam que, se a República era "Real", não ofendia a ordem monárquica; e aos de dentro, para quem o "Real" quereria dizer que se tratava, realmente, de uma República, fundada e governada pelos próprios, sem ter de dar cavaco fosse a quem fosse.

E esta questão de "não ter de dar cavaco" – a autonomia das Repúblicas – é algo que está na sua essência, no seu ADN, que me parece nem sempre ter sido devidamente valorizado em análises que tenho lido sobre a história das Repúblicas. Porque uma República não é um lar de estudantes! Não foi fundada pelo reitor, nem pelo bispo nem pelo rei. E é por isso que não comungo da opinião de que tenha sido D. João III quem instituiu as primeiras Repúblicas (para mim, um contra-senso; as Repúblicas são fundadas pelos próprios repúblicos)! Nem percebo que as raízes das repúblicas possam estar em D. Dinis (uma República é muito mais do que um aboletamento partilhado)!

Como qualquer ser vivo, as Repúblicas nascem, vivem e morrem. Mas perduram no tempo para além do tempo universitário dos seus fundadores e continuadores mais próximos. Sem os esquecer, ganham vida própria. 
Gonçalo Reis Torgal (3) conta-nos que a denominação das primeiras Repúblicas estava ligada à origem dos seus repúblicos (Repúblicas Ribatejana, Transmontana, Minhota, de Tomar…) ou ao local da sua instalação (Repúblicas da Estrela, dos Grilos, da Matemática, das Cozinhas, dos Palácio Confusos…), só mais tarde aparecendo os nomes humorísticos que chegaram até aos dias de hoje. Mas, ainda no meu tempo, muitas das Repúblicas (ou Solares) agrupavam gente de proveniência comum: os 1000-y-Onários e o Kimbo dos Sobas tinham estudantes de Moçambique e Angola; no Rapó-Taxo a malta era de Cantanhede, enquanto na Bamus-ó-Bira e na Boa-Bay-Ela vinha do Minho; os Corsários da Ilhas vinham dos Açores, sendo o Farol da Ilhas de malta da Madeira.
Também eu vivi numa Real República "de Coimbra", durante 3 anos. Só que essa Real República se situava – e se situa ainda – no Porto: a Real República do Ly-S.O.S., fundada por universitários de Coimbra que iam ao Porto terminar os seus cursos de Engenharia e Farmácia, República que brilhou a grande altura no contexto das Repúblicas do Porto e que é hoje o único espécime naquela cidade.
A Real República do Ly-S.O.S. festeja este sábado e domingo o seu LII Centenário! 52 anos é obra! Lá estarão em convívio inter-geracional os actuais repúblicos e os «velhinhos», os fundadores e as gerações intermédias. Porque uma República é património de todos os que nela viveram, ainda que as decisões caibam apenas aos que nela hoje vivem. E não é apenas uma casa onde se vive em comunidade. É uma instituição viva, que em muitos casos sobrevive à mudança da própria casa (os Ly-S.O.S. vão na quarta). Porque uma República não tem apenas corpo. Tem alma!
Não podendo este ano estar no Porto com a família Lysa, daqui me junto em uníssimo num sonoro F-R-A!, gritando convosco: –  É malta Ly!!!...   S.O.S.!!!
Zé Veloso
PS - A Real República dos Ly-S.O.S. foi inaugurada com pompa e circunstância em 18 de Novembro de 1959. A foto abaixo foi tirada nesse dia, com os fundadores (falta um) e as duas madrinhas na varanda do primeiro prédio que acolheu a República. Alguns dos nomes têm uma especial relação com Coimbra: Jorge Anjinho, que foi presidente da AAC-OAF; Júlia Condorcet, filha do radiologista Dr. Pais Mamede (Condorcet, the King os Embarrilation), famoso ilusionista amador; Augusto Carmona da Motta, filho do célebre Pantaleão, companheiro inseparável do boémio Castelão de Almeida.


Nota: Este post, publicado inicialmente em 18/11/2011, foi revisto em 09/09/2017.


(1) «Sistema das Precisões» in Palito Métrico e Correlativa Macarrónea Latino-Portuguesa, Nona Edição (de harmonia com a quarta, de 1792), Coimbra Editora, 1942.
(2) RIBEIRO, Artur. «Perspectiva histórica da República de Coimbra» in Rua Larga, UC, http://www.uc.pt/rualarga/anteriores/19/16.

(3) TORGAL, Gonçalo Reis. Coimbra, Boémia da Saudade, vol II, Edição do autor, 2003.

03 novembro 2011

DAS LATADAS À FESTA DAS LATAS (Parte II)

Parte II: As Latadas do início do ano lectivo. A imposição de insígnias

Vimos na Parte I deste tema que as Latadas do final do ano lectivo, coincidentes com a emancipação dos caloiros, terminaram por volta de 1935.

II.a) As Latadas do final dos anos 40 até à década de 60 

Mas como lata faz barulho e barulho é sinal de festa, as Latadas voltaram no final da década de 40, continuando pelos anos 50 e 60. Só que, desta vez, aconteciam no início do ano lectivo e estavam ligadas à imposição de insígnias: dos quartanistas que, a partir desse dia, poderiam colocar na pasta o grelo que tinham posto na lapela na Queima do ano lectivo anterior; e dos quintanistas que, tendo posto fitas na Queima anterior, podiam agora exibi-las até à Queima seguinte.

Havia quatro Latadas – Letras, Ciências, Direito e Medicina-Farmácia –, que tinham lugar às quartas e sábados à tarde, depois de terminados os exames de Outubro. Por via de regra, aconteciam por aquela ordem [1]. Os cursos de Matemáticas, Engenheiro Geógrafo e os Preparatórios de Engenharia, todos eles com insígnias de cores azul-clara e branca, alinhavam na Latada de Ciências.

Para os quartanistas grelados, os jovens lobos que iriam iniciar o seu ano de glória, a manhã começava muito cedo, com a visita ao Mercado D. Pedro V, já de grelo posto na pasta. Assim era no meu tempo (1965), como bem ilustra a foto ao lado, na qual desço a Sá da Bandeira na companhia de três colegas [2], embora o José Paulo Soares me tenha dito que no tempo dele (1958) se ia primeiro ao Mercado e só depois se colocava o grelo na pasta, no Pátio das Escolas.

Uma vez no mercado da hortaliça, comprava-se um nabo de rama farfalhuda que se metia dentro da pasta para fazer companhia ao grelo que dela "florescia" pela primeira vez. E dali saíamos a cantar uma lenga-lenga que a Academia de hoje já esqueceu, enquanto pela cidade ecoava o barulho dos Zés Pereiras e do foguetório.

Entre a malta dos anos 50 e 60 não há quem não se lembre de tal lenga-lenga, embora existam diversas versões [3]; reproduzo abaixo a letra da versão que Fernando Rolin gravou no CD Regresso de quem nunca partiu, a qual pode ser ouvida carregando aqui.  

