20 dezembro 2010

O 3 PARA OS OLIVAIS

O meu eléctrico era o 3, o melhor de todos! Era lindo, rápido e amarelo. Tão amarelo como os outros, mas mais bonito.
Havia o 3 com traço e o 3 sem traço. Ou o 3 branco e o 3 vermelho, para quem não fosse daltónico. Os dois corriam um contra o outro para se cruzarem, quer em Celas quer no Penedo. Quem chegasse em último era coxo! A viagem custava oito tostões da Baixa à Alta e sete tostões em sentido inverso, numa altura em que um papo-seco (um bico, como então se dizia) custava quatro, um postal dos correios cinco e um selo de carta dez tostões.
O 3 percorria toda a Cumeada, do Botânico até aos Olivais, constituindo os próprios carris  a linha de fronteira entre a Alta e a Baixa, para efeitos do exercício da praxe, o mesmo acontecendo, aliás, no troço que descia dos Olivais até à Cruz de Celas.  
O 3 era um eléctrico perfeito, não fora a falha de não passar pela Universidade. Dir-se-ia que o 3 passava em quase tudo o que era importante naquela Coimbra. Passava na Baixa, no Jardim da Manga, nos Correios, na Praça (Mercado D. Pedro V), no Teatro Avenida, na Associação Académica (só mais tarde construída), na Praça da República, tendo até paragem à porta do Mandarim. O 3 subia do Tropical aos Arcos, acenava ao Jardim dos Patos e ao Botânico, parava no Penedo da Saudade, deixava os putos quase à porta do D. João III, largava o pessoal que ia para a romaria do Espírito Santo e ouvia o bruá dos jogos de basket no campo do Olivais, onde, pelos Santos, a malta se roçava ao som do saxofone do Ilídio Martins.
Mas o 3 também gostava de música. É natural… uns metros abaixo do Café Madeira, a rapaziada da casa em frente do Lar das Doroteias trazia o pickup para a varanda e tocava até à exaustão, para gáudio das universitárias e terror das freiras, One, two, three o'clock, four o'clock, rock!..., o 45 rotações de Bill Haley & His Comets, acabadinho de chegar a Coimbra. E quando, nas noites de Verão, o Luís Goes ensaiava com o seu grupo de fados no alpendre da casa onde vivia, um pouco acima da paragem da “casa verde”, o guarda-freio do 3 avançava em marcha lenta  e deixava um aceno de adeus, como que a pedir desculpa pelo incómodo.
O 3 era um eléctrico feito para se ver o futebol da janela. Corria ao lado da Sereia, deixando espreitar o Santa Cruz por cima do muro ou pela nesga do portão; permitia uma espiada de longe sobre o Calhabé, ao passar lânguido pelo Penedo; e tinha uma paragem de gala no “poisio”, terreno baldio entre o Madeira e a “casa verde”, onde os putos da minha idade rompiam calças atrás da bola horas a fio.
Aliás, o 3 tinha com os putos uma relação especial. Estoirava-nos debaixo das rodas os montinhos de pólvora das bombas de carnaval, imitando o matraquear das metralhadoras – tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá… – e assustando as damas – aiii!!! – que se preparavam para sair na paragem. Mas, melhor do que tudo o mais, o 3 era o campo de treinos dos desportos radicais da malta urbana: saltar do eléctrico em andamento e brincar ao gato e ao rato com o cobrador.
Aquilo é que era adrenalina! Faziam-se apostas, saltava-se com o eléctrico a várias velocidades, a cinco, a seis e, até, a sete! Alguém sabe aqui o que é saltar de um eléctrico lançado a sete, avenida abaixo, entre o Café Madeira e a paragem dos Lóios, ali mesmo nas barbas da sentinela da Guarda Republicana, ainda para mais com o guarda-freio apostado em dar cabo dos joelhos aos putos que faziam a corrida de borla, iludindo o cobrador, escondidos na plataforma de trás ou pendurados ao vento no estribo? Alguém sabe aqui o que isso é?
Como em qualquer desporto, aquele também tinha a sua técnica. A maioria atirava-se para a frente, tentando acompanhar o movimento do monstro de ferro. Mas havia os que saltavam do estribo para o chão com um só pé e amorteciam a energia da queda rodopiando com a perna livre levantada, enquanto uma mão largava o corrimão e a outra segurava a capa esvoaçante. Bonito!
Como em qualquer desporto, uma tal performance não estava ao alcance de todos. Havia os iniciados e havia os craques, mais velhos, mais rodados. Um havia, até, que se dizia que já tinha ido às p… !
Tive o meu baptismo de voo numa manhã de Inverno. Não que estivesse preparado. Até aí limitara-me a fazer uma ou duas corridas no estribo, cosido às paredes do bicho, não fosse o guarda-freio topar-me pelo espelho. Naquele tempo, os eléctricos só eram fechados na zona dos bancos. O guarda-freio rapava um frio dos diabos; e a nós, na plataforma de trás, acontecia-nos o mesmo, enquanto o lorde do cobrador (já nem falo do revisor... – Foge, que ele vem lá! –) se passeava portas adentro, controlando-nos pelo rabo do olho.
Foi numa manhã de Inverno, dizia eu, faltariam dez para as nove. Daí a pouco tocaria a sineta o primeiro toque. O eléctrico vinha a descer a Dias da Silva, rumo ao D. João III. Parou na “casa verde”, de onde eu saía ainda a comer o pão. A partir daí era só uma paragem. A plataforma de trás vinha apinhada de malta do 1.º B: – Sobe, 24, que está quase a tocar e o gajo anda lá dentro entretido. 24 era o meu número! Seria o meu dia de glória...
Salto para o estribo, já o eléctrico embalava a caminho do Madeira. Agarro o corrimão, o pão na boca, a pasta na outra mão, o olho no trica-bilhetes… e a malta a bater palmas. Eis se não quando, ouve-se um grito: – Salta que o gajo vem a correr! E o gajo corria, de facto, atropelando tudo e todos dentro do eléctrico. E o guarda-freio, de conluio, mete a sete: – Agora é que vais pagar, meu grande sacana! E a malta: – Salta, 24, que o gajo apanha-te!
Nem deu para pensar. Larguei-me, simplesmente. Dei de joelhos nos paralelos da calçada – Ai as minhas calças à golfe, quase novas! – mas não me lembro se doeu. Doeu, sim, a malta a rir-se lá de cima, enquanto o trinca-bilhetes lambia os beiços. Pelo chão ficou espalhada a pasta aberta, os cadernos diários, a caixa de madeira onde guardava os lápis e a borracha, um transferidor, um duplo-decímetro e meia folha de “papel Cavalinho”. Nesse dia havia aula de Desenho.
Zé Veloso

