25 março 2015

COIMBRA, P’RA SER COIMBRA…


Coimbra, p’ra ser Coimbra
Três coisas há-de contar
Guitarras, tricanas lindas
Capas negras a adejar.

Esta é a quadra mais cantada e mais conhecida do chamado Vira de Coimbra, uma canção de raiz popular – mais tarde apropriada pelos estudantes – cujas origens são anteriores ao século XVIII [1]. A sua música, para além de ser dançada como vira que é, servia igualmente para cantares ao desafio entre as gentes da cidade, fossem eles estudantes, futricas ou tricanas, como acontecia nas tabernas e bordéis ou por altura das antigas fogueiras. Por tal razão, o Vira de Coimbra é hoje cantado com uma panóplia de quadras soltas diversas, provenientes de várias épocas, por vezes improvisadas no calor do descante e contradizendo-se, até, entre si, como acontece com as que caracterizam de forma tão díspar o “amor do estudante”. Veja-se que, para o futrica intriguista, «dizem que amor de estudante não dura mais que uma hora» enquanto, para a tricana apaixonada, «só o meu é tão velhinho qu’inda se não foi embora».

Mas voltemos à quadra «Coimbra p’ra ser Coimbra…» que evoca uma certa Coimbra Académica de antanho, boémia, apaixonada e vibrante, que se foi perpetuando ao longo de muitas gerações universitárias e que ainda não morreu de todo, seja porque ainda hoje anda pela cidade seja porque continua viva na memória de muitos que por lá andaram no passado.

«Coimbra p’ra ser Coimbra…» tem tudo o que uma quadra precisa para resultar bem:
  • Desde logo e a abrir, um número cabalístico – «três coisas»!
  • A seguir, as «guitarras» – românticas, vibrantes, pungentes, nas mãos jovens e apaixonadas de um estudante – com o único senão de, como regra, os grandes guitarristas de Coimbra não terem sido os estudantes, mas sim, futricas ou antigos estudantes!
  • Depois, as «tricanas lindas», essa estirpe de mulher onde nunca foi descrito um só exemplar que não fosse belo!
  • E, por fim, as «capas negras», essas capas da cor da morte e da tristeza que, paradoxalmente, quando postas «a adejar», irradiam a alegria da juventude, da nossa Coimbra académica de sempre!

Porém, estas «três coisas» – guitarras, tricanas lindas e capas negras – nem sempre coexistiram ao longo dos 530 anos de permanência da universidade em Coimbra e não terão convivido em conjunto por mais de algumas décadas, não chegando, porventura, a meio século, como veremos adiante.

Das guitarras…

Comecemos pelas guitarras. É sabido que desde muito cedo os estudantes cantaram pelas ruas de Coimbra, sozinhos ou acompanhando os seus habitantes. Eram cantos de saudade e de amor, bem como cantigas populares. É também sabido que, nesses cantares, normalmente nocturnos, os estudantes se faziam acompanhar por instrumentos vários, entre os quais cordofones, mas não necessariamente por guitarras, já que estas só viriam a aparecer em Coimbra pelo século XIX, seja na sequência da entrada em Portugal da guitarra inglesa, como têm afirmado vários autores, seja através da evolução da cítara portuguesa, a guitarra-cítara, como mais recentemente se tem vindo a admitir [2]. Mas tanto no séc. XIX como no início do séc. XX, «a guitarra portuguesa não era o instrumento predilecto, entre a comunidade estudantil ou popular. Na verdade, os instrumentos de corda mais tocados seriam a viola toeira, o violão, o cavaquinho, o bandolim entre outros» [2]. E foi o malogrado Augusto Hilário, que estudou em Coimbra entre 1889 e 1896, vindo a falecer de tuberculose antes ainda de terminar o curso de Medicina, a primeira grande referência de estudante de Coimbra cantor e tocador de guitarra. Ainda que celebrizado pela sua voz, o seu nome ficaria para sempre ligado ao seu instrumento de eleição: «Eu quero que o meu caixão tenha uma forma bizarra… a forma de um coração, a forma de uma guitarra!...»

Para o comum dos mortais, a guitarra que por aquele tempo se tocava em Coimbra, bem como no resto do país, pouco diferiria das de hoje. Mas, para os mais conhecedores, as diferenças existem e são bem grandes. Foi nas décadas de 20 e 30 do século passado que Artur Paredes, um guitarrista exímio, futrica como o eram os melhores guitarristas de Coimbra daquela época, revolucionou o instrumento, alterando-lhe significativamente a fisionomia (e, também, a afinação e a forma de o tocar). Primeiro, com a ajuda da pequena oficina de Raul Simões, guitarreiro de Coimbra; depois, em parceria com os guitarreiros de Lisboa Kim Grácio e João Pedro Grácio, Artur Paredes faria surgir, por volta de 1940, um modelo de guitarra com uma nova sonoridade, que, aos poucos, ganharia o seu espaço e que é hoje adoptada pela quase totalidade dos grandes guitarristas portugueses, independentemente da sua proveniência. Na prática, a guitarra de Coimbra tornou-se a guitarra portuguesa. E o ensino da guitarra em Coimbra que, no meu tempo de estudante, estava a cargo do barbeiro da AAC, tem hoje escolas e professores com fartura… e até as estudantes já aprendem a tocar tal instrumento.