          Meu nabo, meu grelo
          Sinto prazer em vê-lo
          Nada há mais belo que o grelo
          Que o grelo do nabo
          Que o nabo do grelo 

Ninguém questionava a razão de ser destes rituais. Mas eu coloco a questão agora: por que carga de água se chamará "grelo" à fita estreita? E que relação intrigante era esta, entre estudantes e vendedeiras de hortaliça, que levava os primeiros, no ano que representava o zénite da sua passagem por Coimbra, a ter como primeiro acto público ligado ao uso regular do grelo uma visita ao Mercado D. Pedro V?

António Rodrigues Lopes (A Sociedade Tradicional Académica Coimbrã, 1982) parece trazer-me a resposta em quatro escassas linhas: «O “grelo” seria a reminiscência de um molho de bróculos que floresceu de uma greve de hortaliceiras que a academia, solicitada, secundou. Surgiu deste modo, como símbolo heráldico de reivindicação contra a truculência da Câmara Municipal (in “À Porta Férrea”, de Serrão Faria)».

A greve a que se refere ARL ficou conhecida pela "Revolta do Grelo". Segundo, entre outros, Vasco Pulido Valente (A "Revolta do Grelo": ensaio de análise política), foi uma insurreição muito séria, que durou vários dias e chegou a envolver 10.000 manifestantes, juntando estudantes e futricas do mesmo lado da barricada. Vamos aos factos: em 11 de Março de 1903, após vários dias de contestação contra o pagamento do "imposto do selo", as vendedeiras de hortaliça do Mercado D. Pedro V entraram em greve, no que foram secundadas pelo comércio e operariado da cidade, deixando Coimbra sem abastecimento de frescos e outros géneros durante algum tempo; seguiram-se tumultos vários com intervenção das forças da ordem, vindas de fora, os quais se saldaram por quatro mortos e vários feridos entre os populares e um morto entre os soldados; a Academia reuniu, declarou-se incondicionalmente ao lado do povo de Coimbra e organizou uma recolha de fundos para auxiliar as famílias das vítimas; o Governo encerrou a Universidade a 14 de Março e determinou que todos os estudantes não residentes saíssem de Coimbra, mas poucos arredaram pé; as aulas só reabririam a 20 de Abril.

Será que a ida ao mercado era o ritual inconsciente de um encontro que se repetia, de uma aliança forjada sessenta anos atrás entre os estudantes e as vendedeiras de hortaliça? E será que a denominação "grelo" que é dada à fita estreita é alheia a tudo isso? Que cada um conclua como entender.

À tarde tinha lugar a Latada propriamente dita. Era um cortejo trapalhão, com alguns gaiteiros à mistura, que seguia o mesmo trajecto do cortejo da Queima. Para além dos grelados e fitados, de capa e batina e insígnias, desfilavam os caloiros que tivessem sido mobilizados. As greladas e fitadas seguiam na Latada, mas as caloiras, não sendo mobilizáveis, viam o cortejo do passeio. Alguns dos caloiros iam mascarados, outros de pijama ou com o casaco do dia-a-dia vestido do avesso e as calças arregaçadas, outros seguiam simplesmente à futrica. Na década de 50 ainda os caloiros arrastavam latas, mas o costume foi caindo em desuso, de tal forma que nos anos 60 o enfoque estava todo nos cartazes, e apenas alguns caloiros levavam penicos de esmalte, baixela indispensável das praxes coimbrãs.

Os caloiros, que podiam pertencer a qualquer curso, ou seguiam ao serviço de um doutor que fizesse questão de levar o seu "animal de estimação" – no meu ano de grelado levei um caloiro que me chegava um penico para aparar a cinza do cigarro e me estendia uma passadeira de cada vez que decidia ir cumprimentar alguém na assistência – ou faziam parte da legião de porta-cartazes, a função mais chata, mas também a mais digna, já que os cartazes eram o prato forte da Latada. E uma Latada se dizia boa ou má consoante a piada, a classe e o atrevimento dos seus cartazes, que criticavam de forma cáustica e humorada a vida académica, a política nacional e a cidade. [4] 

Em época de censura, tudo era dito por meias palavras, por frases cândidas que escondiam malandrice, por frases banais cujo arranjo gráfico poderia sugerir muito mais do que uma banalidade. Numa altura em que a palavra "Salazar" logo levantaria suspeitas, poderia o "sal" estar no início da frase e o "azar" andar disfarçado lá mais para diante. Os cartazes poderiam ser charadas, só decifráveis quando lidos em conjunto. Aí, a censura, que os tinha visionado por outra ordem antes do cortejo se iniciar, não encontrava forma de os censurar. Era para apreciar este pratinho que muita gente saía à rua para ver as Latadas!

À noite a festa terminava no Tetro Avenida, já que os seus proprietários deixavam entrar à borla grelados, fitados e caloiros mobilizados, numa balbúrdia tremenda, um autêntico salve-se quem puder na busca de um lugar. O Avenida ficava cheio que nem um ovo, do galinheiro às coxias. Enquanto decorriam os documentários, ainda os porteiros tentavam controlar as entradas; a seguir, mal rugia o Leão da Metro, a malta que ainda estava cá fora, como que galvanizada pelo ronco do bicho, logo fazia saltar os porteiros do lugar antes que fossem as portas a saltar dos gonzos.

O filme era quase sempre mauzinho, ainda que, na minha Latada, tenha sido o West Side Story, que nos deixou mudos de espanto, até o Richard Beymer (Tony) começar a cantar «Maria, Maria, Maria». Aí chegados, alguém do galinheiro pediu uma bolachinha e estalou a gargalhada geral… Ai, aquele galinheiro! Empoleirados junto ao tecto, mal enxergavam o ecrã. Mas quando aparecia um decote mais generoso, logo um malandreco gritava para a plateia que dali é que se via tudo...

Haveria serenatas aquando das Latadas?

Não me recordo de haver serenatas por altura das Latadas, mas eu não sou testemunha fidedigna, já que a minha atenção estava então virada para o yé-yé. Porém, numa conversa que tive em tempos com o saudoso Augusto Camacho Vieira (cantou em Coimbra entre 1945 e 1953) ele referiu-me as serenatas das Latadas, sem que tenhamos aprofundado o tema. E também José Niza (Fado de Coimbra, Vol I, 1999) se referiu à existência de serenatas celebrando as Latadas nas escadarias da Sé Velha. O facto é que, ao procurar o rasto destas pistas, apenas encontrei mais uma notícia sobre tais eventos num texto de António José Soares (Saudades de Coimbra, 1934-1949, 1985):

«Outubro 1947: Deitaram fitas, em conjunto, os quintanistas de Direito e de Ciências. Dias depois o curso do IV ano de Direito festejou a imposição de insígnias com um almoço de confraternização, uma serenata na Sé Velha e um grande cortejo para que foram mobilizados todos os caloiros, muitos dos quais tocavam estranhos instrumentos».