08 dezembro 2010

ELÉCTRICOS DE COIMBRA


Quando fui para Coimbra (anos 50) só havia cinco carreiras de eléctrico em toda a cidade. Nessa altura ainda os eléctricos não davam a volta pelo Palácio da Justiça. Por isso, à excepção do 2, todos saíam da Estação Nova rumo ao largo da Portagem, davam a volta à estátua do Mata-Frades, atravessavam o “canal”, olhavam de cima para baixo a escadaria da Igreja de Santa Cruz, fugiam da polícia avenida acima até deixar para trás o mercado D. Pedro V e só a partir daí é que começavam, cada um à sua vez, a seguir o seu percurso.
O 2 era um pouco diferente, pois que não largava da Estação Nova, como os demais. À hora certa, arrancava do largo de Sansão (Praça 8 de Maio para os menos antigos) e seguia Rua da Sofia afora. Passava junto ao edifício da recolha, onde à noite todos voltariam para dormir, e seguia pela Casa do Sal, até parar na Estação Velha, à espera de que lhe chegassem passageiros e malas para carregar de volta para a cidade.
O 1 era a carreira para a Universidade. Desde a destruição da Velha Alta que não dava já a volta completa pela Rua Larga. Por isso atacava a colina sagrada em dois tramos: um deles deixava a Sá da Bandeira, onde hoje é a Associação, e lá seguia a gemer pela Padre António Vieira acima até parar exausto junto ao Museu Machado de Castro. O outro seguia pela Praça da República até aos Arcos do Jardim e, daí, até à entrada do velho Hospital da Universidade, onde descansava uns minutos a rir-se de quem subia a escadaria monumental, enquanto o guarda-freio mudava o trolley para a retaguarda e o cobrador conferia os trocos para mais uma viagem, depois de ter virado os bancos ao contrário com um barulho metálico que acordava de vez quem se tivesse deixado adormecer no final da carreira.
O 4 seguia para a colina em frente, do outro lado da Sá da Bandeira. Queixava-se do reumático numa chinfrineira sofrida assim que virava à esquerda a seguir à Manutenção Militar, trepava por Montarroio até ao topo da Conchada, aliviava as dores uma vez passada a Poyn-Ta-Pau e parava para verter águas em Montes Claros, junto ao velho matadouro, onde haveria de cruzar-se com o outro 4 que, vindo da Cruz de Celas, fazia o percurso em sentido inverso.
O 5 era um sortudo! A caminho do Calhabé, carregava as meninas todos os dias para o Liceu Infanta D. Maria. Podia olhá-las de perto, demoradamente, enquanto nós tínhamos de ir até aos Lóios ou à ladeira do Cidral para as ver passar. Mas o 5 não era um eléctrico.  Era um trolley dos modernos, “como só havia em Coimbra”, dizia-se então. Andava sem fazer barulho. Eram os “pantufas”.
O 6 também era “pantufas” e ia até Santa Clara, onde dava a volta num grande largo… porque os “pantufas”, ao contrário dos eléctricos, não sabiam andar de marcha-atrás.
O 7 ia para o Tovim e lá ficava parado, fazendo manguitos a quem quisesse aventurar-se na subida, a pé, até ao Picoto e Vale de Canas.
Deixei para último o 3 para os Olivais, o meu eléctrico, o melhor de todos. Era lindo, rápido e amarelo. Tão amarelo como os outros, mas mais bonito.
O 3 acompanhou-me diariamente durante os nove anos em que vivi na “casa verde”, pouco acima do Café Madeira. Foi na plataforma da frente que calcorreei meia Coimbra com o olhar, bebendo o vento estimulante da corrida, capa traçada para arrepiar o frio, à espera que o guarda-freio embalasse a sete. Foi na plataforma traseira que fumei belas cigarradas, abrigado da chuva de molha-patos do Outono, ainda os exames vinham longe. Dali acenava aos amigos, passava para o estribo, ia ao chão e voltava a subir… Nunca gostei de ir lá dentro. Nas plataformas sim! Sentia-se a velocidade. Trazia-me lembranças das corridas loucas em cima de um carro de bois em Ançã, eu ainda garoto agarrado aos fueiros do carro, e o Zé Palhoça a picar os bois encosta de S. Miguel abaixo, corridas com que o Pai Manuel Velloso nem sequer poderia sonhar…
Não! O 3 é muito forte para mim. Não vai caber neste post. Vai ficar para o próximo.
Zé Veloso
Legendas das fotos:
a. Frente a S.ta Cruz, vendo-se as linhas nos 2 sentidos e ainda a zona de parqueamento do 2.
b. O 2 na zona entre a Estação Velha e a Casa do Sal.
c. O 1 descendo da velha Alta ao longo dos Arcos do Jardim.
d. O 4 junto de arrastadeiras e carochas.
e. O 6 atravessando o antiga ponte.
f. 3 eléctricos descem a Sá da Bandeira, entre o Teatro Avenida e a Manutenção Militar.

25 novembro 2010

A TOMADA DA BASTILHA

ESTE POST ESTÁ DESACTUAIZADO E APENAS NÃO É CANCELADO POR RESPEITO PARA COM QUEM NELE COLOCOU COMENTÁRIOS.
SOBRE O TEMA "TOMADA DA BASTILHA", POR FAVOR CARREGUE AQUI  

Coimbra, 25 de Novembro de 1920!
    6 e 45 da matina. A Alta é abalada pelo estrondo dum morteiro. Para o grupo de conjurados que tomaram de assalto a torre da Universidade, capitaneados pelo Passarinho, estudante de Medicina e jogador da Académica, é o sinal esperado. Há que trazer para a rua a Academia, para que os outros conjurados, que a esta hora terão já forçado a entrada no Clube dos Lentes, possam cumprir em segurança o resto do plano. Cabra a cabrão entram num trinado frenético que acorda toda a Coimbra, ainda mal refeita do estoiro de há momentos, enquanto uma capa negra é desfraldada no mastro da torre. Da varanda do Clube dos Lentes sai uma salva de 101 tiros!
    O primeiro frémito é de sobressalto: – Aí vem outra revolução! – Acodem todos à Rua Larga, no coração da velha Alta. O segundo é já de regozijo. Pelas portas e janelas do antigo Colégio de S. Paulo Eremita saem os trastes do Clube dos Lentes, para dar lugar à nova sede da Associação Académica de Coimbra, ali mesmo nas barbas do Governo Civil e sem que as autoridades pudessem ter mexido um dedo. Deus ajuda quem madruga…
    A Academia voltava assim a ter instalações condignas, depois de um período de 30 anos em bolandas, metade do tempo que durara a ocupação filipina (também essa, corrida pelos 40 conjurados de 1640), já que a impaciência da juventude não permitiu esperar tanto para correr com os opressores.
    Mas os 40 conjurados de 1920 não param. Apesar de terem sido obrigados a antecipar o golpe, inicialmente previsto para o simbólico dia 1 de Dezembro, por receio de que a Reitoria estivesse a par das movimentações, eles sabem o que fazer a seguir. Não basta defenestrar os Miguéis de Vasconcelos de agora, há que obter o reconhecimento de jure da situação.
    Reúnem a Assembleia Magna, decreta-se a posse das instalações e saem de imediato telegramas para o poder em Lisboa, a quem se comunica, com a maior das naturalidades, que, finalmente, os estudantes estão bem instalados na sua nova sede e «Viva a República, que muitas glórias há-de dar a Portugal»!
    Perante tal desfaçatez, ninguém desconfia. E é aí que Presidente da República, Presidente do Conselho e Ministro da Instrução respondem aos telegramas agradecendo a deferência da notícia em primeira mão e felicitando a Academia, por lhe ter sido outorgada tão antiga reivindicação. O Reitor de então, pessoa simpática, por sinal, fica completamente desarmado.
    Mas, não fosse o diabo tecê-las, havia que manter mobilizada a cidade e a Academia até ao dia seguinte. E assim se organiza da Alta à Baixa um monumental cortejo de archotes que iluminam Coimbra pela noite adentro. E bem avisados estavam os conjurados, já que nessa mesma noite vários estudantes foram presos por gritarem Viva a Academia!, sendo que os ouvidos da polícia estavam educados para considerar que vivas terminando em ia só poderiam ser vivas à Monarquia.
    Estes factos, que chegam até hoje cheios de um burlesco que nos faz sorrir, não devem esconder que a Tomada da Bastilha foi um acto de coragem de um grupo de estudantes que se arriscou a pesadas penas, tais como o "ser riscado" da Universidade, para que os estudantes de Coimbra tivessem hoje a Associação que têm. Porque foi precisamente este assalto que permitiu à Academia passar a desfrutar de amplas instalações que, ao serem desmanteladas em 1949, aquando da demolição da velha Alta, obrigaram à promessa de construção das actuais.
    A Tomada da Bastilha já foi feriado académico, antes e depois do 25 de Abril. A sua comemoração, proibida pelo regime anterior, já foi pretexto para reuniões de contestação política que juntaram todas as academias universitárias do país. O feito é comemorado todos os anos com pompa e circunstância no Casino do Estoril, pela AAECL… mas, na Coimbra de hoje, quase caiu no esquecimento.
    Coimbra é assim! Deita fora o seu potencial histórico. Coimbra é mais valorizada por quem está fora do que por quem está dentro. Não fossem duas breves referências na página da AAC no Facebook e não se daria pela Tomada da Bastilha. Basta olhar as fotografias para perceber que as comemorações na noite de 24 para 25 não conseguiram mobilizar mais do que uma ou duas centenas de estudantes (o meu abraço para eles!) numa academia que tem hoje para cima de 20.000!
    É para que a memória se não apague que aqui evoco os heróis da Tomada da Bastilha, a começar pelos cabecilhas da “revolta”: Alfredo Fernandes Martins (Direito), apontado como o principal obreiro, Padre Paulo Evaristo Alves (D), seu principal ajudante, Augusto da Fonseca Junior, o Passarinho (Medicina); João Rocha (M) e Pompeu Cardoso (M).
    Diz-se que os conjurados eram 40! Mas António José Soares só encontrou o rasto a 39… Aqui ficam mais abaixo os seus nomes e a fotografia para a posteridade. Talvez algum leitor do blogue encontre por aí um seu antepassado.
    No plano superior, da esquerda para a direita, João Gonçalves Valente (M), José Nascimento de Sousa (M), José Lopes Dias (M), José Afonso de Matos (M), Mário Celorico Drago (M), Acácio Barata Lima (M), Manuel Pedro Nolasco (D), Daniel Brazão machado (M) e Henrique Valente de Pinho (M).
    No plano intermédio, Fernandes Martins (D), P. Paulo Evaristo Alves (D), Jacinto Gomes Henriques (M), João Lacerda Pereira Rocha (M), Augusto Fonseca Junior (M), António Gomes de Pina (D), estudante não identificado, João Nabinho Amaral (M), António Geraldes Coelho (M), Martins de Carvalho (M), Jacob Correia (M), Silvino de Sousa (D), Artur Alberto Coelho (D), Pompeu Cardoso (M), Juvenal Silva Carvalho (D), estudante não identificado, Armindo Maio dos Santos (D), Joaquim Cunha Guimarães (M), estudante não identificado e Augusto Vitor Neves (Ciências).
    No primeiro plano, estudante não identificado, Albino Rodrigues de Sousa (M), Severo Figueiredo (D), António Rocha S. Miguel (M), Antero Lucena e Vale (D), Manuel Branco de Melo (D) e estudante não identificado.
    Não figuram na foto mas tomaram parte: Luís Gonzaga Peixoto (D), Gaspar Sameiro (D) e Joaquim Costa Reis (D).
    Zé Veloso