Das tricanas lindas….

Quando o valor da nova guitarra de Artur Paredes foi finalmente reconhecido em Coimbra, na sequência da sua aparição numa serenata na Sé Velha em 1945 (embora futrica, Paredes tocava igualmente no meio académico sendo aceite como um dos seus), já as tricanas tinham deixado de ocupar, na vida dos estudantes, o espaço que tão bem tinham sabido reservar para si durante quatro séculos.

Mas quem eram elas, afinal? De uma forma geral, eram as mulheres da classe baixa da terra: mulheres do campo, lavadeiras, engomadeiras, criadas de servir. Não só em Coimbra se chamavam assim. Também em Ílhavo, Aveiro ou Ovar havia tricanas. Curiosamente, tricana era também o nome dado à saia que usavam e ao pano de que era feita essa saia.

Entre as tricanas havia muita rapariga nova e bonita. À falta de raparigas, numa terra onde havia uma população flutuante de milhares de rapazes solteiros que estavam fora de casa meses e meses a fio, fácil é de perceber que nenhuma delas chegasse a ser feia. O cortejar dos rapazes era constante, «namoriscando as moças com parolas latinas» [3]; moças simples, à procura de sonhos e melhores condições. Com o tempo, as tricanas foram realçando os seus encantos naturais; de geração em geração, o contacto com gente mais culta permitiu-lhes algum refinamento e sofisticação. Algumas tornaram-se verdadeiras cortesãs. Outras acreditaram, simplesmente, que um amor verdadeiro e um futuro melhor as esperaria no final de anos de promessas doces e carícias ardentes. Terminados os cursos, ficavam por vezes os “rebentos”, cuja paternidade faziam questão de não esconder. Li algures que futrica – um nome que fede à distância – seria uma corruptela de fitrica, sendo fitrica uma abreviatura de filho de tricana. E mais não digo. Quereis saber o porquê dessa animosidade ancestral entre estudantes e futricas? Cherchez la femme!

Mas, um belo dia, algo começa a mudar: numa universidade onde nunca se formara uma só mulher, forma-se a primeira nos finais do séc. XIX; e se até 1912 o número máximo de alunas por ano era apenas de oito, a partir daí não pára de aumentar; e, no início da década de 40, rondava já os 20%. A pouco e pouco, as tricanas foram deixando de ser tão lindas… e, com o rodar do tempo, foram perdendo definitivamente a importância que tinham no coração dos estudantes, até se tornarem figuras de folclore do Rancho de Coimbra. Como dizia o poeta, «todo o mundo é composto de mudança».

Das capas negras a adejar…

Quando D. João III transferiu definitivamente a universidade para Coimbra, já as capas negras faziam parte da indumentária dos escolares, embora o traje fosse diferente do de hoje. As capas negras vêm, por isso mesmo, de tão longe quanto as tricanas mas, ao contrário destas últimas, conseguiram renascer das cinzas das duas vezes em que estiveram moribundas no passado século XX.

A última vez em que tal aconteceu já pouco interessa para estas contas, pois que também as tricanas já por cá não andavam. Foi ao longo de toda a década de 70, durante o luto que se seguiu à crise académica de 1969. Com luto não há praxe nem festas e sem elas ninguém gasta dinheiro na compra dum traje que tem dificuldade em competir com a moda dos blue jeans e que, ainda por cima, foi conotado com a reacção por obra e graça dos movimentos revolucionários. Nesta década, a capa e batina haveria de sumir-se de todo, o que levou a Câmara Municipal, preocupada com a preservação dos ex-libris da cidade, a isentar de bilhetes nos eléctricos os estudantes que se apresentassem com ela vestida!

O outro período de rejeição das capas negras foi do final do séc. XIX até ao início dos anos 20 do século passado, quando a capa e batina, para além de ter sido muito contestada, foi igualmente aviltada, chegando a usar-se coletes, calças ou gravatas de outras cores que não a preta. Aliás, a contestação à obrigatoriedade do uso do traje dentro do perímetro universitário era de tal maneira forte, que o dito uso foi tornado facultativo apenas 19 dias depois de instaurada a República!