Curiosamente, quer pela data em que ocorreram quer pelas suas características, tudo indica que estes acontecimentos tenham sido o embrião das Latadas que acima tenho vindo a abordar. Mas será que as serenatas em dia de Latada se ficaram por 1947 ou terão continuado depois disso?

Ao rever este post em Out/Nov 2022, procurei aclarar esta questão junto dos frequentadores do grupo do Facebook “Penedo d@ Saudade - TERTÚLIA”, bem como de alguns amigos a quem enviei e-mails. Dos não directamente envolvidos no fado de Coimbra, ninguém se recordava de serenata alguma por ocasião das Latadas. Quanto aos restantes, o viola Levy Baptista (anos 50) disse-me peremptoriamente que, no seu tempo, as Latadas nunca tiveram nada a ver com serenatas na Sé Velha; e o viola Rui Pato e o guitarrista Manuel Borralho (ambos dos anos 60) disseram não guardar tais serenatas na memória. Mas Arménio Santos, cantor dos anos 60, confirmou-me que cantou na serenata da Latada de Letras de 1967 na Sé Velha, quando a sua namorada – hoje sua mulher – pôs grelo, sendo que ela própria também se recorda, só não sabendo dizer se foi na noite da véspera se na noite seguinte à Latada. Terá esta serenata sido um caso isolado? Não o creio. Mas, em face dos restantes depoimentos, admito que tais serenatas também não fossem a regra.


II.b) A Festa das Latas e Imposição de Insígnias

E hoje em dia como é? Acabadas as Latadas, aí temos a Festa das Latas, com algumas diferenças importantes, embora não diferindo no essencial, ou seja: uma festa que acontece no início do ano lectivo e que está associada à imposição de insígnias dos novos grelados e fitados. Aliás, a denominação oficial da festa deste ano é "Festa das Latas e Imposição de Insígnias 2011". No entanto, ela serve também para mostrar os caloiros à cidade e promover o seu baptismo.

Mas o que há, então, de diferente?

Desde logo, um cortejo único. Se assim não fora, com o actual número de Faculdades (8) mais os Politécnicos e outras escolas de ensino superior (mais 8), teríamos Latadas até ao Natal. Mas se o cortejo é único, o grosso da festa prolonga-se por quase uma semana, fora os preliminares, uma série de "inventos" que a malta organiza, desde concursos literários e fotográficos a torneios desportivos e peddy-papers, passando por uma caça ao tesouro em Conímbriga e por umas olimpíadas do conhecimento sobre Coimbra e a vida académica. São eventos que têm para o caloiro que chega uma função integradora que me parece ser muito mais eficaz do que as mais que estafadas praxadelas do tipo brincadeiras bobas no meio da rua.

A abertura oficial das festas é marcada por uma serenata que tem lugar às zero horas do primeiro dia, sem local fixo, mas que se pretende que não seja na Sé Velha. Já foi no Largo da Sé Nova, à Porta Férrea e na Praça Velha. Gosto da ideia de abrir as festas com uma serenata, acarinhando e perpetuando os fados e guitarradas de Coimbra. Mas agradar-me-ia mais que a serenata fosse sempre na Alta, já que é lá o seu espaço natural, por ser na Alta que reside a fonte de todas as tradições académicas. Mas se até o Hilário cantava no Choupal, conforme reza o fado que tem o seu nome, quem sou eu para condenar uma serenata na Baixa?

Como sucedâneo de luxo dos filmes no Teatro Avenida temos as noites no Queimódromo / Praça da Canção, com um cartaz de show business à escala dos nossos dias, do poder de compra dos estudantes de hoje e dos interesses comerciais que se movem em torno das festas académicas, onde cada vez a cerveja mais escorre e o INEM mais acorre.

Mas é no cortejo do último dia – cerne praxístico das festas – que eu encontro mais novidades: desde logo, qualquer estudante universitário pode desfilar, ainda que apenas os grelados levem consigo as insígnias; e os caloiros no cortejo são agora de ambos os sexos, já que as caloiras podem ser mobilizadas pelas doutoras. Aliás, penso que a entrada da mulher em peso na Universidade terá sido a mola impulsionadora da mudança. Embora mantendo ainda um cunho reivindicativo e crítico, o cortejo ganhou uma alegria que não tinha no meu tempo, mais se assemelhando a um desfile carnavalesco, onde cada curso canta os seus hinos e faz as suas coreografias, com os caloiros e caloiras vestidos com fantasias de cores garridas.

Para além disso, existem dois conceitos completamente novos, cuja origem desconheço: o baptismo de caloiro e o morder do nabo. Quanto a este último, os caloiros, durante o cortejo, têm de ir mordendo os nabos dos grelados, cuja rama é mais tarde atirada ao Mondego. Quanto ao baptismo, cada caloiro/caloira escolhe, entre os doutores, um padrinho/madrinha [5] de baptismo. Chegados ao largo da Portagem, a turba dirige-se para essa enorme pia baptismal que dá pelo nome de Mondego e, fazendo-se uso dos penicos que cada caloiro transportou consigo durante o cortejo (conjuntamente com uma chupeta descomunal), vai de mandar pela cabeça da caloirada abaixo – «in nomine solenissimae praxis caloiro(a) baptizado(a) est»! – um chapadão de água do rio que, embora não me constando que seja benta, tem a propriedade de curar na hora uma boa parte das borracheiras em que o cortejo é fértil. Tudo previsto!

Deixei para o fim a visita ao Mercado D. Pedro V, onde se introduziu, há já mais de uma década, a triste ideia de que a tradição impunha que o nabo fosse roubado e não comprado. Em 1/11/2000 li no Diário de Coimbra uma exortação do Conselho de Veteranos, lembrando que o nabo é para ser comprado e não roubado. Mas, sete dias mais tarde, o mesmo jornal anunciava, como fazendo parte do programa oficial da Latada, o "Roubo do nabo"… Distracção? Gato escondido com o nabo de fora?

Estive em Coimbra há poucos dias e falei com várias vendedeiras do Mercado que me disseram que «já se rouba menos… mas ainda se rouba»! É indigno de um estudante, que assim se diverte no que é o trabalho dos outros. Faço votos para que este estúpido costume caia rapidamente em desuso. Seria uma pena que, por brincadeiras inconscientes, fosse posta em causa uma aliança tão bonita e tão antiga. É que os estudantes de Coimbra aprenderam a ir ao Mercado abraçar as vendedeiras muito antes dos políticos. E não o fizeram para caçar votos, mas sim por solidariedade.

Zé Veloso

[1] Conta Gonçalo dos Reis Torgal (Coimbra Boémia da Saudade, Vol. II, 2003) que a data era escolhida de acordo com a hierarquia das Faculdades: Medicina, Direito, Ciências e Letras, acabando por, quase sempre, as Faculdades prioritárias escolherem as datas mais tardias.