10 novembro 2010

QUANDO O MONDEGO E A ALTA CRIARAM COIMBRA...

Se Coimbra teve uma Mãe, essa mãe foi a Alta. De facto, foi na Alta que germinou o primeiro embrião de vida do que viria a ser Coimbra, vai para milhares de anos; foi dentro das entranhas da Alta que Coimbra viveu os primeiros tempos; e, quando, já mais crescidinha, a menina se atreveu a sair para o arrabalde – a Baixa – era sempre debaixo das saias da mãe, ou seja, dentro das muralhas da Alta, que vinha acolher-se aquando das investidas das sucessivas hordas invasoras.
Mas se Coimbra teve uma Mãe, deve ter tido também um Pai. E aí é que a porca torce o rabo, confirmando a máxima de que "a mãe é sempre certa, mas o pai nunca se sabe... " Para dificultar esta questão, Coimbra é tão antiga que o seu registo de nascimento se perdeu na voragem da história, não se encontrando hoje vestígios da época pré-romana. Resta-nos, pois, ir à procura do pai pelos indícios.
Olhando em volta e procurando nas coscuvilhices das redondezas, não vejo outro candidato a Pai que não seja o Mondego, ainda que o maroto – que à época era muito mais vivo do que é hoje e, por certo, teria outros amores entre as serranias e o mar – nunca a tenha perfilhado. Mas os indícios são muitos. Se não, vejamos:
    • a Alta e o Mondego namoram desde a Antiguidade, ele cantando-lhe à porta, ela acenando-lhe lá do alto;
    • quando mais novo, eram frequentes as investidas do rio ao sopé da Alta – dizem os registos que as cheias chegavam ao altar-mor da Igreja de Santa Cruz – como frequentes eram os seus amuos, quase desaparecendo da vista da sua amada na época do estio;
    • já com a filha crescida e desempenada, Mondego e Alta atingiram o período de acalmia, ele enroscado aos pés dela, espreguiçando-se ao sol, enquanto ela nele revê, espelhada, a sua vaidade de grande senhora;
    • last but not the least, à noite, depois de terminado o bulício e apagadas que são as luzes das casas, continuam a dormir juntos.
Aliás, o povo não costuma enganar-se e, por alguma razão, chama a Coimbra Cidade do Mondego e não à Figueira da Foz ou a outras terras ribeirinhas, remetidas ao estatuto secundário de meras amantes.
Passadas que estão as conjecturas de alcova, vamos aos factos históricos. O que levou a que Coimbra tivesse um desenvolvimento superior ao das outras povoações resultantes da fecundação do Mondego, desenvolvimento este que é muito anterior à instalação da Universidade e à própria nacionalidade e que viria a fazer de Coimbra a capital do reino, de Afonso Henriques a Afonso III?
A resposta é curiosa: ser um local de passagem, tanto terrestre (N-S) como fluvial (E-O), por vontade e culpa dos seus paizinhos: a Alta e o Mondego.
Comecemos pela passagem terrestre.
Desde a Antiguidade que quem se deslocava na faixa costeira entre o norte e o sul do território que dá hoje pelo nome de Portugal, tinha que fazê-lo passando por Coimbra. Por nascente de Coimbra não dava: tudo é serrania, a começar pelas serras do Roxo, Lousã, Buçaco e por aí fora; é na Alta de Coimbra que a serra começa... ou acaba. Por ocidente, a travessia do Mondego tornava-se imprevisível, dadas as cheias que alagavam o vale em cada Inverno. Por tais razões, Coimbra, junto ao Largo da Portagem (onde a dita era paga pelas mercadorias que entravam na cidade), sempre foi o melhor local de atravessamento do Mondego.
Isso mesmo acontecia ainda há três décadas, antes de terminada a A1, a qual, para fugir a Coimbra, obrigou à construção de um extenso viaduto sobre os campos do Mondego. Isso mesmo tinham já descoberto os melhores engenheiros de estradas da Antiguidade, vindos de Roma, que fizeram passar pelo Largo da Portagem, em Emínio (Coimbra), a célebre estrada que unia Olisipo (Lisboa) a Bracara (Braga), passando igualmente por Conimbriga.
E quanto à passagem fluvial?
Numa época em que o leito do Mondego era mais profundo, Coimbra foi um importante porto fluvial. Do interior das Beiras, os produtos eram escoados via Mondego pelas barcas serranas, das quais não resta hoje qualquer espécime original. Mas o que talvez muitos não saibam é que «foi na foz do Mondego que se cobraram à navegação estrangeira os primeiros direitos aduaneiros portugueses e que já em 1145 [2 anos antes da conquista de Lisboa!] as posturas municipais de Coimbra taxavam o preço da pimenta, sendo Coimbra o primeiro porto português em comunicação com o comércio do Oriente», conforme nos conta Jaime Cortesão no Guia de Portugal.
É frequente ouvir-se o lamento de que Coimbra tem sido essencialmente um local de passagem (de gerações e gerações de estudantes), não fixando nem gentes nem indústria, nem o mais que traz riqueza. É uma sábia lamentação, mas é inútil. A grandeza de Coimbra sempre se deveu, precisamente, ao facto de ser um local de passagem! Tiremos partido disso, já que quem por Coimbra passa raramente dela se esquece.
Zé Veloso

02 novembro 2010

POR QUE É QUE A BRIOSA É BRIOSA? (Parte III)