E, como corolário da baixa estima que então havia pelas capas negras, aqui fica o registo da primeira quadra do “Vira de Coimbra” gravado por Lucas Junot para a Columbia em Maio de 1927, onde «um estudante a cantar» aparece em lugar das «capas negras a adejar» [1].

Coimbra, p’ra ser Coimbra
Três coisas há-de contar
Guitarras, tricanas lindas
E um estudante a cantar.

Resumindo e concluindo…

Quanto à guitarra, apesar de se saber que por todo o século XIX ela já era tocada em Coimbra em salões de dança e teatros [2], não é possível apontar a data em que passou a ser utilizada pelos estudantes nas suas serenatas; mas é bem provável que tal tenha acontecido já no declinar do séc. XIX. Com alguma segurança, é Augusto Hilário a primeira figura de peso que associa a guitarra aos estudantes e à serenata de Coimbra, o que acontece na primeira metade da década de 1890. E, a partir daí, tal associação continua até aos dias de hoje, sem qualquer descontinuidade.

Quanto às tricanas, a sua origem é anterior à vinda dos estudantes para Coimbra. E é seguro que, no início dos anos 30, ainda tinham lugar central no imaginário romântico do estudante masculino, como bem o prova a capa do livro de curso ao cimo, datado de 1932. Porém, admito que esse papel se tenha diluído ao longo de toda a década de 40. Ficamos, assim, com cerca de meio século de coexistência das guitarras com as tricanas. Poderá, até, ter sido um pouco mais.

Mas, ao entrarmos com as capas negras, teremos de descontar a segunda década do século XX, que foi uma década madrasta para a capa e batina, em que muitos não a usaram e muitos outros a usaram mal. Como dizia o outro: «É só fazer as contas…».

Zé Veloso

[1] Conforme António Manuel Nunes, in Registos fonográficos de Lucas Rodrigues Junot (1902-1968), Guitarra de Coimbra (Parte I), http://guitarradecoimbra.blogspot.pt/2005/05/registos-fonogrficos-de-lucas.html.

[2] Conforme Luis Pedro Ribeiro Castela, in A Guitarra Portuguesa e a Canção de Coimbra. Subsídios para o seu estudo e contextualização, Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras, 2011.

[3] Segundo a Eufrósina, peça teatral escrita à volta de 1542, cinco anos depois de D. João III ter transferido de novo a universidade para Coimbra.

- A primeira foto, cedida pela Dra. Ana Maria Barros, é da capa do Livro do Curso de Medicina de 1927-33, a que pertenceu seu pai, o professor de Obstetrícia Dr. Albertino da Costa Barros. Pertenceram também a este curso outras conhecidas figuras de Coimbra, de que destaco o Dr. Adolfo Rocha (Miguel Torga) e o Dr. Júlio Pais Mamede (Condorcet).
- A foto do Hilário foi obtida pelo autor do blogue, a partir de um painel de uma exposição temporária sobre a guitarra de Coimbra, no Edifício Chiado.
- A foto da guitarra de Coimbra foi obtida da internet.
- A foto da estátua da tricana (que se encontra a meio do Quebra Costas) foi tirada pelo autor do blogue.
- A última foto foi obtida do livro Coimbra Vida Académica, de Cristina Henriques, …

10 março 2015

TEIXEIRA, UM FUTRICA ESTUDANTE!