[2] Foto pertencente ao acervo do autor. A caminho do mercado D. Pedro V na manhã da Latada de Ciências de 1965. Da esquerda para a direita, António Dias Figueiredo, Luís Filipe Colaço, Maria Cláudia Carneiro (hoje M. C. C. Veloso) e Zé Veloso.

[3] As ditas versões correspondem a pequenas variantes dos três primeiros versos. Porém, o Nuno Tavares (anos 60) contou-me que, no seu tempo e nos Direitos, os dois últimos versos se cantavam «Que o grelo no nabo / E o nabo no grelo», fórmula algo dúbia, que tanto poderia referir-se à junção entre o nabo e o grelo (fita estreita) dentro da pasta como tratar-se de uma insinuação brejeira.

[4] Foto pertencente ao acervo de Luís Filipe Colaço. Latada de Letras de 1961 atravessando a Praça da República. L. F. Colaço é o caloiro de branco, boina preta e cachimbo.

[5] A escolha de um padrinho poderá ter sido inspirada nas descrições do Palito Métrico, que nos transmitem que era frequente os caloiros colocarem-se sob a protecção de um veterano “lá da terra” ou que lhes tivesse sido recomendado.

EM TEMPO

Este post foi inicialmente escrito em 3/11/2011.
Em Out e Nov 2022, a parte II.a) As Latadas do final dos anos 40 até à década de 60 foi sendo sucessivamente revista, no sentido de corrigir algumas falhas e acrescentar informação em falta.
Não foi feita qualquer revisão ou actualização da parte II.b) A Festa das Latas e Imposição de Insígnias, a qual diz respeito a festividades que continuam a evoluir. Mas aproveito para registar que a serenata da Festa das Latas se fixou definitivamente no Largo da Feira dos Estudantes (Sé Nova).

Zé Veloso
14/11/2022


26 outubro 2011

DAS LATADAS À FESTA DAS LATAS (Parte I)

Parte I: As Latadas do final do ano lectivo. A emancipação dos caloiros

Daqui a pouco, à meia-noite, começará no largo da Sé Nova (Largo da Feira dos Estudantes) a serenata que irá marcar o início da Festa das Latas, cujo ponto alto será o cortejo da Latada, alguns dias mais tarde. Nas próximas noites o Queimódromo/Praça da Canção encher-se-á de malta para assistir aos concertos de um cartaz que, venha quem vier, será sempre um bom pretexto para manter a animação durante esta espécie de mini-Queima de Outono.

Quem tenha passado por Coimbra nas décadas de 50/60 e não mais tenha tido contacto com a vida académica da cidade deverá abrir uma boca de espanto perante o que acabo de anunciar: – Festa das Latas em lugar de Latada? Serenata? Noites no Queimódromo? Cortejo único? Fará depois um encolher de ombros e dirá que "a tradição já não é o que era". Nada de mais errado! As tradições académicas de Coimbra sempre evoluíram ao longo dos séculos, o que me leva antes a dizer que "a tradição nunca foi o que era"!

Aliás, é esta capacidade de adaptação a novas realidades – Bolonha, aumento do número de Faculdades, presença maioritária das raparigas, novos contextos socioculturais… – que tem permitido às tradições manterem-se vivas, já que são vivenciadas e não apenas representadas. Custa-me ver alterações gratuitas da tradição, dos rituais, das praxes, sem causa que o justifique, a não ser a invencionice em cima da ignorância. Mas quando as adaptações aos novos tempos são feitas de forma inteligente e no respeito pelo passado, só tenho de aplaudir.

As Latadas – ou Festas das Latas, como agora são chamadas, retomando uma terminologia que Trindade Coelho usou, mas que outros contemporâneos seus não usaram – são, porventura, dentro das diversas manifestações praxísticas de Coimbra, as que mais transformações sofreram, tanto na forma, como nos objectivos que perseguem.

Trindade Coelho (In Illo Tempore, 1902) conta que, no seu tempo (1880-1885), as coisas se passavam assim:
«[…] as aulas de Direito fechavam-se nesse dia, e à noite, como era da tradição, a rapaziada tinha de sair pelas ruas de Coimbra – naquela extraordinária inferneira chamada a Festa das Latas, em que cada um, incluindo os novatos [equivalente aos caloiros de hoje], que nesse dia ficam “emancipados” e já podem sair de noite sem protecção, arrasta atrás de si as latas que pôde ir juntando durante o ano, ou as que comprou na "feira das latas" aos garotos, que vendem uma banheira velha por um pataco e três cântaros de "folha" por um vintém!
Essa é a tremenda noite de Coimbra, em que ninguém prega olho – troça aos estudantes das outras Faculdades, que ainda têm aulas no dia seguinte –, e que uma vez obrigou a fugir não sei que inglês "touriste", que berrava de mala na mão, a correr para o caminho-de-ferro, – Doidos! Doidos! Doidos varridos!»

A descrição de Trindade Coelho é consistente com outras da mesma época, excepção feita à denominação que dá ao evento. Com efeito, as Latadas do séc. XIX estavam ligadas ao facto de nem todas as Faculdades terem o mesmo dia do ponto (último dia de aulas), o que levava os alunos já libertos das aulas a caçoar dos restantes, através de cortejos barulhentos que os não deixassem estudar ou dormir em paz. Para além disso, os caloiros que iam tendo o seu dia de ponto emancipavam-se nessa mesma noite.

Mas a tradição das Latadas poderá ter vindo mais de trás e ter alguma relação com as "Soiças" (cortejos trapalhões e barulhentos que foram proibidos em 1541, em face dos desacatos que provocavam). Esta relação é estabelecida tanto por Hipólito Raposo (Coimbra Doutora, 1910) como por Teófilo Braga (História da Universidade de Coimbra… Tomo I, 1982), sendo que este último atribui às Latadas igualmente a denominação "Tocar das Latas".

Com a Reforma de 1901 todos os cursos passaram a terminar as aulas ao mesmo tempo, deixando de haver razão para a troça. Mas as Latadas continuaram, centradas agora na emancipação dos caloiros, ainda que com intermitências que, segundo Reis Torgal (Boémia da Saudade, Tomo II, 2003) se ficaram a dever a convulsões políticas e académicas, à I Grande Guerra e à pneumónica.

Sobre este período, há uns quantos depoimentos publicados em livro, deles se percebendo que, para além de variantes diversas, nunca o essencial se alterou: caloiros a correr por Coimbra afora que nem loucos, debaixo de um barulho infernal, protegidos da praxe por tudo quanto fosse elemento metálico barulhento, atado por barbantes ou arames aos tornozelos, à cintura ou aos pulsos, em busca de uma emancipação que chegaria no final da corrida. Pelo caminho – fosse ele da Porta Férrea à Portagem ou de Santa Clara até à Porta Férrea – lá estavam os doutores de piquete, munidos de bengalas e mocas, tentando fazer soltar as latas, na expectativa de uma imediata rapadela daqueles que perdessem o seu "escudo protector". Como em todas as estórias com final feliz, há notícias de confraternizações e abraços entre uns e outros no final da refrega.

