18 fevereiro 2022

ESTUDANTES CLANDESTINAS NA UNIVERSIDADE. PARTE II: AUTA DA MADRE DE DEUS

Este post é a continuação de ESTUDANTES CLANDESTINAS NA UNIVERSIDADE. PARTE I: EM MEMÓRIA DETODAS ELAS.

Daquilo que se conhece, Auta da Madre de Deus foi a aluna mais antiga da Universidade portuguesa, tendo-a frequentado ainda esta se encontrava em Lisboa, provavelmente ao tempo de D. João II ou D. Manuel I. O seu nome de baptismo, bem como o nome que terá usado enquanto frequentava a Universidade disfarçada de rapaz, não chegaram até nós. O nome que ficou registado para a posteridade é aquele que viria a adoptar mais tarde, ao professar como clarissa no Convento da Madre de Deus.

O QUE NOS CONTA O “ANNO HISTORICO,…”

Encontrei cinco obras enciclopédicas dos séculos xvii e xviii – vide [1] a [5] – onde a história de soror Auta da Madre de Deus nos é contada. Começo por referir o que vem na reedição de 1744 do Anno Historico, Diario Portuguez: noticia abreviada de pessoas grandes, e cousas notaveis de Portugal [4], um livro de efemérides onde a memória de Auta está assinalada no dia 26 de Maio. Transcrevo na íntegra a passagem que lhe é dedicada, limitando-me a actualizar a ortografia e a pontuação, procedimento que segui em todas as transcrições de textos antigos.

«Soror Auta da Madre de Deus, Religiosa do Mosteiro deste nome de Lisboa, foi dotada de génio sublime para estudar e compreender as maiores ciências. Seu pai, que era lente actual de Cânones na Universidade da mesma Cidade de Lisboa, por fazer-lhe o gosto e ver que aproveitava, a vestiu de estudante e em sua companhia a levava às aulas e actos literários da Sagrada Teologia e Direito Canónico. Em ambas estas Faculdades saiu doutíssima, principalmente na segunda, em que fez actos com grande esplendor e se adiantou tanto que queriam dar-lhe a Cadeira de Cânones, que vagara por morte de seu pai, se ela, com esta falta, não depusera, como logo fez, o disfarce de Varão, tornando ao traje e recolhimento, que, como mulher, lhe competia. Por ser sobredouta, nobre e muito virtuosa, a chamou a Rainha D. Leonor, mulher d’El-Rei D. João II, para a sua companhia e com ela se aconselhava e rezava o Ofício Divino e preferia nas estimações e agrados. Um dia, porém, acompanhando a mesma Rainha, entrou no Mosteiro da Madre de Deus, se agradou e edificou tanto a sua penitente e santa forma de vida, que se resolveu a segui-la e professá-la com grande alegria de saber deixar o mundo para se entregar continuamente só na ciência e consequência da morte. Assim estudou enquanto viveu e por isso morreu felizmente neste dia, ano de 1588, com assistência que naquela hora lhe fez Santa Auta, cujas relíquias se veneram no Santuário do mesmo Mosteiro; de quem era devotíssima e em seu obséquio compusera e ordenara o seu Ofício, que com aprovação da Sé Apostólica o reza, no dia da mesma ilustre Virgem e Mártir, aquela também ilustre e venerável Comunidade.»

O QUE NOS CONTA O “THEATRO HEROINO,…”

Ainda que o essencial das narrativas seja o mesmo nas diversas obras consultadas, há sempre entre elas detalhes que se alteram. Vejamos o que me salta à vista ao ler o Theatro Heroino, Abcedario Historico, e Catalogo das Mulheres Illustres [3], editado em 1736.

Sobre a forma de trajar, o currículo académico e a possibilidade de substituir seu pai, as versões são semelhantes: «Em companhia de seu pai continuou por alguns anos a Universidade nos estudos da Filosofia, Teologia e Direito Canónico, em que fez muitos e luzidos actos com tanto aplauso que se referia por cousa certa ser tão douta como ele, julgando que lhe sucederia na Cadeira, crédulos na ficção com que desmentia a natureza, sendo que esta questão de “desmentir a natureza” se referia ao facto de a rapariga frequentar a Universidade «desmentindo o sexo com os hábitos de varão.»