    Vimos nos posts anteriores (vide Nota no final) que, no seio da Academia de Coimbra nos idos de 1888, os polainas ou polainudos chamavam aos mais modestos e menos bem trajados, os briosos, Academia Briosa, ou Briosa simplesmente. Resta perceber como é que este epíteto de Briosa se colou à equipa de futebol da Académica, a qual só viria a ter o seu primeiro jogo oficial em 28 de Janeiro de 1912, quase três décadas passadas sobre os tumultos no Teatro da Trindade e a saída da Niveleida.
    Mas é aí que a porca torce o rabo. Ainda que muito tenha procurado, pouco encontrei que faça uma ligação segura entre aquelas datas e os anos 40 do Séc. passado, o que é, de facto, intrigante e sugere que o termo Briosa tenha estado meio-esquecido ou tenha sido muito pouco utilizado durante algumas décadas.
    Passando em revista entrevistas a antigos jogadores e recortes de jornais que aparecem transcritos em livros sobre a nossa Académica de antanho, a palavra Briosa nunca é referida – ou se o é não dei por ela – preferindo-se antes epítetos tais como os estudantes e o team académico. Os próprios livros de António José Soares, que retratam, mês a mês, a Coimbra Académica da primeira metade do Séc. XX, não referem uma única vez aquela palavra mágica!
    No entanto…
    … Octávio Abrunhosa, pai do músico Pedro Abrunhosa, que cursou Direito entre 1945 e 1951, conta no seu livro de memórias A Academia tinha o seu grupo de futebol, a chamada Associação Académica de Coimbra, a Briosa, como era vulgarmente conhecida…
    … e Eduardo Lourenço, que viveu perto do campo de Santa Cruz na década de 40, escreveu para o livro A Académica um texto inédito sobre a sua passagem por Coimbra, onde refere A Académica ou como diziam os castiços, a Briosa…, afirmação que leva a pensar que o termo Briosa, ainda que não sendo utilizado correntemente naquela época, era um termo com origens num passado mais longínquo, mais arreigado à raiz das coisas…, algo que os castiços se encarregavam de não deixar cair em desuso!
    É baseado nestes testemunhos – e ainda na singularidade de a palavra Briosa ter servido para designar uma parte da Academia meio século antes – que me atrevo a deixar aqui duas hipóteses de explicação, que manterei como boas até que factos novos as venham contradizer.
    A primeira é que, uma vez criada a AAC em 1887, o nome Briosa se lhe tenha de alguma forma colado, fosse porque os seus dirigentes estavam entre aqueles que se opuseram aos polainudos fosse porque a estudantada que aderiu à AAC incluía a arraia miúda, a denominada Academia Briosa.
    Para que esta hipótese fique fechada, falta ainda explicar como é que o nome de Briosa, depois de ter servido para designar uma boa parte da Academia e, eventualmente, a própria AAC, teria passado a aplicar-se apenas à sua equipa de Futebol! Mas se nos lembramos de que, durante décadas, aquela equipa foi a face mais visível e emblemática da Academia de Coimbra por todo esse país fora, a hipótese faz algum sentido.
    A segunda hipótese é mais engenhosa… e bem mais romântica!
    Se procurarmos quais os desportos praticados pelos académicos de Coimbra no primeiro quartel do Séc. XX, encontraremos o ténis, a esgrima, a equitação, a ginástica, o tiro, o remo, a natação, o ciclismo, a luta greco-romana, o atletismo, o basquetebol e... o futebol.
    E agora pergunto: – Qual destes desportos é o mais simples e o mais “básico”, qual deles se poderia jogar com menos meios, com menos iniciação técnica, com menos dinheiro, necessitando apenas de uma bola (a dividir por 22) e de um terreno plano, mesmo que fosse a Praça da República (à época Largo de D. Luís)? E qual daqueles desportos seria o mais apropriado para juntar uma equipa de comparsas que através da união fizessem a força e se afirmassem perante os demais?
    É claro que é o futebol! E se não foi a equipa de futebol da Académica a chamar para si própria o nome de Briosa, poderiam ter sido os colegas polainudos das modalidades mais elitistas ou, até, os adversários, a botar-lho.
    É curioso notar que, em qualquer das hipóteses, o epíteto de Briosa, inicialmente com um âmbito mais lato, foi como que capturado pela equipa de futebol da Académica. Se nos lembrarmos que o emblema que foi desenhado para a equipa de futebol é hoje o emblema de toda a Academia, poderemos dizer que as contas estão saldadas!
    Comecei esta série de posts chamando a atenção para a visibilidade crescente da denominação Briosa. É hoje claro que, sobretudo entre a malta nova, a Briosa se tornou mais popular do que a Académica. Basta olhar a blogosfera e o Facebook. É um fenómeno que me parece não acontecer por acaso: numa altura em que a equipa da Académica se torna cada vez menos académica – o jogador-estudante não passa já de uma miragem – a malta agarra-se a outros paradigmas, a outros ícones. E o jogador brioso surge como sucedâneo natural do jogador-estudante.
    E assim voltamos, de alguma forma, às nossas origens. Porque o brio sempre foi apanágio dos bons estudantes. É preciso é que a Académica – a Briosa – continue a ser briosa!
    Zé Veloso
PS – Chegou-me há alguns anos a informação de que teria sido Cândido de Oliveira quem lançou o nome Briosa, ao vir para Coimbra treinar a Académica em 1955/56. Tal não é compatível com os textos que acima transcrevi. Mas mestre Cândido poderia ter ajudado a reavivar um epíteto que já então existia.

Nota: O tema PORQUE É QUE A BRIOSA É BRIOSA é tratado em 3 crónicas sequenciais: Parte I, Parte II e Parte III.

24 outubro 2010

POR QUE É QUE A BRIOSA É BRIOSA? (Parte II)

    Corria o ano da graça de 1885. A organização associativa da Academia, reunida em torno da Academia Dramática e do Clube Académico de Coimbra, encontra-se ainda em fase embrionária. As Assembleias Gerais têm lugar no Teatro Académico, situado no Colégio Real de S. Paulo Apóstolo, edifício que viria a ser, em 1887, a primeira sede da Associação Académica de Coimbra (ver Nota 1 no final).
    A luta política, que haveria de culminar na implantação da República 25 anos mais tarde, marca já presença na Universidade. A facção mais aristocrata e conservadora da Academia distingue-se pelos hábitos requintados. Veste-se à futrica depois das aulas, fuma charuto, usa guarda-chuva, calça luvas e polainas. São os polainudos que, no dizer de Trindade Coelho, fazem da polaina um chique e acho que uma fidalguia. Isolam-se no Café Lusitano, em tertúlias intelectuais que entram pela noite adentro, enquanto os tesos vão mergulhar nas sebentas, que a mesada é fraca e um chumbo custa caro à família.
    Estávamos nisto quando morre em Lisboa D. Fernando, viúvo de D. Maria II. Enquanto a maioria da malta se prepara para gozar em Coimbra os três dias de feriado da ordem, três polainudos, lisboetas de gema, avançam para a capital dispostos a matar saudades e a representar a Academia de Coimbra nos funerais do Rei.
    António Cabral, figura de proa dos polainudos, conta que os colegas foram mandatados para tal em Assembleia Geral, mas Trindade Coelho acha que esta não foi mais que uma combinação através de papelinhos passados nas aulas entre um grupo de apaniguados. E que apaniguados! Fosse a questão passada com outros, talvez a bronca não surgisse. Mas aqueles três pertenciam à fina-flor dos polainudos, grupo que uma boa parte da Academia quase odiava.
    Mal o assunto é conhecido, logo um aviso aparece nas portas do Clube Académico, chamando a Academia, ofendida nos seus brios, a uma Assembleia Geral, com o fim de protestar contra os usurpadores. É a resposta dos revolucionários vermelhaços. Mas a Assembleia não chega a consumar-se. É boicotada pelo Cabral e seus apaniguados, que começam por esconder a chaves do Teatro Académico, fazem obstrução à constituição da mesa, avançam às tantas com o Saraiva das Forças, que a todos ameaça de partir os ossos, e acabam por cortar o gás, deixando o Teatro às escuras.
    Os revolucionários não se dão por vencidos e convocam uma reunião à porta fechada para um teatro na Rua da Trindade, onde se propõem estudar e discutir os meios de levantar o nível moral da academia. Então, sim! Libertos dos Cabrais, saem discursos inflamados contra aqueles que, tendo ido para Lisboa sem mandato para tal, haviam posto em cheque o brio da Academia. E a questão descamba para a falta de nível dos polainudos. Havia que levantar o nível da Academia.
    A partir de então, a questão do brio ofendido e a questão do nível ou da falta dele postaram-se no centro das inflamadas discussões académicas e da chacota entre os grupos antagónicos. Definitivamente, os dados estavam lançados. Dum lado, os polainudos. Do outro lado, os do brio ofendido, ou seja, os briosos.
    Os polainudos não gostaram do enxovalho na Trindade e, passado pouco tempo, distribuíam uma folha litografada que, vendida à Porta Férrea por um vintém, se esfumou como rastilho de pólvora. Era uma rábula à moda dos Lusíadas, A Niveleida, composta numa aula de Direito Eclesiástico pelo Cabral. Nove verrinosas mas bem-humoradas estrofes, em que a facção contrária é apelidada de briosa e os seus cabecilhas, os do nível, são zurzidos um a um sem dó nem piedade. E a palavra briosa lá aparece, escarrapachada nas estrofes I, III e V, sendo, porventura, a primeira vez que tal palavra foi escrita para designar uma parte da Academia.
    Transcrevo abaixo a terceira estrofe, esclarecendo que os R R se referem às reprovações. Por esta pequena amostra se vê o desprezo com que polainudos mimaram os briosos:
                    Estavas, ó briosa, em bom sossego,
                    Da sebenta colhendo o doce fruito,
                    Naquele estado tolo, bruto e cego,
                    Que os R R não deixam durar muito;
                    Nesta imunda princesa do Mondego
                    Que vai agora d’águas pouco enxuito,
                    Ensinado às sopeiras e serventes