As Latadas foram a dada altura transferidas para 27 de Maio e integradas nos festejos da Queima das Fitas. Branquinho da Fonseca, formado em 1930, conta-nos (Porta de Minerva, 1947) que havia no seu tempo duas formas de um caloiro obter a alforria: ou submeter-se à Latada ou seguir no cortejo, no carro de um quartanista. Não é de estranhar – somos um país onde sempre houve duas vias para tudo…

Por artes que nunca consegui apurar, mas que poderão ter a ver com a barbaridade do ritual e a sua progressiva desadequação à evolução da sociedade, as Latadas emancipadoras dos caloiros desapareceram de cena por volta de 1935 – Reis Torgal (Boémia da Saudade, Tomo II, 2003) –, e os caloiros passaram a emancipar-se de forma menos selvática e muito mais romântica, tal como aconteceu comigo no final do ano lectivo de 1962/63: segui a pé no cortejo da Queima e, uma vez chegado à Portagem, pedi a uma madrinha – uma moça amiga que ali estava já à minha espera – que me tirasse com jeitinho os adesivos da testa, onde as marcas de mercurocromo deixavam antever as supostas cicatrizes da recente amputação de um valente par de cornos!

Terminada a época das Latadas emancipadoras dos caloiros, no final do ano lectivo, iniciou-se, uma década mais tarde, a época das Latadas ligadas à imposição de insígnias, no início do ano lectivo. A sua história fica para o próximo post – DAS LATADAS À FESTA DAS LATAS (Parte II).

Zé Veloso

PS: Este post, escrito inicialmente em 26/10/2011, foi ligeiramente revisto em 04/10/2022.
  

07 outubro 2011

CONJUNTOS ACADÉMICOS DA COIMBRA ANOS 60

Faz hoje duas semanas que faleceu o Zé Niza. A notícia atingiu-me, naquela manhã de sexta-feira, como uma pedrada que entra pela janela do carro. E enquanto o locutor resumia a sua vasta obra, o seu enorme talento de músico e compositor, a par de uma carreira multifacetada, da medicina à política, da gestão de programas de TV à produção discográfica, eu recordava a sua simplicidade e desprendimento, o contacto afável e a disponibilidade com que, na Coimbra dos anos 60, o Zé dava dicas aos músicos mais novos; ele, que era já um "senhor" na guitarra de jazz.

Estávamos em 1968/69. Os Álamos iam gravar dois singles de 45 rotações para a Sonoplay e precisavam de canções inéditas. Para um conjunto yé-yé à boa maneira da época, cantar em português cheirava a bafio, a pó-de-arroz, a nacional-cançonetismo… O Chico Fininho estava ainda para nascer e o grande êxito dos Sheiks era o Missing You. Por isso, os temas seriam cantados em inglês.  Mas tínhamos decidido que uma das faixas a gravar seria cantada simultaneamente em português e inglês, à maneira do Chove chuva do Sérgio Mendes & Brasil '66.
Ao lado, capa do single Sonoplay SP 20.002 - 1969, com "Peter and Paul" e "Flip Side"


A música era do Rui Ressurreição e estava já pronta, depois de uma tarde passada a partir pedra na sala de ensaios que ocupávamos na ala nordeste do edifício da Associação Académica. Faltava a letra e o Rui sugeriu que a pedíssemos ao Zé Niza ou à Isabel, sua mulher, cuja formação em Germânicas facilitaria a escrita bilingue. Lá mais para a noite, estávamos no Mandarim, o café onde sempre poisávamos, numa das mesas debaixo das escadas que ligavam ao andar de cima. Chega o Zé Niza, ouve o trautear da melodia – muito simples, como era timbre da época – pede-se um guardanapo ao Sô Talina e, enquanto se beberrica mais um fino, é esboçada a letra em português, que viria a ser parcialmente retrovertida pela Isabel e a receber o nome de Peter and Paul. Aqui ficam as duas primeiras quadras:

          I don't know the reason

          Tell me what to say
          While Peter is hungry
          Paul eats everyday


          Eu não sei porquê
          Não sabe ninguém
          Se Paulo tem casa
          Seu irmão não tem


Completamente ao lado do que eram os standards de um conjunto yé-yé, mas perfeitamente alinhada com as preocupações de quem viria a escrever na sua autobiografia: «Agradeço à vida o que me deu. Não tenho livro de reclamações a não ser para lutar pelos direitos dos pobres, dos humildes e para que haja mais justiça e solidariedade em Portugal.» Não há qualquer dúvida – Zé Niza era um produto da Coimbra solidária dos anos 60, da Coimbra onde germinou a canção de intervenção que viria a dar os seus frutos na década de 70.

O Zé Niza começou a acompanhar fado de Coimbra à viola, arte que trazia de Santarém. Mas cedo resolveu experimentar a guitarra eléctrica, tendo sido fundador da Orquestra Ligeira do Orfeon Académico de Coimbra, no rodar da década de 50 para a de 60, com António Portela (no acordeão) e outros. À data em que os conheci, por volta de 1964, o conjunto estava no auge. Tinha, então, para além do Zé Niza na guitarra eléctrica, o Rui Ressurreição (pianista, xilofonista e acordeonista de mão-cheia, admirador do Sivuca)o Joaquim Caixeiro na bateria, na viola-baixo o Daniel Proença de Carvalho (que me lembro de ver num Sarau da Queima a cantar música mexicana no Trio Los Dos, assim chamado por haver sempre um que faltava aos espectáculos) e, como vocalista, o Zé Cid, que cantava igualmente naquele trio. Era um quinteto com o instrumental e o repertório típico da transição da década de 50 para a de 60. Interpretavam música brasileira, italiana, francesa, americana… Eram exímios nos arranjos vocais e muito bons no jazz e na bossa-nova. Estávamos na época de O Pato e do Desafinado.
Foto tirada nos estúdios da RTP, numa fase em que António Portela ainda fazia parte do grupo e em que José Niza tinha interrompido os estudos, sendo Proença de Carvalho o guitarra. São eles, a partir da esquerda: António Portela, Joaquim Caixeiro, Rui Ressurreição, José Cid e Daniel Proença de Carvalho.

Mais tarde, os quatro instrumentistas da Ligeira do Orfeão formaram o Quarteto de Jazz do Orfeon. Mário Castrim, o verrinoso crítico televisivo do Diário de Lisboa, tentou deitá-los abaixo por não conceber um quarteto de jazz sem metais e com guitarra eléctrica, o que muito enfureceu o Zé Niza, que lhe remeteu de presente uma lista de consagrados quartetos de jazz com idêntica formação.