Parte I
Quem não se lembra do Teixeira? – Ó ‘tor, tem aí um cigarro? – Não fumo, pá! – Umm… ó ‘tor, então paga-me um fino e uma sandes?
Figura bizarra, fisicamente distorcida, um misto de homem e criança… conheci-o na década de 50, era eu bicho no D. João III – hoje José Falcão. Nessa altura ele engraxava numa barbearia que ficava no 13 da Tenente Valadim, um pouco à frente do quiosque que faz esquina com a Praça da República. O corte de cabelo ficava em 4$00, mais 5 tostões de gorjeta e outro tanto para o Teixeira engraxar, ou seja, com 5 mil reis estava a festa feita.
O Teixeira, que décadas mais tarde viria ser conhecido por “Taxeira”, andaria nessa altura pelos 30 anos mas a sua figura pouco se modificou depois disso. É que o tempo ia passando... e o Teixeira não. As gerações de estudantes foram deslizando à sua frente, à razão de duas por década, mas o Teixeira era sempre o mesmo, ainda que a imagem que ele de nós via se lhe fosse toldando na retina, à medida que a sua imagem em nós tão nítida permanecia.
Estou a vê-lo agora na barbearia! De fato-macaco azul, sentado à minha frente sobre a caixa da ferramenta, por certo em terceira mão e com a madeira surrada do castanho e preto da graxa. Cabelo farto, de poupa à Elvis, barba de uma semana – santos de casa não fazem milagres... – cigarro encharcado ao canto da boca – "Provisórios"? "Definitivos"? "20-20-20"? Talvez “Kentuky”, que a cigarro dado não se olha a marca… – uma perna encolhida, outra estendida na minha direcção. Penso que nessa altura não usava ainda sapatilhas.
Ao que me lembre, era um pouco trapalhão na sua arte: punha a graxa com os dedos, deixava que a dita lambesse as meias do cliente e julgo que, de quando em vez, cuspia no pano para melhor fazer correr o lustro. Olhar ausente, resmungava as últimas da Académica nos raros intervalos que o barbeiro deixava para intervenções alheias. Às vezes zarpava da barbearia sem aviso, para exaspero do Sô António, o qual acumulava as funções de barbeiro com as de patrão e contava com o Teixeira para combater a concorrência da barbearia da porta mesmo abaixo, onde o Sô Carlos lhe disputava a clientela.
Mas o Teixeira, não dava a sensação de ter um gosto especial pela profissão de engraxador, o que só lhe creditava sabedoria. Do que ele gostava mesmo era de ir com a malta! Ir nas latadas, saltar para arena na garraiada, posar em tudo o que fosse fotografia de curso, rasganço ou cortejo da Queima, viver na crava pelas Repúblicas e cafés, apregoar o Ponney e a Via Latina com a sua voz roufenha, conviver de igual para igual com os da sua classe: os estudantes!
E a malta, que na sua irreverência juvenil tantas vezes é cruel para as figuras bizarras da sociedade, a malta brincava com ele mas não o gozava ou, se o fazia, era com o carinho com que se trata um irmão mais novo. Alguém me contou que o Teixeira sabia dois poemas de cor e os recitava (à sua maneira…), a pedido e em cima dum banco; mas só o fazia depois de se certificar de que não andassem futricas por perto. Afinal, ele tinha sido um dia proclamado “Quartanista de Medicina honoris causa” e tratava os caloiros por tu, como conta Reis Torgal no seu Coimbra – Boémia da Saudade. Brincar com a família, sim! Mas nunca na presença de estranhos…
Muita gente tem estórias do Teixeira para contar, desde a ida ao casino da Figueira, de fraque e anel de brasão no dedo, onde só terá sido desmascarado por querer oferecer um pirolito a uma requintada senhora, até ao telefonema que terá feito ao Reitor da Universidade a pedir satisfações, aquando da crise de 69. A última que li foi-me descrita por um amigo [1] nestes termos: «… Foram com ele a Barcelona (Clínica Barraquer), estava ele quase cego. Recusou-se a ir de avião, por lhe provocar imenso medo essa ideia. Disseram-lhe que iriam de camioneta. Pois a cegueira dele era tal que ele embarcou no avião e, durante a viagem, dizia que as estradas espanholas eram maravilhosas, pois o autocarro não fazia ruídos nenhuns. Enfim, a Academia tratava sempre bem as suas "figuras"!»
E tratava… o melhor que podia: dava-lhe abrigo – num torreão (antiga bilheteira) do campo de Santa Cruz, tendo o Zé Freixo e Belmiro por anfitriões – até que um dia lhe fizeram mesmo uma casa de verdade! Dava-lhe de comer nas Repúblicas e cantinas, dava-lhe cigarros, tratava-lhe da cegueira e outros achaques, sentava-o à mesa do café, apaparicava-o… e até tinha lugar cativo no autocarro da Briosa!
Só há alguns anos, lendo o livro de Reis Torgal e pedindo informações a amigos, soube o seu verdadeiro nome. Chamava-se Raúl dos Reis Carvalheira. O nome Teixeira foi-lhe posto por ser sósia dum interior esquerdo do Benfica – Teixeira de seu nome – que a malta odiava por ter deixado os dentes marcados na barriga do Faustino, half-centro da Académica, por volta de 1940. Desde que as parecenças foram descobertas, passaram a chamar Teixeira ao Raúl, que começava a aparecer nas latadas; quanto ao verdadeiro Teixeira, o do Benfica, passou a Academia a chamar-lhe "Cão", por razões que bem se entendem.
O Teixeira nasceu em Torres do Mondego, que na altura ainda era freguesia de Santo António dos Olivais, em 9/9/1926, tendo falecido na Casa dos Pobres, na Rua Adelino Veiga, em 29/2/2000.
A última vez que o vi foi já há muitos anos. Achei-o feliz. Uma espécie de lenda viva, muito acarinhado, muito cegueta e, talvez por isso, pairando um pouco acima do quotidiano. Que se passou desde então? Como viveu os últimos anos? Como morreu? Não sei. Mas admito que tenha sido em paz. Quem tinha uma família do tamanho da Academia não se deve ter sentido sozinho.
Parte II
A origem do nome Teixeira está explicada mais acima. Porém, a partir de determinada altura na década de 80, o Teixeira passou a ser igualmente conhecido por “Taxeira”, ao que se supõe, devido «à taxa que se encarregava de cobrar através do apelo: “moedinha, ó sócio”» [2] . No início dos anos 90, os dois nomes ainda coexistiam; mas quando falamos com estudantes que chegaram a Coimbra mais tarde, verificamos que estes já só retiveram o nome “Taxeira” [3].
E foi “Taxeira” que ficou registado na placa que se encontra à entrada de uma pequena rua transversal à Rua de Aveiro, já que em 2007 a edilidade de Coimbra resolveu atribuir o nome de uma rua da cidade à memória desta ilustre figura, cuja última profissão conhecida foi a de ardina. [4]
Mas quem era, afinal, o verdadeiro Teixeira, o do Benfica, o tal que em Coimbra ganhou a alcunha de “Cão”? Ouçamos, então o contraditório, pela pena do blogue Glórias do Passado, de cuja extensa biografia aqui transcrevo apenas um curto extracto [5]:
«O popular “Semilhas”, “Gasogéneo” ou “Marreco” foi um dos mais emblemáticos e categorizados futebolistas portugueses da década de 40, essencialmente, envergando, com êxito, as cores do SL Benfica, do Vitoria SC e também de Portugal, tornando-se mesmo, no primeiro jogador açoriano a representar as Selecção Nacional. Natural da Horta, Ilha do Faial, nos Açores, Joaquim Teixeira, o seu verdadeiro nome, nasceu no dia 18 de Março de 1917.» Era, portanto, quase dez anos mais velho que o seu sósia, o nosso Teixeira.
A Parte I desta crónica foi escrita em 2/3/2011, sob o título “TAXEIRA”, UM FUTRICA ESTUDANTE. Posteriormente, entendi ser mais adequado alterar o título para TEIXEIRA, UM FUTRICA ESTUDANTE, como forma de não contribuir para o esquecimento da alcunha original do nosso “Quartanista de Medicina honoris causa”. Para além disso, foram surgindo novas informações que me pareceu interessante acrescentar a uma página que, segundo as estatísticas do blogue, continua a ser razoavelmente visitada.
Foi por essas razões que, ao texto inicial, acrescentei agora a Parte II e reeditei a crónica.