                    O que tinhas aprendido co’os teus lentes.
    O estrondo que A Niveleida fez na Academia foi tremendo. Para além da distribuição do poema, as casas onde residiam os cabecilhas dos revoltosos eram assediadas durante a noite com gritos de onde está o nível?, onde está a bolha? e as suas paredes brancas apareciam, no dia seguinte, com desenhos dum nível de bolha de ar feitos a traço grosso de carvão. O achincalhamento teria deitado abaixo o moral a qualquer um. Mas a Briosa não é qualquer um. A Briosa foi desde sempre combativa, de antes quebrar que torcer.
    Para além de cenas de murro seco naquelas ruas empinadas da velha Coimbra, a resposta à letra apareceu dias depois, noutro poema à maneira dos Lusíadas intitulado A Bolha, onde os cabecilhas dos polainudos eram, agora eles, arrasados um a um.
    Mas a grande resposta apareceria dois anos mais tarde, ao alterarem-se os estatutos da Academia Dramática para dar lugar à Associação Académica de Coimbra, a qual passaria a agregar cada vez mais estudantes, enquanto os polainudos se isolariam no Instituto de Coimbra, o tal clube elitista conhecido por Clube dos Lentes, cujas instalações viriam a ser tomadas de assalto em 1920 (Tomada da Bastilha), para desafogo da sede provisória da AAC, que continuava à espera da prometida construção de um novo Teatro Académico. Estórias que a História tece...
    E a confirmar que a clivagem na Academia era não apenas socio-económica (como escreveu Norton de Matos nas suas memórias) mas também política, anote-se que António Cabral, um dos líderes dos polainudos, viria a ser ministro da Monarquia, enquanto que António Luís Gomes, o grande obreiro da criação da AAC e seu primeiro Presidente, viria a ser ministro do Governo Provisório da I República e Reitor da Universidade de Coimbra.
    Não resisto a abrir aqui um parêntesis para citar o que, a respeito destas questões do nível, conclui Norton de Matos: A minoria fidalga estava então convencida que tinha levado a maioria da Academia a submeter-se-lhe, quando era exactamente o contrário que se dava. O nível ia-se de facto estabelecendo, porque cada vez havia menos ricos, porque as classes médias principiavam a dar maiores mesadas aos filhos, porque estes adquiriam hábitos de vida mais cuidada e, sobretudo, porque na Briosa principiaram a aparecer em grande número inteligências verdadeiramente privilegiadas, rapazes a quem o tempo chegava para estudarem a fundo as matérias dos seus cursos e alargarem os seus conhecimentos com leituras aturadas e com discussões intermináveis nos cafés e nas Repúblicas.
    E é ainda Norton de Matos que refere que, ao sair da Universidade em 1888, já as coisas estavam mais calmas, mas ainda os polainas chamavam aos mais modestos e menos bem trajados, os briosos, Academia Briosa, ou Briosa simplesmente.
    Resta saber como é que o epíteto de Briosa se colou à equipa de futebol da Académica, a qual só viria a ter o seu primeiro jogo oficial em 28 de Janeiro de 1912, quase três décadas passadas sobre estes acontecimentos. Mas isso fica para o terceiro e último post sobre o porquê de a Briosa ser Briosa.
    Zé Veloso
    Nota 1: O Real Colégio de S. Paulo Apóstolo foi demolido por alturas de 1888 para dar lugar a um novo Teatro Académico. Mas a obra nunca saiu dos alicerces, tendo sido construído em seu lugar um edifício destinado à Faculdade de Letras, edifício que, aquando da destruição da velha Alta, foi também ele parcialmente demolido para dar lugar à actual Biblioteca Geral da Universidade.
    Nota 2: O tema PORQUE É QUE A BRIOSA É BRIOSA é tratado em 3 crónicas sequenciais: Parte I, Parte II e Parte III.

17 outubro 2010

POR QUE É QUE A BRIOSA É BRIOSA? (Parte I)

    Quando eu era miúdo ia para o estádio gritar A-cadé-mi-ca!!! A-cadé-mi-ca!!!...
    O epíteto de Briosa já então existia mas não era corrente chamar-se por ele. Esta moda de gritar Brioooooooooooooosa!!!... dum lado ao outro do campo, num estilo que se espalhou como rastilho de pólvora a claques de outros clubes, surgiu apenas nas últimas décadas do nosso historial academista de mais de um século.
    Mas porquê Briosa? E desde quando se colou tal nome à equipa de futebol da Académica, hoje Académica-OAF? Que fundo mistério é esse que não encontro decifrado em livro ou site algum, que nem sequer se questiona, antes se aceitando como se de um dogma se tratasse?
    Foi para responder a estas questões que escrevi este post e mais dois que se lhe seguirão, já que a estória é comprida e cabeluda, remontando a um conflito que dividiu a Academia de Coimbra em 1885, ainda o futebol não tinha chegado à nossa cidade!!!...
    Quem diria? Afinal, a Briosa nem sempre foi a equipa de futebol da Académica!!!... Quem terá sido, então?
    Abro aqui um parêntesis para agradecer ao grande amigo Luís Filipe Colaço (à esquerda na foto) – que comigo e mais cinco fundou Os Álamos e que acompanhou Zeca Afonso na gravação de Contos Velhos Rumos Novos e Traz Outro Amigo Também – a dica fabulosa que me deu: Zé, nas memórias do General Norton de Matos há qualquer coisa sobre a Briosa que te deve interessar…
    Uma vez encontrada uma pista, o resto veio a seguir. Mas nem tudo foram facilidades. E isto porque quem escreveu sobre a nossa antiga Academia o fez em livros de memórias, várias décadas depois dos acontecimentos terem ocorrido, falhando-lhe já precisão nos factos, nas datas e nas pessoas. E, mais do que isso: a história nunca é contada de forma desapaixonada; tem sempre as cores de quem a conta, porque cada um vê as coisas pintadas da cor da sua simpatia.
    Ora, sendo que no caso vertente tudo se passou em clima de enorme efervescência política – estávamos então a 25 anos da implantação da República – tive que “ouvir” as duas partes no conflito, ou seja, os monárquicos e os republicanos!
    Comecemos, então, por ouvir o General Norton de Matos, aquele que no final dos anos 40 disputou as eleições para a Presidência da República contra o candidato de Salazar. Norton de Matos, que frequentou a Universidade de Coimbra em 1884-88, dedica nas suas memórias algumas páginas a este período.
    Conta-nos ele que havia em Coimbra dois tipos distintos de estudantes: o grupo dos ricos, dos bem nascidos, dos que tinham nomes ilustres; e os outros, a maioria, filhos da classe média, alguns de condição modesta, com mesadas que raramente excediam os 15 mil reis. Norton de Matos dava-se com gente de ambos os grupos; por nascimento, estava ligado ao primeiro, mas, por educação e tendência política republicana e socializante, tinha muitos amigos no outro campo. Escreve Norton de Matos, com evidente mágoa, que o grupo aristocrata discriminava os restantes e se isolava na sua sobranceria snobe, de tal forma que os seus membros eram apelidados de polainas, o que, nos dias de hoje, equivalerá a “meninos betinhos”.
    Já António Cabral, um dos líderes dos polainas, ao escrever também as suas memórias, faz a clivagem entre os dois grupos em termos políticos, ao contrário de Norton de Matos, que centra a sua análise na clivagem socio-económica. Para António Cabral, o que havia era um pequeno grupo de republiqueiros, vermelhaços de ideias avançadas, ideólogos e sonhadores, que viam na república a salvação da terra amada, da pátria querida, que eles reputavam em vias de perdição.
    É com base nestas duas fontes e, ainda, no In Illo Tempore de Trindade Coelho – que dá aos polainas a designação mais rebuscada de polainudos – que a estória pode ser reconstituída.
    Fica para o próximo post      
   
    Zé Veloso
   
   Nota: O tema PORQUE É QUE A BRIOSA É BRIOSA é tratado em 3 crónicas sequenciais: ParteI, ParteII e Parte III.