Quanto ao Zé Cid, o único que viria a enveredar pelo profissionalismo e que deixou Coimbra mais cedo para frequentar o INEF (Instituto Nacional de Educação Física), em Lisboa, fora já pianista, acordeonista e vocalista dos Babies, conjunto que viveu entre 1958 e 1960, e que poderá ter sido a primeira banda rock portuguesa. Os Babies contavam ainda com António Portela (acordeão e piano), António Igrejas Bastos (bateria, voz e contrabaixo), Rui Nazareth (guitarra eléctrica), aparecendo, também, Luiz Cabeleira na bateria.
Na foto, a partir da esquerda, António Portela, Luiz Cabeleira, José Cid, Igrejas Bastos e Rui Nazareth.



De 1960 a 1962 foi a era dos TigresCom Abílio Soares no contrabaixo e Zé Carlos Nascimento Costa na bateria, tinham como pianista Amândio Cruz, como acordeonista António Oliveira Santos e, na guitarra eléctrica, o Frias, que tocava o Guitar Boogie como ninguém mais em Coimbra. Curiosamente, o Frias, que conheci agarrado à guitarra eléctrica, viria depois a abraçar a guitarra de Coimbra, ficando mais conhecido por Frias Gonçalves.
Na foto, os Tigres no Café Nicola em 4/2/1961. A partir da esquerda: Abílio Soares, Aroso (técnico de som), António Oliveira Santos, Amândio Cruz, Frias e Nascimento Costa.




Mantendo o mesmo tipo de instrumental mas sem contrabaixo (que já nos Babies nem sempre era utilizado), surge, no início do ano lectivo de 1962/63, pela mão do pianista Nelson Martins, mais um grupo académico, Nelson Martins e seu Conjunto, o qual tem como acordeonista uma rapariga  Marinela , hoje Marinela St Aubyn  facto inédito em Coimbra, onde o meio académico-musical era essencialmente masculino. O conjunto contou com inúmeras actuações, dentro e fora de Coimbra, dado que, por essa altura, a procura começava a crescer. Do conjunto faziam ainda parte o Frias (ex-Tigres) na guitarra eléctrica e o Humberto Cordeiro como vocalista; na bateria sentava-se o Braga da Cruz, que deixou, mais tarde, o lugar ao Zé Pereira.
Nelson Martins e seu Conjunto nas Patelas. A partir da esquerda, no plano superior da foto, Braga da Cruz e Marinheiro (amigo do grupo); no plano inferior, Nelson Martins, Marinela e Frias.

Também por esta altura, 1962/63, apareceram os Beatniks, conjunto que não terá durado mais do que um ano. Nele tocaram o Rui Ferraz ao piano, o Abílio Soares (ex-Tigres) no contrabaixo, o Maia de Carvalho na bateria e, na viola, nada mais nada menos do que o Rui Pato , mais conhecido por ter acompanhado Zeca Afonso durante largos anos mas que não deixou de fazer, também ele, uma perninha nos conjuntos de baile.

Lembro-me ainda dos Alybaba e do Conjunto Braga da Cruz, que tinham como líder o Armando Braga da Cruz (ex-Nelson Martins) e a que pertenceram o Ivo, o Aragão, o Marinheiro e o Victor Ferreira.

Mas poucas referências tenho do conjunto onde tocava o Cabeleira e seu irmão mais novo (um putozito), conjunto que me parece ter tocado no baile de estreia dos Álamos no salão da FNAT, à Estação Nova.

E não gostaria que ficasse esquecido o papel precursor da Orquestra Ligeira da Tuna (anos 50), e também o da Orquestra Ligeira do Orfeon Misto (início dos anos 60), onde a Marinela tocou acordeão e o Chico Brito tocou piano e foi vocalista.  


Fechando o ciclo dos conjuntos com a formação "clássica" – piano, acordeão, guitarra eléctrica, contrabaixo, bateria e vocalista – é hora de falar dos Scoubidous. Começaram muito novos, ainda no liceu, estávamos no início de 1961, e manter-se-iam por 6 anos. Na época do twist, rock e slow-rock, ritmos que eles interpretavam na maravilha, nos seus smokings reluzentes, cheios de estilo, tinham um repertório muito alegre e variado. O maior êxito que lhes recordo é o Sabeline. O grande maestro era o Tozé Albuquerque, o pianista. Tinham o Zé Tó à bateria, um tipo com ar malandreco que usava uns óculos escuros estreitinhos, que viriam décadas mais tarde a ser copiados pelo Pedro Abrunhosa (se é que ambos os não foram copiar ao baterista do Conjunto Académico do Porto, Toni Hernandes). No contrabaixo, acordeão eléctrico e vibrafone estava o meu colega de curso (em Coimbra e no Porto) António Santos Andrade, enquanto na guitarra eléctrica (de caixa semiacústica, à Elvis Presley) tocava o seu irmão Zé, que um belo dia foi proibido pelo clínico de fazer coros, abrindo-se ao Alberto Velho Nogueira – "Alberty Pente" – a oportunidade de entrar para o grupo e fazer depois uma perninha de saxofone. Deixei para o fim o vocalista (e, quando necessário, contrabaixista) Júlio Maia, também conhecido por "Júlio Scoubidou", brilhante a interpretar em qualquer língua. Talvez por ser aluno de Letras, tirava minuciosamente as letras das canções ao gira-discos, com uma trabalheira danada, sendo, porventura, o único vocalista daquela época que as não aldrabava. Era o início dos anos 60 e só muito mais tarde os discos começaram a trazer consigo as letras.
Na foto, ainda antes dos smokings reluzentes, numa indumentária muito jovial: a partir da esquerda, Tózé Albuquerque, José Santos Andrade, Júlio Maia, Zé Tó (José Augusto) Gouveia e António Santos Andrade.


Estávamos em 1962, às voltas ainda com Bill Haley & His Comets, Paul Anka, Marino Marini e Françoise Hardy, quando nos chegam de Inglaterra os ecos de Cliff Richard and the Shadows a tocar The Young Ones e, de França, o som dos Les Chats Sauvages com Est-ce que tu le sais e Twist à Saint-Tropez. Foi a revolução! O piano tinha ido às malvas! O contrabaixo, atirado para o lixo, dava definitivamente lugar à guitarra-baixo. Toda a força estava agora em três guitarras eléctricas sem caixa de ressonância  os "bacalhaus" –, ora "rockeiras" ora roçando uma maviosidade piegas, secundadas por uma bateria e um vocalista. Quase em simultâneo, chegavam-nos os Beatles, com o mesmo instrumental mas onde a função do vocalista era desempenhada pelos três guitarras, que berravam desalmadamente: yeah, yeah, yeah! Entrávamos, assim, no reino dos conjuntos yé-yé!