Post Scriptum
Há alguns anos atrás, fui até Coimbra e lembrei-me de revisitar o 13 da Tenente Valadim, curioso de rever a velha barbearia ou o que dela restasse. Queria bisbilhotar, saber quem por lá estaria, se o estabelecimento ainda mexia, se teria mudado de ramo… De facto, tudo deveria estar diferente e eu só esperava poder entrar ou, mesmo ficando à porta, antever a cadeira de barbeiro do Sô António e imaginar o Teixeira engraxando na parte de trás, no enfiamento da janela, enquanto, na porta mais abaixo, o outro barbeiro, o Sô Carlos, procurava afanosamente combater a concorrência da barbearia onde o Teixeira engraxava.
Razão tinha quem dizia que nunca devemos voltar aos sítios onde fomos felizes!...
Zé Veloso
[1] Francisco José Carvalho Domingues.
[2] Conforme folheto referente ao descerramento da placa toponímica e dados biográficos da reunião da Comissão de Toponímia de 14 de Maio de 2007.
[3] Estes intervalos de tempo resultam das respostas obtidas num inquérito que fiz aos membros do grupo do Facebook "Penedo d@ Saudade - TERTÚLIA"
[4] Para localização da rua, vide Google Maps:
https://www.google.pt/maps/@40.214818,-8.430372,3a,90y,358.78h,89.63t/data=!3m4!1e1!3m2!1skKgFdXq9-DWtWwBa75z1EA!2e0
[5] http://gloriasdopassado.blogspot.pt/2011/01/joaquim-teixeira.html
As fotografias onde aparece o Teixeira pertencem ao Arquivo Formidável da IMAGOTECA – Biblioteca Municipal de Coimbra – e foram cedidas exclusivamente para ser utilizadas no Penedo d@ Saudade, não podendo ser cedidas a outrem sem a devida autorização.
A fotografia de Joaquim Teixeira, que chegou a ser o melhor marcador do Benfica na época de 1944/45, foi obtida do blogue Glórias do Passado.
As restantes fotos foram obtidas pelo autor deste blogue.

