30 janeiro 2022

ESTUDANTES CLANDESTINAS NA UNIVERSIDADE. PARTE I: EM MEMÓRIA DE TODAS ELAS

É frequente afirmar-se que Domitila de Carvalho foi a primeira mulher que se inscreveu na Universidade de Coimbra (1891). Eu prefiro dizer que Domitila foi a primeira mulher que se licenciou na Universidade de Coimbra (1894 em Matemática, 1895 em Filosofia e 1904 em Medicina), sem colocar a tónica no acto administrativo da sua inscrição. E digo assim para que não fiquem implicitamente esquecidas aquelas que frequentaram a Universidade antes de Domitila, mas que nunca terão chegado a inscrever-se ou o fizeram sob um nome masculino, pelo simples facto de serem mulheres e tal inscrição lhes estar legalmente vedada na época em que viveram.

Foram mulheres que, apesar dessa proibição, conseguiram estudar na Universidade, vestindo-se de homem para disfarçar a sua condição feminina. Mulheres que sofreram o recalcamento de terem de aprender na clandestinidade e de não verem reconhecido publicamente o saber que adquiriram. Mulheres que, nos casos sobre os quais existe informação disponível, acabaram todas por recolher-se a um convento, não parecendo que fosse esse o seu plano inicial e vida.

Quantas terão tentado a sua sorte?

Sousa Lamy [1] nomeia apenas quatro almas que passaram por esse calvário. Sobre três delas – Auta da Madre de Deus, Antónia da Trindade e Públia Hortênsia de Castro, que frequentaram a Universidade nos séculos xv e xvi – existe alguma informação, que tratarei nos próximos posts. Mas sobre a quarta – Catarina Fernandes – apenas se sabe que estudou no séc. xvii. [1]

Entretanto, encontrei num almanaque antigo (1864)  [2] uma frase que nos sugere mais um nome – «Nem só Anna Sigêa, Publia Hortensia de Castro, e outras, de quem falla o sr. Castilho nas eruditissimas notas ao seu drama Camões, se tornaram notaveis por seus conhecimentos, e por haverem frequentado a Universidade com occultamento do seu sexo»

Temos, assim, cinco mulheres. Mas é bem provável que tenham sido mais, até porque aquilo que é proibido tende a ser abafado. E se andavam vestidas de homem, estudariam sob anonimato ou falso nome.

Ainda há alguns anos me escreveu um leitor deste blogue que procurava informações sobre uma sua antepassada que, de acordo com a tradição oral da família, teria andado na Universidade de Coimbra, onde, por ser mulher,  teve uma experiência difícil, que muito a marcou. A sua memória ficou num círculo restrito, os seus trajes de estudante andaram na família durante bastante tempo até se perderem, e eu próprio já esqueci também o seu nome.

Quantos nomes haverá mais? Quantas terão sido ao certo? Quantas mulheres – mulheres novas, raparigas – terão “morrido em combate”, lutando corajosamente para saber mais, tentando chegar ao fruto proibido de um diploma universitário?

Sejam quantas forem, conhecidas e desconhecidas, a todas presto aqui singela homenagem.

Este post foi escrito em memória de todas elas!

Zé Veloso

Seguem-se os posts:

- ESTUDANTES CLANDESTINAS NA UNIVERSIDADE.PARTE II: AUTA DA MADRE DE DEUS
- ESTUDANTES CLANDESTINAS NA UNIVERSIDADE. PARTE III: ANTÓNIA DA TRINDADE
- ESTUDANTES CLANDESTINAS NA UNIVERSIDADE. PARTE IV: PÚBLIA HORTÊNSIA DE CASTRO

que serão publicados nas próximas semanas.

[1] LAMY, Alberto Sous
a. A Academia de Coimbra. 1537-1990. Rei dos Livros, Lisboa, 1990.

[2] BARATA, António Francisco. «Antónia da Trindade», in Almanach de Lembranças Luso-Brazileiro para o Ano de 1865, elaborado por Alexandre Magno de Castilho e António Xavier Rodrigues Cordeiro, Lisboa, 1864, p. 300.


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