17 setembro 2010

A FACE OCULTA DA LUA

    No post “A História de um Emblema” transcrevi excertos do escrito de Fernando Pimentel, onde ele nos descreve o quando e o porquê de ter desenhado o emblema da Académica. Nesse artigo ele diz também que o distintivo surgiu num ápice (…) animado pelo fervor académico que sempre entusiasmava a rapaziada do meu tempo (…) e com aquela inspiração que pelo menos uma vez na vida nos bate à porta e nos transforma em génios… mas nada adianta sobre a fonte de inspiração para tão belo trabalho.
    Acredito que tenha sido num ápice. Mas diz o ditado que quem encontra sem procurar é porque já muito procurou sem encontrar. O que andaria então há muito na sua cabeça para que, num ápice, saltasse assim para a prancheta? Donde lhe terá vindo a ideia? E como evoluiu até à versão final? Primeiro a torre e depois as letras ou vice-versa? E o formato em “losango”? De onde lhe veio ideia tão bizarra?
    E porque é que a torre do emblema original - vide cartão do Isabelinha - não tinha pau de bandeira, nem grades no topo, nem ponteiros no relógio, nem sinos, nem mais do que duas janelinhas, para desgosto dos designers de hoje que se engalfinham a esboçar-lhe variantes que não lhe acrescentam nobreza ou elegância alguma? – Ó Dr. Fernando Pimentel! Será que o senhor, que tão bem soube conceber o emblema, não sabia desenhar a torre como ela era? O senhor que, ainda por cima, passou pelas Belas Artes no Porto antes der vir cursar Medicina em Coimbra? Ou será que a torre era diferente àquela data? Ou será que era igual, o doutor sabia desenhá-la, mas por muito boas razões achou que assim ficava melhor?
    Foi a procura de respostas para estas questões que me levou a Coimbra num dia de de verão, fazia o emblema 75 anos de idade.
    Tendo já apurado que a torre, cuja construção custou 14:543$522 reis em 1733, não sofrera qualquer alteração no último século, e tendo na memória o que me fora em pequeno transmitido pelo meu Pai - que a mancha negra do emblema correspondia ao telhado dos Gerais - fui até ao Pátio da Universidade, na esperança de recrear o momento de inspiração do Fernando Pimentel. Ia certo de que a inspiração lhe viera ao contemplar o conjunto arquitectónico dos Gerais, em cuja escadaria não há estudante de Coimbra que não tenha posado para mais tarde recordar...   
    Eram 3 da tarde. Percorri debaixo dum sol implacável o espaço que vai da Porta Férrea ao centro do Pátio. Imaginei como felizes seriam os estudantes de 1927 por terem o pátio coberto de árvores frondosas. Olhei a torre e os Gerais, procurando ajustar o conjunto ao emblema. E aí… 
    ... o espanto foi tanto que cheguei a julgar que era o sol a pino quem me toldava a vista. É que a chave do enigma não estava ali!!! Se o estudante de Medicina se tivesse inspirado na vista de dentro do pátio, o emblema seria outro, com a torre do lado esquerdo!… Afinal, para Fernando Pimentel havia uma outra tomada de vista, do lado de fora do pátio, diferente da que fica normalmente na retina de quantos estudaram em Coimbra.   
    Mas mal tinham começado os meus espantos. Saída a Porta Férrea na procura do “outro lado da lua”, constatei, então, que podemos percorrer toda a Coimbra sem mais encontrar a vista sugerida pelo emblema: a tal pendente do telhado dos Gerais subindo inclinada, a partir da torre, para o seu lado esquerdo. Estranho relevo este duma cidade que só permite tal visão a partir de dois pontos. Um deles no alto da Conchada, demasiado longe e difuso para poder ter inspirado quem quer que fosse. O outro, localizado nos últimos andares de meia dúzia de casas nas Ruas do Loureiro e da Boavista, na encosta a norte da Sé Velha, onde tenho boas razões para pensar que terá vivido ou, pelo menos, estudado, o autor do emblema, daí tirando a inspiração para o seu feito.   
    Não é fácil a um “louco de Lisboa” incomodar meio mundo na procura do melhor ângulo para uma chapa, seja da gateira do telhado num quarto de estudante, seja do cimo dum muro de quintal, seja a partir do Palácio de Sub-Ripas, seja duma janela nas traseiras da casa onde uma placa assinala a passagem de Eça de Queiroz enquanto estudante. Mas, uma vez aí chegados, à vista dos contrafortes daquilo que foi a antiga alcáçova de emires e morada dos primeiros reis de Portugal, é então que nos damos conta da verdadeira forma dos telhados circundantes da torre, onde reside, afinal, a chave para todos os enigmas:
    • Os contornos do emblema terão sido inspirados pelo recorte do telhado poente (à direita na figura), o qual não é visível do interior do Pátio.
    • O emblema terá sido inicialmente imaginado em losango, já que a pendente dos telhados (> 45º) a tal obrigaria.
    • A forma final, quadrangular, poderá ter resultado da necessidade de dar mais estabilidade ao desenho e melhorar a estética geral do emblema.
    • A torre, que já dificilmente cabia no losango, teria fatalmente de ser alterada nas suas proporções ao passar para o quadrado. E a forma mais elegante de o fazer seria estilizá-la e redesenhar a superestrutura, eliminado pormenores como as grades, o pau da bandeira e os sinos, os quais não mais conseguiriam ser arrumados no espaço existente sem ferir o equilíbrio do conjunto.
    Nunca consegui confirmar se Fernando Pimentel viveu ou estudou numa das poucas casas (ou quartos) donde é possível desfrutar aquela vista. Mas depois de ter estado naquela janela… e de ter sentido a força da imagem da torre… tão perto, tão imponente, tão impressiva, juraria que foi dali que saltou a centelha que, no dizer de Fernando Pimentel, pelo menos uma vez na vida nos bate à porta e nos transforma em génios...
    Zé Veloso

05 setembro 2010

A HISTÓRIA DE UM EMBLEMA

    Se perguntarmos a um taxista de Lisboa como é o emblema da Académica, ele nos dirá que é preto e branco e que tem a forma de um quadrado. Se a mesma pergunta for feita a um taxista de Coimbra, por certo acrescentará que o quadrado tem dentro as letras da Académica e a torre da Universidade. Se a questão for colocada a alguém “com estudos”, a resposta será idêntica à do taxista de Coimbra, com uma só diferença: dirá que tem a forma de um losango... refinamento de linguagem perfeitamente escusado, já que um quadrado não deixa de o ser por ter os lados a 45º com a horizontal, o que prova que, para bem entender as coisas simples, a instrução de pouco serve e, às vezes, até atrapalha.
    E é precisamente aí, na sua forma quadrada, rodada em relação ao que é o standard, que reside a grande força distintiva do nosso emblema, cuja identidade logo salta à vista a léguas de distância.
    Qualquer designer de hoje sabe que a qualidade de um logótipo ou de uma marca está na simplicidade da ideia, no reconhecimento fácil da mensagem, na sua imediata identificação. Isto sabem os designers de hoje. Mas como seria há oito décadas, na época em que o emblema de uma qualquer colectividade costumava albergar uma amálgama de motivos só reconhecíveis à lupa, não fosse ficar de fora alguma parcela do seu objecto social?
    Pois bem, há mais de 80 anos, mais propriamente na época futebolística de 1927-28, havia em Coimbra um estudante de medicina com jeito para o desenho, Fernando Ferreira Pimentel de seu nome, a quem o director desportivo da Briosa, Armando Sampaio, haveria de pedir para desenhar um emblema, o que o estudante fez por amor à camisola.
    A primeira remessa veio de Paris, não no bico de uma cegonha, como acontecia na altura com os meninos, mas por certo de comboio. Custaram 1$00 cada mas foram vendidos a 5$00, preço elevadíssimo para a época. Os honorários do designer… esses saldaram-se com a dádiva de um emblema. Outros tempos...
    Li algures que o Dr. Fernando Pimentel, entretanto formado, teria chegado a ser médico da Académica, facto que a excelente “bíblia” de João Santana e João Mesquita não confirma mas também não permite desmentir.
    Certo é que, em Junho de 1957, Fernando Pimentel publicou um artigo na revista Rua Larga, há muito extinta, onde conta como as coisas se passaram. E nesse artigo escreve, a dado passo:
    “Até ao ano de 1926, o emblema que representava a Associação Académica nas festas ou cometimentos desportivos era uma capa de estudante erguida num pau ou num mastro de bandeira. Recordo-me, contudo, de ter existido, por essa época, um emblema de forma rectangular, encimado pela legenda “Mens Sana” e tendo como desenho um conjunto de figuras geométricas pretas e brancas, sem sentido, que alguns estudantes usavam na lapela, mas cujo significado, em relação à Associação Académica, nenhuma afinidade representava.
    “Na época de 1926-27 (...), a ideia do emblema começou a despontar e, num célebre desafio com o Sporting em Lisboa, o grupo da Briosa apresentou-se com emblemas na camisola “bordados por delicadas mãos de senhora”, emblemas esses em que figuravam apenas as letras AAC(…).
    “Como, porém, o resultado da pugna nos foi desfavorável (só perdemos por 9 a 1) as culpas não caíram sobre o Armando Sampaio, o guarda-redes, mas sim sobre os estreantes emblemas, que, no regresso, amaldiçoados, foram arrancados e votados ao ostracismo.
    “Os tempos correram e, sem emblemas, repetiram-se os revezes e as glórias até que, em 1927-28,...”. Bem, a partir daqui foi o convite a Fernando Pimentel e a rápida feitura do emblema, o qual presumo que tenha sido utilizado ainda nessa época futebolística, embora não o possa confirmar. Mas certo é que o emblema desenhado para a equipa de futebol foi de seguida adoptado pela AAC no seu conjunto e assim se manteve, no essencial, até hoje.
    Fernando Pimentel faleceu com 89 anos a 24 de Agosto de 1994. Nunca o conheci pessoalmente mas hoje, depois de analisar em detalhe o seu (nosso) emblema, gostaria de lhe ter colocado umas quantas questões que me têm intrigado sobre a forma como a ideia surgiu na sua cabeça e como o desenho evoluiu até à versão final. É matéria que deixo para o próximo post, fica desde já prometido.
    Mas para que não fique por contar toda a história do emblema, refiro outras tentativas anteriores a 1927, nomeadamente, um escudo esquartejado onde se inseriam também as insígnias das várias Faculdades da Universidade, ou seja, um emblema “à antiga”, e uma outra tentativa, bem menos ortodoxa: a 31 de Janeiro de 1924, no particular Académica - Salgueiros (1-0) disputado na Ínsua dos Bentos, hoje Parque da Cidade, toda a equipa se apresentou com uma figurinha de tricana amorosamente colocada por cima do coração (vide o guarda-redes João Ferreira). Seria para acirrar o futrica, aquele que em tempos se terá chamado de “fitrica”, filho de tricana?
    Depois queixem-se que no Académica-União para apuramento do campeão de Coimbra de 1927-28 a pancadaria em campo fosse de tal ordem que o jogo tenha terminado 12 minutos antes do tempo com uns a malhar nos outros e a GNR a ajudar à missa…
    Zé Veloso