15 fevereiro 2015

DA ENTRUDADA AOS CORSOS DE PACOTILHA

É Carnaval. Pelos corsos que despontam todos os anos, feitos cogumelos, por esse país fora, as meninas seminuas vâo-se constipando ao ritmo do samba, como se a tradição não nos tivesse deixado trajes trapalhões próprios para um Carnaval de inverno e bombos mais condizentes com os ritmos do nosso folclore.
No início desta retro-colonização brasileira ainda cá vinham umas estrelas de primeira grandeza, cabeças de cartaz de telenovelas que passavam o Carnaval entre nós para entretém dos papalvos. Mas rapidamente o pessoal percebeu que, mesmo com tais enxertos, os nossos corsos de pacotilha jamais passariam de uma imitação barata e deslocada daquilo que a televisão nos mostra no sambódromo do Rio. E, para ajudar à festa, as chuvas de Fevereiro têm-se encarregado de desmobilizar as gentes e de mandar para a valeta, ano após ano, o dinheiro gasto nestes investimentos de alto risco, já que a chuva está para o Carnaval como o Circo Luftman – o tal que trazia sempre chuva – estava para Coimbra.
No entanto, e estranhamente, a cena repete-se todos os anos. E agora até começa mais cedo, com o desfile das escolas primárias e dos infantários! No caso que me tocou em sorte, foi logo na quinta-feira! E lá vão os papás comprar os fatos e os avós levar os meninos e depois vem a chuva e o desfile não sai e os miúdos já choram e acaba tudo ranhoso na urgência do hospital, que a criancinha apanhou frio e o avô só não lhe deu um treco porque não calhou…
… e qualquer dia já ninguém se lembra que no Carnaval se faziam partidas, se travestiam homens e mulheres, se vinha para a rua vestido com trapos velhos, se faziam grandes bailes ou os chamados assaltos, se libertavam tabus e paixões proibidas, a coberto da máxima no Carnaval ninguém leva a mal… e até havia corsos, em terras que tinham essa tradição, embora em moldes bem diferentes do standard brasileiro que está hoje na moda.
No meu tempo era assim. E como seria em Coimbra, um século antes?
As notícias que chegaram até nós são do Carnaval de 1854, ano em que se deram os graves acontecimentos que ficaram conhecidos pelos nomes de Entrudada ou Tomarada. Tais notícias não são coincidentes entre si mas os relatos convergem na brutalidade de algumas brincadeiras: «jogava-se o entrudo com limões de cera, que partiam vidros, cabeças e cegavam; com laranjas verdes, ovos, vermelhão, fundo de panela e pó de sapateiro»«verdadeiras batalhas, cujos combatentes despediam, uns contra os outros, ovos, laranjas e outros que tais projécteis, que por vezes se tornavam ofensivos».
É Domingo Gordo, 26/02/1854, e na Praça de S. Bartolomeu (actual Praça do Comércio) a malta joga ao entrudo. De um grupo de estudantes, que se diverte, sai um ovo, tipo bala perdida, que atinge o peito de uma senhora que está à janela de sua casa, senhora essa que tem a seu lado um tal Lima Valentão [1], o qual responde de forma desproporcionada, atirando da janela abaixo uma panela de barro e empunhando uma espingarda. A estudantada irrompe pela escada do prédio, enquanto Lima Valentão escapa pelo telhado. Salta a futricagem em defesa dos do seu bairro, desata tudo ao biscoito, a polícia toma partido pelos da terra, a estudantada leva uma coça e vai lamber as feridas para o bairro alto. Estava aceso o rastilho que haveria de dar lugar a várias incursões de guerrilha entre os dois territórios até que, na terça-feira, cerca de 600 estudantes (numa universidade que contava nesse ano com 894 matrículas) invadem em força o bairro baixo, sendo rechaçados a tiro pelas forças de segurança.
Por considerarem que a actuação da polícia não tinha sido imparcial em toda esta contenda, uma delegação de 200 estudantes partiu a pé para Lisboa, a fim de reclamar junto da rainha D. Maria II, mas uma força militar impediu-a de continuar a marcha em Tomar. De regresso a Coimbra, fundaram uma associação secreta, que viria a durar apenas seis meses – A Liga Académica – com a finalidade de «sustentar o afastamento de todas as relações com os filhotes da terra, fazer a ronda nocturna pela cidade para a protecção dos estudantes, e organizar uma Cooperativa de consumo, em que por conta dos associados mandassem vir de fora de Coimbra os géneros alimentícios».
Esta é, em resumo, a história da Tomarada (ou Entrudada) que nos conta Sousa Lamy na sua obra monumental – A ACADEMIA DE COIMBRA. 1537-1990 – a partir de fontes idóneas, como Teófilo Braga, Martins de Carvalho e Eduardo de Noronha, obra que lamento profundamente ter ido consultar para compor esta crónica.
E lamento profundamente porque, se me tenho ficado pelas MEMÓRIAS DO MATA-CAROCHAS do Dr. Antão de Vasconcelos, aquele livro fabuloso que tem o encanto de nunca sabermos onde acaba a realidade e começa a fantasia, ter-vos-ia deixado aqui algo muito mais adequado à quadra do entrudo, não necessariamente uma patranha de Carnaval mas uma história bem mais sanguinolenta e façanhuda. Ter-vos-ia falado das dezenas de estudantes e futricas gravemente feridos ou mortos, sendo que, no caso dos estudantes, quase todos apanhados à falsa-fé e, alguns deles, apunhalados ou baleados pelas costas. Ter-vos-ia dito que vieram tropas de fora, que confraternizaram com os futricas, o que mais enraiveceu os estudantes. Ter-vos-ia contado que os estudantes que marcharam para Lisboa eram 1500, mais do que a população universitária de então (!), organizados em três batalhões que se distinguiam pelas cores branca, azul e encarnada, armados e embarretados com o saque de quantas armas e carapuças pela calada de uma só noite conseguiram obter em Coimbra. E que, para saírem da cidade sem darem nas vistas, atravessando a ponte sobre o Mondego à meia-noite em ponto, lançaram previamente o fogo aos quatro cantos da cidade, atraindo para aí a população e a tropa. E que, uma vez chegados a Tomar, na iminência de um confronto que resultaria numa carnificina dos estudantes, o oficial do exército português que lhes fora fazer frente se recusara a fazer disparar os seus homens e «a dizimar por centenas aqueles rapazes cheios de vida e de brios, as esperanças da Pátria». E «reunido o Conselho de Estado ou o Gabinete, pouco importa», e com a anuência da Rainha, que tenazmente tomara partido pelos estudantes, «foi então ordenado à tropa que batesse em retirada» e aos nossos garbosos académicos lá lhes foi permitido marcharem sobre Lisboa, onde foram aboletados por conta do governo, chamando-se a esta façanha a Rendição do exército português e a tomada de Lisboa! E passaram em formatura «sob as janelas onde se encontrava a Soberana, destacando uma comissão que pediu a mudança da Universidade para o palácio de Mafra»! Ah!, malta dum raio! Como escreveu Antão de Vasconcelos, «Quem conhecer esta parte da história da Universidade de Coimbra, jámais enfrentará uma capa e batina sem se desbarretar respeitosamente ante o símbolo da União e do Brio»!
Nesta coisa de escrever sobre o passado é importante encontrar as boas fontes e não ficar pelas bicas inquinadas que alimentam pequenos riachos. Mas é bem verdade que a água de alguns riachos pode ser bem mais saborosa que a das fontes mais fidedignas!…