Coimbra não perde a oportunidade… e surgem Os Álamos, conjunto composto apenas por universitários, com prevalência das Engenharias, que viria a ser o conjunto de Coimbra mais disputado para tudo o que fosse baile por esse país fora, das passagens de ano aos Carnavais e à Queima, dos finalistas de liceu aos bailes das Faculdades, de Chaves a Faro, do Casino do Estoril ao Hotel Savoy na Madeira. Os Álamos formaram-se no primeiro trimestre de 1962/63, estrearam-se no início de 63 e duraram quase até ao final de 68/69. Com forte componente vocal nos seus arranjos musicais, eram especialmente dotados na música Beatle, mas tocavam tudo o que estivesse a dar (desde que não fosse nacional-cançonetismo), do slow para constituir família ao rock mais assanhado.
Foto tirada em 63/64 no varandim do Bar das Medicinas. A partir da esquerda, de pé: Zé Veloso e Chico Faria; abaixados: Luís Colaço, Nuno Figueiredo e Duarte Brás
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Apesar de serem um dos melhores conjuntos de baile nacionais, pedindo meças aos grupos profissionais com que alternavam, o primeiro disco saiu mauzinho. Sendo obrigados pela editora a incluir um tema em português, gravaram O Comboio, música oferecida pelo Zé Cid, que o conjunto nunca mais tocou mas que é a única que vai passando na rádio. Razão tinha a editora...
Capa do EP da Rapsódia EPF 5.305. A partir da esquerda, em cima: Chico Faria, Zé Pereira e Zé Veloso; em baixo: Duarte Brás e Luís Colaço

A estrela do cartaz foi, até ser apanhado pela tropa, o Chico Faria, mais conhecido por "Chico dos Álamos" ou "Chico dos 1000-y-onários”, que, conforme dizia o Sô Chico, porteiro da Associação Académica, era «o que tocava microfone»; a forma como interpretava o I can’t stop loving you ainda hoje estará na memória de quantos iniciaram os seus namoros dançando  e declarando-se – ao som daquela música. No primeiro ano, o Chico deixava para um segundo vocalista, o Zé Gouveia, algumas das músicas em francês e italiano. Na bateria começou o Nuno Figueiredo, que abandonou o conjunto mais cedo por ter ido para o Técnico, entrando para o seu lugar o Zé Pereira (ex-Nelson Martins), que com o Chico fazia a dupla dos mais brincalhões, armando histórias e barracadas por onde o conjunto passava. Nos três "bacalhaus" que, quando necessário, gingavam em palco à maneira dos Shadows, alinharam, por via de regra: como guitarra-solo, o Luís Filipe Colaço (Phil), que viria a acompanhar Zeca Afonso em dois dos seus LP's e que ainda hoje se diverte a solar como o Hank Marvin; como guitarra-ritmo, o Duarte Brás, açoriano dos Corsários das Ilhas, que assumiu o lugar de vocalista quando o Chico foi apanhado pela tropa e que viria a formar o duo de música popular Duarte & Ciríaco; e eu próprio, Zé Veloso, que, por ter sido o último guitarra a chegar ao conjunto, fui obrigado a aprender o ofício de guitarra-baixo e ainda tinha que "fazer as séries" (o alinhamento do espectáculo, como se diria hoje). Mas bem me vinguei deles ao assumir o difícil cargo de tesoureiro, uma espécie de ministro das finanças a quem cabia cortar nos vales de caixa e demais mordomias, já que a compra dos instrumentos e aparelhagens nos obrigou a vários e penosos anos de austeridade, sem troika ou "paitrocínio" que nos resgatasse.

Naturalmente, os Álamos não foram os únicos a aderir à moda das três guitarras, tendo aparecido outros, dos quais destaco, por ordem de entrada em cena:

  • Os Lordes, onde o solista era o Nelo Brito, o viola-ritmo e segundo vocalista era o Luís Requixa (que tantas vezes me emprestou o seu casaco de cabedal para as minhas performances nos Álamos...), o baixista era o Zé Eduardo Costa,  e o baterista e vocalista principal era o Luis Monteiro. Foram o segundo conjunto de três guitarras a aparecer em Coimbra, quase um ano depois de terem surgido os Álamos. Composto por malta bastante nova, o conjunto estreou-se no Natal de 1963 e dissolveu-se em 1966;
    Foto dos Lordes no Escadote (Quinta das Lágrimas). A partir da esquerda, de pé: Luís Monteiro e Nelo Brito; sentados: Zé Eduardo Costa  e Luís Requixa
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  • Os Protões, grupo composto por malta do Bairro Marechal Carmona (hoje, Norton de Matos): Nóbrega Pontes na guitarra-solo, António Carlos Couceiro na guitarra-ritmo, Fernando Dias (Nando) no baixo,  Jorge Carvalho (Jó) como vocalista e, na bateria, Zézé (José Eugénio) Eliseu, neto do maestro José Eliseu, compositor da música da Balada de Coimbra; 
    Foto dos Protões. A partir da esquerda: de pé, Nóbrega Pontes, Zézé Eliseu e Jó; no primeiro plano, Nando e Couceiro.


  • Os Cocktails,  "conjunto-cometa" formado para concorrer ao Concurso Yé-Yé do Teatro Avenida em 66, concurso a que não concorreram os conjuntos já "consagrados" (Álamos, Lordes e Boys) e que os Cocktails acabariam por ganhar. Terminado o festival, não foram longe;



  • Os Pops, que juntaram malta dos Lordes, Protões e Cocktails, onde solava o Luís Romão, era viola-ritmo o Joca Colaço (que chegou a integrar os Álamos numa temporada de Verão na Madeira), era baixista o Nando, baterista o Luís Monteiro e organista (uma novidade!) o Kali (João Carlos Mota). Congregando a nata dos músicos yé-yé da geração mais jovem, tocavam de forma agressiva, bem ritmados, virados para um público-alvo teenager. Porém, tendo-se formado em 1967, o pouco tempo de vida (2 anos) não deu para deixar grande rasto fora de Coimbra;
    Na foto ao lado, a partir da esquerda, Fernando Dias (Nando), Luís Romão, Luís Monteiro, Joca Colaço (irmão do Luís Filipe Colaço dos Álamos) e Kali (João Carlos Mota)
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  • Os In loco, posteriores à desagregação dos Protões, compostos pelo Frederico Aguiar (guitarra-solo), pelo Jorge Gomes (guitarra de 12 cordas), pelo Tójó – António Jorge Simões – (guitarra-baixo), pelo Zézé Eliseu (bateria) e pelo Rui Mesquita (vocalista).
Porém, acima de todos estes últimos, estavam os Boys, formados em 1964, conjunto que, em determinada altura, se assumiu com challenger dos Álamos e com o qual mantínhamos uma saudável rivalidade. Os Boys – cujo nome não tinha qualquer conotação pejorativa, já que à data nem partidos políticos existiam – tinham como ponto forte uma boa parte do repertório dos Shadows, graças ao virtuosismo do guitarra-solo Carlos Correia, mais conhecido por Boris, que acompanhou mais tarde Zeca Afonso em dois LP's. De início, o vocalista era o Victor Ferreira; e também o meu cunhado António Dias Figueiredo tocava harmónica em algumas músicas. Lá estavam também o Xana Rebocho Vaz na guitarra-baixo, o Manecas (Luís Manuel Matos) na guitarra-ritmo e o Tonã Vieira Lima na bateria.
Na foto, a partir da esquerda: Carlos Correia, Tonã Vieira Lima, Alexandre Reboxo Vaz, Victor Ferreira e Luís Manuel Matos (Manecas)

Concorreram ao Concurso Yé-Yé do Teatro Monumental, em Lisboa, tendo ganho a 11.ª eliminatória em Nov/65. Um dos temas que mais gostava de os ouvir interpretar era o She's not there dos Zombies.

