23 janeiro 2011

VISITA GUIADA PELA BAIXA QUINHENTISTA

    Como seria Coimbra no tempo de D. Sebastião, aquele rei que em 1570/71 visitou a cidade durante três meses e meio, chegando a assistir a algumas aulas na Universidade, e em 1578 pediu a espada de Afonso Henriques emprestada ao Mosteiro de Santa Cruz para que ela lhe desse sorte em Alcácer-Quibir?
    Ao falar em D. Sebastião poderá parecer que ele teve especial influência no desenvolvimento de Coimbra, mas tal não foi o caso. Se me agarro aqui ao Desejado – quem é que em Portugal nunca se agarrou a um qualquer? – é apenas porque, enquanto decorria o seu reinado, começou a ser publicada uma colectânea de vistas das principais cidades do mundo conhecido, entre as quais se encontra aquela que tem sido referenciada como a primeira gravura retratando Coimbra: a gravura de Georgius Braunius. É através dela que faremos hoje uma visita guiada à zona norte da Baixa de então – ou melhor, à zona norte do arrabalde. Sigamos, então, o cicerone.
    Começando pela esquerda baixa, temos o Campus Arnado, areal que se estendia do Mondego até à zona hoje ocupada pelas Galerias do Arnado. Não nos deteremos por aí, já que no passado dia 6 tivemos uma outra visita guiada por essa zona. Caminhemos, então, mais para Sul (para a direita), onde vemos o largo cercado de casario (cc) em redor da primitiva Igreja de Santa Justa, a qual foi deixada ao abandono no início do Séc. XVIII por as cheias não permitirem a regularidade do culto e, penso eu, por os frades se terem fartado de viver com os pés molhados. A igreja foi reconstruída em terreno elevado, mais a Norte, no local onde hoje se encontra. Apareceria no seu antigo lugar o Terreiro da Erva, onde se vendia o alimento para as cavalgaduras da cidade, que muitas eram, como hoje ainda o são, que o número de cavalgaduras sempre esteve de acordo com a importância das terras!... E que ninguém se ofenda, já que eu me refiro tão somente às cavalgaduras de 4 rodas que, tendo substituído as de 4 patas, continuam a aproveitar o Terreiro para aí descansar das suas caminhadas.
    Saíram os frades, mas por ali se quedaram as mulheres de mau porte, até porque os estatutos da Universidade determinavam que não vivessem da Porta de Almedina para cima mulheres solteiras, escandalosas ou de mau exemplo, em casa própria ou alugada. E por ali se quedaram também as cheias, registando-se que, ainda no início do século XX, havia desgraçados que levavam às costas clientes de certas casas, para que não deixasse ali de ser exercida a mais velha profissão do mundo!
    Quem vive na Coimbra de hoje já mal se lembra do que eram as cheias. Mas a história de Coimbra está recheada de conventos e igrejas tragados pelas águas do Mondego, alguns dos quais têm vindo a ser resgatados, como foi o de Santa Clara-a-Velha e será o de S. Francisco. Outros se perderam para sempre, mas quase se poderia dizer tratar-se de uma ninharia, numa Coimbra que chegou a ter 8 conventos e 22 colégios, todos eles com suas igrejas privativas, sendo que os colégios das ordens religiosas, juntamente com os Reais, constituíam uma rede com funções de pensionato, assistência e ensino, funcionando, nalguns casos, como antecâmara das várias Faculdades, já que o ensino secundário não estava então organizado e por aquela via se fazia a preparação para a entrada na Universidade.
    Mas voltemos à nossa visita e percorramos a Rua da Sofia (ou de Santa Sofia), onde a Porta de Santa Margarida (hh), bem visível à esquerda da gravura, marcava o limite urbano na saída para o Norte. Mandada abrir por D. Manuel I, esta rua era então a mais larga, bela e imponente do país, com as fachadas altivas dos seus colégios, os quais deram mais tarde para tudo, desde quartéis, repartições e hospitais até garagens para recolha de autocarros. Foi um “fartar vilanagem”, depois que o Mata Frades – Joaquim António de Aguiar, o da estátua no largo da Portagem – declarou extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios, e quaisquer outras casas das ordens religiosas regulares, íamos então no ano de 1834.
    Caminhando ao longo da Rua da Sofia, em direcção ao centro da cidade, temos à nossa esquerda uma correnteza de edifícios, de onde se destaca o Colégio de Nossa Senhora da Graça (aa), mais tarde transformado em quartel. Aí compareci, sem achar graça alguma, quando chegou a altura de “ir às sortes”, para que os doutores militares me olhassem “como Deus me trouxe ao mundo”, e concluíssem que não haveria sorte para ninguém, já que a guerra de África tinha começado e nem os coxos haveriam de escapar.
    Seguindo o percurso, passamos pelo Colégio de Nossa Senhora do Carmo (Y), em cuja igreja a Rainha Santa descansa três noites de dois em dois anos, e terminamos a visita nos edifícios de planta rectangular e aspecto tenebroso (X) (ver Nota) – onde funcionava ao tempo o Tribunal da Inquisição, espaço hoje ocupado parcialmente pela CGD.
    A Inquisição, chegada a Coimbra em 1541, ocupou aqueles edifícios desde 1572 até à sua extinção formal em 1821. Milhares de homens e mulheres, leigos e eclesiásticos, foram ali interrogados, torturados e sentenciados por delitos de opinião; alguns apodreceram encarcerados até à morte, outros não resistiram aos “tratos de polé”, outros ainda… O historiador Francisco Bethencourt, calculou que houve no Tribunal da Inquisição de Coimbra 10.374 processos, deles resultando 547 condenações à morte.
    A lembrar estes tempos de horror, subsiste hoje o Pátio da Inquisição. E é bom que a toponímia se não altere, para que nos lembremos do quanto evoluímos nos últimos séculos e não nos esqueçamos de que ainda não estamos assim tão longe da barbárie. O último queimado vivo na fogueira em Portugal, pelo crime de ser herege – o jesuíta Gabriel Malagrida – foi-o apenas há 250 anos!
    Nota: Estes edifícios são os antigos colégios crúzios de S. Miguel e de Todos os Santos, que foram cedidos em 1548 pelo Mosteiro de Santa Cruz, para aí funcionar o Real Colégio das Artes, posteriormente transferido para a Alta.