Zé Veloso 

[1] Segundo Sousa Lamy, Lima Valentão era a alcunha de João Lúcio de Figueiredo Lima, natural de Sandomil, Guarda, que havia de se formar Filosofia em 1855.

05 janeiro 2015

EUSÉBIO, VÍTOR CAMPOS, A BRIOSA, E O “FORMIDÁVEL”

Eusébio morreu precisamente há um ano, no dia 5 de Janeiro de 2014. Nos dias que se seguiram, quase tudo foi dito e escrito sobre a sua pessoa, o seu valor e as paixões que desencadeou. Passado um ano, pouco mais havendo a dizer, quero assinalar a data lembrando, apenas, que lhe ficarei eternamente grato por me ter devolvido o orgulho de ser português naquela jornada dos 5-3 à Coreia do Norte, no Mundial de 66. Foi um delírio que ainda hoje recordo de cor em todos os seus pormenores.

Mas a vida é cheia de meandros, de voltas surpreendentes. E os intérpretes rapidamente passam de salvadores a carrascos, consoante os papéis que ela lhes reserva. A eles, que os desempenham; e a nós, que assistimos do peão ou da bancada.

Três anos passados, estávamos na final da Taça de 69, em plena crise académica. O ambiente em Coimbra era de cortar à faca. Os ecos da crise dificilmente escapavam para fora dos muros da cidade, com a imprensa, a rádio e a televisão controladas pela censura. Mas ir até ao Jamor e fazer ali «um dos maiores comícios de sempre contra o regime», como mais tarde haveria de escrever Carlos Pinhão, era um desafio dos diabos. O regime estremeceu. O Presidente da República fez gazeta, não fosse o caso de voltar a passar vergonha. O mesmo fez o Ministro da Educação, que tutelava o desporto. Contrariamente ao que era hábito, a final não foi transmitida em directo pela televisão! Revistaram-se comboios e viaturas à procura de cartazes e panfletos alusivos à crise universitária. Nunca tanto agente da PIDE terá assistido a um jogo de futebol. A Briosa foi impedida de alinhar de branco e braçadeira preta (solidarizando-se com o luto académico), como tinha feito na meia-final em Alvalade. Mas os jogadores apresentaram-se no campo de capa preta pelos ombros, mostrando, assim, que estavam com a Academia que, de capa e batina, se apinhava no peão e na bancada. Artur Jorge, a cumprir serviço militar em Mafra, não foi dispensado para o Jamor mas telefonou na véspera a Vítor Campos, para o hotel onde a equipa estagiava, sugerindo que, caso a Briosa ganhasse o encontro, a equipa se dirigisse à superior sul onde estaria o Presidente da AAC e o convidasse para dar a volta de honra. Previa-se que daí pudesse nascer uma marcha até Lisboa, que desceria a Avenida da Liberdade… se a deixassem!