    Ver continuação em A FACE OCULTA DA LUA.

26 julho 2010

ALTA DE COIMBRA. DA ANTIGUIDADE AOS DIAS DE HOJE

Perguntei no Facebook se na Coimbra de hoje ainda se diz "vou à Alta" ou "moro na Alta". Queria saber se o conceito de Alta ainda existe e se é sensivelmente o mesmo para todos. E a conclusão foi que, ao contrário do que acontece com a Baixa, cujos contornos e carácter se mantêm razoavelmente uniformes, o conceito de Alta é difuso, remete para as várias épocas da cidade e perdeu claramente identidade nos últimos 50 anos.
E é pena, ainda que inevitável! É pena porque “baixa” todas as cidades e vilas vão tendo: ele é a baixa do Porto, a baixa de Lisboa, a baixa de Águeda… e até a Caixa, que não é terra nenhuma, também tem as suas baixas. Mas Coimbra distinguia-se das demais terras porque, tendo embora a sua Baixa, tinha também uma Alta, cuja importância histórica e cuja identidade se impunha. Em mais nenhuma cidade se dizia "vou até à Alta", frase que ainda era vulgar ouvir nos anos 50 e 60. Cidades há onde se diz "vou ao Castelo" ou "vou à Sé"... Mas Alta, mesmo, só havia em Coimbra! (e nos hospitais, bem entendido).
Mas o que é (ou foi) então a Alta de Coimbra e de onde lhe vem tanta importância?
Se por Alta entendermos a "colina sagrada", poderemos dizer que a sua importância foi desde logo reconhecida pelos primeiros povos que aí se estabeleceram, muito provavelmente os Celtas, os quais terão tirado partido das potencialidades defensivas que o local oferecia. Supõe-se que tenha existido um castro algures na zona que vai dos Gerais ao Edifício das Matemáticas. Outros povos se lhes seguiram e todos terão beneficiado da localização daquele sítio, cuja defesa era facilitada pelas escarpas abruptas do lado do rio e pelo vale profundo que vai da Praça da República à Praça 8 de Maio, ficando apenas a descoberto o acesso pelos Arcos do Jardim, onde, na década de 40, existiam ainda os restos da muralha do castelo de Coimbra, defendendo a entrada na cidadela por esse lado.
Mas Coimbra (AEminio, Conimbriga, Colimbria…) foi crescendo colina abaixo e a sua parte alta foi-se despovoando a favor da baixa e do arrabalde, tal como em muitas outras terras onde a malta se cansou de subir escadinhas e ruelas e os castelos foram ficando sozinhos lá no alto, à espera de virem um dia a ser visitados pelos turistas de hoje.
E assim estaria a nossa “colina sagrada”, não fora em 1537 D. João III, que ansiava por ter em Portugal uma universidade que pudesse ombrear em fama com as de Bolonha, Salamanca e Oxford, decidir recambiar de novo e definitivamente para Coimbra o Estudo Geral. Para sua instalação disponibilizou o próprio Paço da Alcáçova – antiga morada de emires e de D. Afonso Henriques, que à data era residência da família real quando esta se deslocava a Coimbra – o qual passou a denominar-se Paço das Escolas, também conhecido por Gerais.
Foi aquela decisão que transformou radicalmente a vida de Coimbra e o destino do seu bairro alto – a Alta – que à época se encontrava bastante degradado. Citando António Rodrigues Lopes, como resultado daquele evento e da criação paralela de colégios das ordens religiosas, a população subiu em flecha, ao acrescentar-se-lhe mais 3000 escolares e o conjunto numeroso do corpo docente e respectivas hierarquias civis e religiosas. Segundo o mesmo autor, a população de Coimbra passou de 5.220 moradores em 1527 para cerca de 10.000 no decénio 1570/80, ou seja, duplicou em 50 anos.
Mas não se pense que toda esta tropa se espalhou anarquicamente pela cidade: ao invés, escolares e professores ficaram acantonados dentro dos limites da antiga muralha, com ordens expressas para não viverem fora da cidade velha, a antiga Medina árabe, Al-medina, cuja entrada principal ainda hoje guarda o nome de Porta de Almedina.
De faço, a Universidade daquele tempo era um regime de internato à escala da cidade, o qual determinou muitas das tradições académicas que chegaram aos nossos dias e das quais deixo aqui alguns exemplos:
- um “uniforme” que distinguia os estudantes dos demais – traje académico – a que mais tarde se haveria de chamar capa e batina;
- um ritmo diário determinado por um sino que marcava as horas de recolher ao estudo, de tomar as refeições e de avançar para as aulas – a cabra e não só;
- um foro judicial próprio e uma polícia académica a quem cabia zelar pelo cumprimento dos costumes: vestimenta, horários de recolher, escapadelas nocturnas para o bairro baixo – a Baixa. Quando a polícia académica acabou, nos finais do séc. XIX, começaram os alunos mais velhos a controlar os mais novos, dando outra lógica às troupes que já então apareciam…
Estas duas cidades complementares – a Alta e a Baixa – sendo que, aos olhos dos estudantes, a primeira era para o estudo e a segunda para a estúrdia, mantiveram-se imiscíveis até muito tarde. Na Baixa estavam os comerciantes e os serviços, e aí se concentravam, igualmente, a maioria das igrejas e conventos. A Baixa era dominada pela população não estudante de Coimbra, os futricas, e por lá se quedavam a maioria das tricanas. A Alta era dominada pelos estudantes; e as tricanas e futricas que lá residiam aparecem-nos referidas como sendo tricanas da Alta e futricas da Alta, distinção que pressupõem um certo grau de aculturação em relação aos seus congéneres da Baixa.
Os antigos limites da Alta mantiveram-se pelo menos até meados do séc. XIX. Segundo Sant’Anna Dionísio, apenas os estudantes e os lentes, submetidos a votos monásticos, dos colégios dos crúzios e dos diferentes recolhimentos de escolares na rua da Sofia podiam residir fora dos limites demarcados pela Couraça de Lisboa, pela Couraça do Apóstolos (“couraça” que tanto é nome de rua como é pano de muralha) e pela Porta de Almedina. Curioso que não se refiram limites para a retaguarda; mas tal não era necessário, pois que Monte Arroio, Santa Cruz e Cumeada eram quintas nessa altura.
Na década de 40 do séc. XX, a Alta foi alvo do maior crime urbanístico jamais perpetrado em Portugal, quando uma parte de si mesma foi implacavelmente demolida para dar lugar a novos edifícios, para que todo o ensino universitário ficasse concentrado nas imediações dos Gerais, na Cidade Universitária. Uma comunidade inteira de estudantes e futricas, berço e relicário das mais fundas tradições da Alta, foi desalojada de uma só vez, a golpes de picareta e camartelo. A Alta tremeu, vacilou… mas não caiu. O peso da tradição falou mais alto e a Alta, em lugar de sucumbir, alargou os seus limites.
Nas décadas de 50 e 60 o conceito de Alta alargava-se a toda a zona delimitada pelas colinas que se estendem da Conchada ao Jardim Botânico – passando por Montes Claros, Celas e Olivais – e, ainda, à área que vai até à Ladeira do Seminário. Grosso modo, pode dizer-se que a Alta era, à época em que andei por Coimbra, limitada a Norte e Nascente pelo perímetro conjugado das linhas dos eléctricos 4 e 3, englobando uma extensa área em cujo epicentro se situavam a Praça da República e a sede da Associação Académica de Coimbra, mantendo, para Sul, os antigos limites das Couraças e da Porta de Almedina.
Os limites da Alta de então foram plasmados no Código da praxe de 1957 e determinavam procedimentos e limitações que faziam sentido num contexto que eu bem conheci. É que nessa época, tal como séculos atrás, em toda aquela extensa área não se encontrava uma loja de modas, uma ourivesaria, um stand de automóveis, um consultório médico ou de advogado. Tal como séculos atrás, naquela área (naquela "Alta”), estavam as casas de estudantes e os cafés e mercearias de bairro, enquanto o grande comércio, os serviços e as casas menos recomendáveis se quedavam pela Baixa.
Entretanto, passaram-se 50 anos. Coimbra alargou-se ainda mais. As Faculdades deixaram de estar concentradas entre o Botânico e a Sé Velha, encontrando-se hoje os Pólos II e III situados em zonas que o Código da Praxe de 1957 classificava como Baixa... por não pertencerem à Alta.
Não admira, pois, que o conceito de Alta se tenha vindo a diluir, tal como referi no início. Era inevitável. A Alta, que resistiu à mutilação de que foi alvo nos anos 40 para que todas as Faculdades se concentrassem num único local da cidade, viria, ironicamente, a não resistir à criação das “novas Altas”, os novos Pólos Universitários, nascidos a partir das décadas de 70 e 80, por vias da explosão do ensino superior.
Mas é bom que a memória destas coisas não se esqueça, para que Coimbra não fique igual a tantas cidades que se sentem felizes com a sua Baixa porque nunca souberam o que era ter uma Alta.
Zé Veloso