Sobre a naturalidade de Auta, diz-nos que «Lisboa […] foi sua pátria».

Quanto aos pormenores da sua vida no Convento da Madre de Deus, convento que foi fundado pela própria rainha D. Leonor (esposa de D. João II), rainha de quem Auta foi aia e protegida antes de professar no dito convento, informa-nos que:

- «foi tão devota de uma das onze mil Virgens, cujas relíquias sagradas enriquecem aquele santuário, que na profissão trocou o nome de baptismo pelo de Auta»;

- «era tão douta, que os mais dos dias era consultada na Teologia Moral, especulativa dos maiores letrados da Universidade; e, não menos, na Teologia Mística, muitas religiosas e pessoas de espírito, cujas resoluções se ouviram como de oráculo.»

E afirma, sem ambiguidade, que foi no reinado de D. João II que Auta frequentou a Universidade – «chegaram os seus elogios com o apreço daquela novidade à presença das Majestades reinantes Dom João segundo e Dona Leonor»

OBRAS PUBLICADAS

Auta da Madre de Deus, Soror, tem o seu nome inscrito como autora no site Escritoras em Português (1500 – 1900) [6], onde consta a obra manuscrita Calenda da Festa de Santa Auta e a obra impressa Officium S. Auctae V. & M., Ulissipone, Petrum Crasbeeck, 1621.

DÚVIDAS E INCONSISTÊNCIAS

Terá Auta chegado a obter um grau académico na Universidade?

Qual será exactamente o significado da expressão «saiu doutíssima na Sagrada Teologia e Direito Canónico», expressão que é utilizada tanto no Anno Histórico como na Historia Serafica Chronologica da Ordem de S. Francisco [2]? Será ela indicativa de que Auta obteve algum grau académico enquanto estudou na Universidade? E seria tal grau possível de obter com uma identidade falsa?

A verdade é que a generalidade das obras consultadas referem que Auta fez diversos actos na Universidade e todas elas registam que, à morte de seu pai, os poderes universitários queriam que ela o substituísse na Cadeira que ele leccionava.

Datação da passagem de Auta pela Universidade

A data de nascimento de Auta da Madre de Deus não é conhecida. O dia em que morreu é quase unanimemente apontado como tendo sido 26 de Maio. Mas quanto ao ano da sua morte, apenas temos a informação do Anno Historico, o qual refere 1588. Este dado parece não bater certo com o resto da informação obtida.

Isto porque, estando D. João II (que faleceu em 1495) ainda vivo à morte do pai de Auta, e admitindo como melhor hipótese que ela tivesse nessa altura não mais de 20 anos, para ter vivido até 1588 teria de ter morrido com, no mínimo, 113 anos! Tal longevidade, para além de altamente improvável, deveria vir devidamente assinalada na sua biografia.

Será que Auta foi mesmo um caso de excepcional longevidade? Será que o ano apontado para a sua morte é pouco credível e, por essa razão, as restantes obras o não referem? Ou será que Auta morreu de facto em 1588 e o erro está no Theatro Heroino, quando diz que a sua fama chegou «à presença das Majestades reinantes Dom João segundo e Dona Leonor»?

E será que, quando na generalidade das obras se diz que Auta foi chamada pela «Rainha D. Leonor, mulher d’El-Rei D. João II» tal não poderá ser interpretado no sentido de “Rainha D. Leonor, que foi mulher d’El-Rei D. João II”? Até para a distinguir da outra rainha D. Leonor, mulher de D. Manuel I, que foi sua contemporânea?

A datação da passagem de Auta pela Universidade é, pois, algo que me deixa dúvidas. Mas uma coisa é certa: a Universidade ainda estava em Lisboa, uma vez que D. Leonor (mulher de D. João II) faleceu em 1525 e a transferência da Universidade para Coimbra aconteceu apenas em 1537. Confrontando todas as datas, conclui-se que o mais provável é que Auta tenha frequentado aquela instituição no reinado de D. João II ou no de D. Manuel I, não sedo matematicamente impossível que o tenha feito no de D. João III.