Mas Eusébio não deixou! A 5 minutos dos 90 a Briosa vencia por 1-0, quando o Simões levou o jogo para prolongamento e, finalmente, já na 2.ª parte do dito, o Pantera Negra acabou com o sonho. Com o nosso, claro. Que o dele era não só ganhar a taça mas, sobretudo, vestir a camisola da Briosa, o que veio a conseguir no final do jogo, graças à troca de camisolas que se seguiu à peleja! Só foi pena que na época de 69/70 não tivesse vindo estudar para Coimbra…

Vou rebobinar o filme três anos e volto ao Mundial de 66. Assisto agora, via TV, à meia-final de Wembley, contra a Inglaterra. Vejo um Eusébio massacrado até à medula das canelas por um Nobby Stiles que, se as regras fossem as de hoje, à meia hora de jogo já estaria expulso três vezes por acumulação de amarelos. Vejo uma equipa estoirada, jogando em condições desiguais, com menos tempo de repouso e mais viagens entre jogos, num campo que não era o inicialmente previsto, favorecendo a Inglaterra, tudo sancionado por obra e graça de uma negociação com contrapartidas nunca explicadas ou por pura ingenuidade de cordeiros que se oferecem à degola perante os súbditos de Sua Magestade. E vejo uma raiva que só parou, ao fim de 90 minutos, no choro convulsivo de um homem que acreditou sempre e que merecia ter sido considerado o melhor jogador do torneio – Eusébio!


Na fotografia que ficou para a posteridade, Eusébio aparece confortado por dois homens. Um é Manuel da Luz Afonso, o seleccionador nacional. Está no seu papel. O outro tem consigo uma máquina fotográfica e traz no braço direito uma braçadeira que o identifica como fotógrafo autorizado. É estranho, não é? Não deveria este fotógrafo estar do outro lado da barricada, a tentar bater a chapa para depois a vender? Que fotógrafo será este?

Há um ano, um canal de televisão deu na íntegra a repetição do jogo, incluindo esta cena, e permitiu-me ver que o dito fotógrafo vinha de fora do relvado para o centro do terreno, de frente para Eusébio, juntamente com outros companheiros de profissão e que, ao ver o desespero do jogador, em vez de se preparar para bater a chapa, aproximou-se dele e passou a caminhar atrás de si, falando-lhe e confortando-o na sua tristeza.

Foi essa a razão pela qual Fernando Marques, cauteleiro de profissão, fotógrafo nas horas vagas, nascido em Coimbra em 1911, onde viria a falecer em 1996, mais conhecido por “Formidável”, doido pela Académica, que ao longo de décadas registou em rolo todo o tipo de eventos que aconteceram em Coimbra, cidade que viria a acolher o seu arquivo fotográfico na Imagoteca da Casa da Cultura, foi essa a razão – dizia eu – pela qual Fernando Marques, o “Formidável”, que tem fotografias suas publicadas em vários jornais, incluindo jornais desportivos, não tem no seu espólio a fotografia do Eusébio a chorar. Porque o "Formidável" personificava o desprendimento e a solidariedade coimbrãs dos anos 60. E, antes de ser fotógrafo, era cauteleiro. E os cauteleiros conhecem os dramas da vida e sabem que a seguir aos maiores dramas melhores dias virão.

Não quero terminar esta crónica sem uma palavra para o Vítor Campos, contemporâneo dos meus tempos de Coimbra, hoje distinto médico, médio esquerdo da Briosa no jogo da final da Taça de 1969, que, na foto ao cimo, aparece com o Eusébio, já depois da troca das camisolas. Para ele, aqui deixo um forte abraço e os votos de continuação da excelente recuperação que sei que está a acontecer. E que 2015 seja para si um ano de sorte, apesar de já cá não estar o “Formidável” para lhe vender a cautela que o há-de ajudar a atingir em breve a plena forma.

Zé Veloso

Nota: Contrariamente ao que a foto mais acima sugere, foi José Belo e não Vítor Campos quem trocou de camisola com Eusébio.

Foto 1: Vítor Campos e Eusébio no final da Taça de 1969. Obtida do livro Académica. História do Futebol, João Santana e João Mesquita, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 223.

Foto 2: Final do jogo da meia-final do Mundial de 1966, Inglaterra-2, Portugal-1. Da esquerda para a direita: “Formidável”, Eusébio, Manuel da Luz Afonso, Foto obtida da internet.