12 julho 2010

SAIAM DOIS FINOS PRÀ MESA DO CANTO!

Numa época onde tudo tende a ser tão igual, é salutar que em Coimbra se peça um fino enquanto em Lisboa se pede uma imperial.
Praia do Pego, algures entre a Comporta e Melides. São sete da tarde, mas o sol ainda vai alto, reflectindo um brilho intenso, de fazer doer os olhos, sobre a mareta saltitante da baixa-mar. Descanso o olhar na serra da Arrábida, cujo perfil se recorta a azul cinzento no horizonte mais a norte, até encontrar o mar no Cabo Espichel. Uma ligeira bruma para sul não deixa ver o cabo de Sines, que apenas se adivinha, mas compõe o quadro deste calmo e morno fim de tarde no litoral alentejano.
Não apetece sair dali. Passo pelo bar da praia e abanco na esplanada, na tentativa de retardar o regresso. É tempo de beber uma cerveja. Lanço um olhar cúmplice para a minha mulher, fazemos uma aposta breve e atiro o pedido: – Dois finos, por favor! O rapaz hesita… vira-se para um outro em busca de apoio, conferencia-se rapidamente em português com sotaque brasileiro… e lá saem os dois finos… ainda que em copo de plástico. – Finíssimo!!!...
Quando vim trabalhar para Lisboa, já lá vão 40 anos, a palavra “fino” não constava do léxico da capital do Império, onde o termo “imperial” fazia jus ao estatuto da cidade. “Fino” era uma característica de Coimbra e, também, do Porto; e pedir um fino em voz alta correspondia à exibição pública de uma “certidão de proveniência” nortenha. Com o passar dos tempos, o “fino” chegou a todo o país. Mas não há dúvida de que ele continua agarrado a Coimbra, como esta semana bem pude provar com um breve inquérito no Facebook.
Porque será? Até hoje só encontrei uma referência para a origem da palavra “fino”. Foi no livro de memórias Boémia Coimbrã (dos anos 40), de A. Nicolau da Costa.
Mas para que não se vá com muita sede ao pote, ou melhor, ao fino, deixem-me dizer-vos que Nicolau da Costa, que foi responsável pelo jornal académico O Ponney – fundado em 1929 por outro boémio de nomeada, Castelão de Almeida – foi um dos grandes boémios da academia coimbrã de 40, boémios estes que se intitulavam a si próprios de "cow-boys" ou "cáboys", designação que deverá ter estado na origem da claque de futebol "Cow-boys", formada por Mário Cunha em 1936.
Nicolau da Costa conta-nos que era amigo de copos de um refinado boémio, de seu nome Toninho Saraiva, "Toninho Copi" para os amigos, tipo «sombra magrinha, bem penteadinha» que vagueava por Coimbra naquela época.
Pois bem, o Toninho Saraiva tinha-se curado duma tuberculose galopante em poucas semanas e atribuía a sua cura milagrosa à cerveja, da qual era apreciador esmerado, coisa que médicos amigos me disseram ser tão provável como as galinhas terem dentes. Mas para o “Toninho Copi” isso era uma verdade absoluta. Sigamos agora em directo o texto de A. Nicolau da Costa:
«...E talvez fosse por isso que religiosamente, diariamente, como quem se sacramenta, descia as escadas da "Domus", na Visconde da Luz, para se regalar, profilacticamente, com doses maciças daquele "medicamento". A essas formidáveis libações, chamava-lhe ele "Os banhos do Toni"... Entenda-se por "Toni" o único dente incisivo de que dispunha a sua devastada dentadura...
«Dessa convivência diária com a cerveja, resultou que o Toninho ficou perito. E ficas a partir de agora ciente de uma verdade incontroversa, caro leitor: Quando hoje te sentas a uma mesa e displicentemente, por hábito, pedes um "fino", estás, sem o saberes, a seguir as indicações técnicas do Toninho. Sim, senhor! A classificação de "fino" começou quando o Toninho exigia que lhe servissem em copo de vidro fino, como ele apreciava. Exigia-se de início: "Um copo de cerveja de vidro fino!". Depois pedia-se "Um copo fino". Hoje generaliza-se e pede-se "Um fino!".
Como diria o Peça: – E esta, hem?!!
Por isso, quando me serviram um fino numa delgada película transparente com a forma tronco-cónica a que dão o nome de “copo de plástico”, o meu comentário não poderia ter sido outro: – Finíssimo!!!
Zé Veloso
PS escrito em 31/08/2022:

Este post foi escrito em 12/07/2010
Em 23/07/2010 recebi na página do Facebook “Penedo d@ Saudade”  – página que hoje está inactiva, tendo dado lugar ao grupo “Penedo d@ Saudade - TERTÚLIA" – um comentário do filho do Toninho Saraiva, comentário que registei mais abaixo, mas que hoje decidi trazer para o corpo principal do post, dada a sua importância:

QUOTE

J Veloso
Confirmo a história do “Fino”.
Toninho Saraiva era meu pai, falecido em 1992.
Toninho iniciou as suas lides na Boémia Coimbrã aos 18 anos, por volta de 1945, fugindo do Caramulo onde fora internado por conselho de um especialista catalão com diagnóstico de tuberculose rara e fatal.
"Antes que o avô o reencaminhasse para o sanatório, refugiou-se numa república Coimbrã e passou a integrar a trupe do Felisberto Pica e outros boémios que quando pediam uma rodada de cerveja nas suas incursões à Baixa, a excepção era sempre a frase “mas para o Toninho num copo muito fino”, mais tarde o “Fino”.
Dizia-se então que o Toninho era faquir, pois não os bebia… engolia-os!
Fino era exclusivo de Coimbra até aos anos 70, no Norte era Príncipe, no Sul Imperial, e só em meados dos anos 80 se “nacionalizou” quando apareceu uma campanha com o claim – Sagres, o Fino!.
Continue a perpetuar as memórias de Coimbra!
Obrigado
José Mª Saraiva Marques

UNQUOTE

A imagem dos copos de cerveja foi descarregada do link:

http://www.google.pt/images?hl=pt-PT&num=10&as_epq=&as_oq=&as_eq=&lr=&cr=&as_ft=i&as_filetype=&as_qdr=all&as_occt=any&as_dt=i&as_sitesearch=&as_rights=&safe=images&q=copos+de+cerveja&um=1&ie=UTF-8&source=univ&ei=ZPg5TIrPHMKSjAfNoKjhAw&sa=X&oi=image_result_group&ct=title&resnum=4&ved=0CDUQsAQwAw