3 comentários:

  1. Ricardo Figueiredo01 fevereiro, 2011 21:37

    Prezado Zé Veloso
    Tens um companheiro, muito interessado, seguindo a tua visita à Coimbra quinhentista.A tua prosa tornará o percurso mais agradável, mesmo quando, mais adiante, subirmos de Almedina para a Alta.
    Proponho, consentes(?), aos teus amigos leitores, que procurem um interessante artigo de
    José Branquinho de Carvalho-Coimbra Quinhentistas,Arquivo Coimbrão, 1947,umas duas dezenas de páginas, de leitura fácil, e viverão o quotidiano com os conimbricenses de então, na ainda reduzida área do Arrabalde,”artífices, agricultores,povo humilde e miseráveis” e Alta, “com os bispos e cónegos, fidalgos e cavaleiros e burgueses de grossos cabedais”
    Conhecerão os progressos monumentais com D. Manuel, depois com D.João III e os seus Colégios e Universidade. Entrarão nas intrigas entre os crúzios e o bispado, as idas a Roma, a luta pela água que os frades pretenderam reter, a intervenção de D. Sebastião,os problemas do assoreamento do Mondego e os monchões, os afrontamentos entre a Vereação e a Universidade, etc, etc.
    Seguirão o mapa, pela toponímia de então e serão apresentados a bispos, vereadores, provedores, promotores,alcaides, meirinhos, visitas reais, profissionais de então (sabiam que patife e alcoviteiro era profissão?).Conhecerão a influência e importância dos cruzios (St.Cruz) na história de Coimbra e , também, na do Reino.
    E o povo que, progressivamente, se afirma perante os nobres e os bispos, a sua organização nos 24, as eleições democráticas,as mordomias, as aposentadorias e camas, as “fintas” , os “isentos”.As festas e as procissões.
    E, com um pouco mais de leitura, uma dezena de páginas”Finanças Quinhentistas do Municipiio Coimbrão-A. Da Rocha Brito-1943”ficarão a saber como se geria um município,com “pouco mais de 5.000 almas e que se pagavam 400$000 por 2 carneiros “
    Não saberão da atitude do povo,ao tempo, perante a supernova (grande explosão de uma estrela que faz aumentar a sua luminosidade) que terá ocorrido em 1572, tal como anunciam, agora, os cientistas, para o ano de 2012.”A Terra poderá se iluminada por dois sois e não ter uma única noite durante duas semanas-Brad Carter-Queensland-Austrália”.
    Boa noite.