Quanto à data em que professou nada nos é dito. Mas, atendendo ao nome que adoptou nessa altura, é bem provável que tivesse sido apenas depois de o Convento da Madre de Deus ter recebido as relíquias de Santa Auta (1517).

Corrigindo uma gralha de Lamy

Na pág. 25 de A Academia de Coimbra. 1537-1990 [7], o texto sobre Auta da Madre de Deus tem uma gralha que vem a talhe de foice corrigir, dado tratar-se de uma obra de referência para todos os que se interessam pela história da Academia de Coimbra.

Onde está que Auta «foi muito estimada da Rainha D. Leonor, mulher de D. João III» deveria estar «foi muito estimada da Rainha D. Leonor, mulher de D. João II», tal como consta da obra que Sousa Lamy transcreveu – Miscellanea Historico-Biographica [8]. Aliás, a mulher de D. João III não foi D. Leonor, mas sim, D. Catarina de Áustria.

Qual é a relação de Auta com Coimbra e a sua Universidade?

Em duas das cinco obras que tenho vindo a citar como fontes primárias da informação, aparecem duas referências a Coimbra. Trata-se, porém, de referências, porventura, menos credíveis, por serem dissonantes do tom geral dos restantes relatos:

- Na Historia Serafica, a vida académica de Auta é-nos relatada como tendo-se passado na Universidade de Coimbra, o que, como vimos acima, não bate certo com tudo o mais que se sabe. Aliás, o texto também é vago, já que refere que Auta «deixou os estudos e, a instâncias da Rainha, se recolheu no seu Palácio», sem especificar de que rainha se tratava.

- Na Bibliotheca Luzitana: hiftorica, critica e cronologica [5] diz-se que Auta era natural de Coimbra, contrariando a informação do Theatro Heroino.

Zé Veloso

Seguem-se os posts:

- ESTUDANTES CLANDESTINAS NA UNIVERSIDADE.PARTE III: ANTÓNIA DA TRINDADE

- ESTUDANTES CLANDESTINAS NA UNIVERSIDADE. PARTE IV: PÚBLIA HORTÊNSIA DE CASTRO

que serão publicados nas próximas semanas.

[1] CARDOSO, George. Agiologio Lvsitano dos Sanctos e Varoens Illvstres em Virtvde do Reino de Portvgal, e svas Conqvistas. Tomo III, Officina de Antonio Craesbeeck de Mello, 1666, p. 410.

[2] SOLEDADE, Fr. Fernando da. Historia Serafica Chronologica da Ordem de S. Francisco na Provincia de Portugal. Tomo IV, Officina de Manoel & Joseph Lopes Ferreyra, 1709, pp. 76-77.

[3] PERIM, Damiaõ de Froes. Theatro Heroino, Abcedario Historico, e Catalogo das Mulheres Illustres em Armas, Letras, Acçoens Heroicas, e Artes Liberaes. Tomo I, Officina da Musica de Theotonio Antunes Lima, Lisboa Occidental, 1736, p. 48.

[4] SANTA MARIA, P.e Francisco de. Anno Historico, Diario Portuguez: noticia abreviada de pessoas grandes, e cousas notaveis de Portugal…. Tomo Segundo, Officina e à custa de Domingos Gonsalves, Lisboa, 1744, p. 127.

[5] MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca Luzitana: hiftorica, critica e cronologica. Tomo I, Officina de Antonio Isidoro da Fonseca, Lisboa Occidental, 1791, p. 440.

[6] «Auta da Madre de Deus, Soror», in ESCRITORAS-EM-PORTUGUES.EU, http://www.escritoras-em-portugues.eu/1402845028-Cent.-XVI/2015-0328-Auta-da-Madre-de-Deus-Soror.

[7] LAMY, Alberto Sousa. A Academia de Coimbra. 1537-1990. Rei dos Livros, Lisboa, 1990, p.25.

[8] SILVA, Theodoro José da. Miscellanea Historico-Biographica. Editor-Proprietário Francisco Arthur da Silva, Lisboa, 1877, pp. 72-73.