A malta dos Boys vivia na Cumeada, tal como eu. Ainda no liceu, sonhávamos com a possibilidade de vir a tocar em público. Numa bela noite, pelas fogueiras do S. João, ainda não havia Álamos nem Boys nem o mais que fosse, dei comigo a tocar meia dúzia de músicas com o Manecas, o Tonã e o Victor Ferreira num assim chamado "baile de sopeiras", no campo de basket dos Olivais, de onde só não fomos corridos porque, no meio da refrega corpo-a-corpo, a música era o que menos interessava a quem se espremia na pista (e as falhas de ritmo até deviam dar jeito). Tocámos então com os instrumentos do conjunto de serviço – Ilídio Martins – que era o melhor conjunto futrica de Coimbra. Foi a primeira vez que agarrei numa guitarra eléctrica e que o Tonã se sentou numa bateria, pois que, até então, eu só tocara na minha velha viola de cravelhas de madeira e ele só batera baquetas num caixote de tabuinhas.


Voltando aos Boys, de 66 para 67 o grupo apareceu transfigurado em Hi-Fi, a tocar de forma muito "profissional", com novo baterista – Tó Freitas – e a novidade de ter como vocalista uma rapariga – Ana Maria Delgado – coisa nunca vista no meio dos conjuntos yé-yé. Gravaram, então, um 45 rotações com 4 faixas – todas em inglês, como não podia deixar de ser – disco que teve a colaboração do Rui Ressurreição (órgão, piano e arranjos) e que ficou muito bom. Entretanto, saiu a Ana Maria, e o Luís Monteiro tomou o lugar do Tó Freitas, passando o Boris e o Luís Monteiro a assumir as principais despesas do naipe de vozes. Antes de se dissolverem, ainda gravaram um segundo EP.
Capa do primeiro EP, Parlaphone LMEP 1271 -1967 com "I call your name", "Back from the shore", "Three days of my lyfe" e "Words of a mad". A partir da esquerda, Boris (Carlos Correia), Ana Maria Delgado, Manecas (Luís Manuel Matos), Tó Freitas e Xana Reboxo Vaz.

E os conjuntos académicos dos anos 60 foram-se dissolvendo um após outro, à medida que os músicos iam acabando os seus cursos – ou eram chamados para a tropa – e a dança se transferia dos salões de baile, do Bar das Medicinas e dos ginásios de liceu para as boîtes e discotecas.

Os Álamos foram os mais tenazes, conseguindo viver 7 anos, tantos quantos eram necessários para terminar um curso de engenharia (6) com direito a mais 1 para os descontos. Nos últimos anos, o conjunto tinha elementos a estudar em Coimbra, Porto e Lisboa. Só dois se mantiveram desde a fundação até ao final (Luís Colaço e Zé Veloso). As baixas dos que saíam eram colmatadas com os melhores elementos dos grupos em extinção: entraram o Rui Ressurreição da Ligeira do Orfeão / Clube de Jazz, o Tózé Albuquerque dos Scoubidous, o Luizinho Monteiro, que tinha passado pelos Lordes, Pops e Hi-Fi, e o Boris dos Boys / Hi-Fi – um filho pródigo, pois se tinha iniciado nos Álamos em 63/64 – que veio cumprir o duplo papel de solista na guitarra e na voz. Foi nessa altura que gravaram dois singles, num total de quatro faixas.
Capa do single Sonoplay SN 20.191 -1969 com "It's a new day" e "Stop that game". A partir da esquerda, Luís Colaço, Rui Ressurreição, Zé Pereira, Boris (Carlos Correia), Zé Veloso e Tózé Albuquerque.


Com as novas entradas, o conjunto ganhou melhores músicos e passou a integrar também teclas (órgão em palco, órgão e piano em disco). Aumentou-se a complexidade dos arranjos. Subiram a qualidade musical e o cachê. Mas o grupo manteve-se sempre ligado à vida académica, sendo que, já no passado, tinha acompanhado em várias digressões o Coro Misto e o Orfeon Académico. E sempre terminava as actuações com I saw her standing there, tal como o Orfeon as terminava com o Amen, até ao dia em que tocámos pela última vez, talvez em Abril de 1969, num baile que não ficou na memória de ninguém. Era suposto que o conjunto terminasse em beleza na Queima das Fitas mas nesse ano não houve Queima e foi cada um à sua vida sem qualquer despedida, que os exames vinham a caminho e a profissão de músico não estava nos nossos horizontes.

No meio de tanta gente aqui citada, alguns deles músicos de primeira água, muito poucos foram os que se profissionalizaram. Que eu saiba, apenas António Portela, José Cid, Nelson Martins, Luís Romão e Luís Monteiro. É certo que, na altura, não era fácil viver da música. Mas, claramente, os objectivos pessoais não passavam por aí... e por alguma razão estes grupos se denominavam «conjuntos académicos».  

Que me perdoem os leitores, um texto que saiu mais extenso do que o habitual. Mas a morte inesperada do Zé Niza lembrou-me que outros companheiros se foram embora já. Alguns deles, porventura, sem uma palavra escrita que ficasse a recordar a sua passagem pela música que também e (tão bem) se fazia em Coimbra, pois que nem só o fado e a balada por lá se tocavam e cantavam. Foi a pensar em quantos me acompanharam e, em especial, na memória dos que nesta data já partiram, que a crónica de hoje foi escrita.

Um abraço para todos eles. E a saudade que nos deixam o Zé Niza, o Rui Ressurreição, o Manecas, o Luís Requixa, o Joca Colaço, o Nando e o Ciríaco.

Zé Veloso


NOTA: Esta crónica foi escrita inicialmente em 7 de Outubro de 2011, apenas com os dados que possuía de memória. Em Agosto de 2016, sem nada alterar ao espírito do escrito inicial, entendi dever completá-lo com dados entretanto recolhidos, quer sobre conjuntos que no texto anterior estavam em falta quer sobre nomes de músicos e outros detalhes que não tinham sido referidos ou que não estavam correctos.

Origem das fotografias:
José Niza - internet 
Orquestra Ligeira do Orfeon Académico de Coimbra, Babies, Protões, Pops e Boys - blogue IÉ-IÉ (guedelhudos.blogspot.com)
Tigres - Frias Gonçalves
Nelson Martins e seu Conjunto - Frias Gonçalves e Marinela St. Aubyn
Scoubidous - Júlio Maia
Lordes - José Eduardo Costa
Álamos - acervo dos Álamos