    ResponderEliminar
  2. Ricardo Figueiredo09 fevereiro, 2011 15:36

    Caro Veloso
    Relendo a tua prosa, julguei interessante, se o permitires, intercalar a reprodução de alguns apontamentos coevos que, investigadores reconhecidos e muito dedicados a Coimbra, trouxeram aos leitores, retirados da poeira dos arquivos.
    Logo, algumas das cartas dirigidas aos edis de Coimbra, como a que segue, em
    30 de Outubro de 1542
    “Juiz Vereadores e procurador eu el Rey vos envujo muito saudar eu desejo que nessa cidade se faça huu colegio e moesteiro de nossa Senhora da graça…”(*), dando conta da construção de um colégio, na Rui da Sofia. Em Coimbra, terão existido 32 colégios.E se “em 1540, as matriculas afirmam a existência de 600 estudantes”, em 1548, só no colégio das Artes,à Rua da Sofia o número de escolares andava por 1.200”(*****).
    Depois,o ambiente insalubre da primitiva zona de St. Justa era conhecido por”ser o mais doentio de toda a cidade por ser palùlento junto do rio, e por esta razão haverem nele pela maior parte mulheres erradas”(******), conforme o parecer elaborado pelo notável lente de anatomia, Dr.Bravo Chamiço.
    Anos mais tarde,D. Sebastião anuncia à Camara, a vinda a Coimbra, por carta de
    26 de Setembro de 1570
    “Juiz Vereadores E procurador da cidade de coJmbra eu el Rey Vos emuio muito saudar, eu tenho asentado de Jr a essa cidade E serey lá com a ajuda de noso Senhor ate dez ou quinze de Outubro que Vem, polo que me pareçeo que Vol lo deuia fazer saber, Jorge da Costa a fez em Sintra a xxbj de Setembro De 1570-Rey”(*), e entra na cidade.
    Em 13 de Outubro de 1570, el-rei D.Sebastião, acompanhado de grande e vistoso séquito, atravessa a famosa Ponte Manuelina, já acrescentada por ele.”Montado em garboso cavalo castanho vestia um pelote verdoso e capotim de camelote preto, trazendo na cabeça um grande chapéu pardo”(****).

    ResponderEliminar
  3. Ricardo Figueiredo09 fevereiro, 2011 15:37

    Então, a Inquisição,logo
    “No Anno de 1541=O Cardeal Infante Dom Henrique Inquisidor Gerral, instituhio o tribunal sagrado da Inbquicissão de Coimbra: vierão os Primeiros Inquiszidores por Carta sua pouzar a este real mosteiro de <Santa Crus, aonde o Padre Prior Geral os agazalhou, ê estiuerão em quanto se não aparelhauão casas onde pudessem nellas assentar aquele sagrado tribunal de feê”(***)
    “No pátio de S.Miguel, um dos locais onde eram feitos os autos de fé , havia duas portas uma chamada de S.Miguel e outra de Todos –os- Santos.Quando foi construído o respectivo edifício, essa portas davam entrada para os colégios de S. Miguel e de Todos-os –Santos, que primeiro pertenceram ao mosteiro de Santa Cruz e depois aos jesuítas.
    Estabelecido o tribunal da Inquisição no edifício referido, a porta de S.Miguel passou a ser a entrada principal..”(**) Em Coimbra,” o primeiro auto-de fé teve lugar na Praça de S. Bartolomeu, depois no terreiro de S.Miguel (Pátio da Inquisição) algumas vezes no campo do Arnado”.
    E, para terminar, uma nota sobre o pós fecho dos conventos”um retrato do Arcediago D.Telo,(Fundador do Mosteiro de St. Cruz) pintura em tela, único exemplar conhecido, retirado dentre os destroços de grande número de velhos quadros de mosteiros, recolhidos na Universidade,ocorreu em 1940, por António Gomes da Rocha Madail.
    (*)Cartas originais dos reis(1480-1571)-J.Branquinho de Carvalho-1942 e 1945
    (**)Fontes e chafarizes de Coimbra e suas imediaçõesF.A.Martins de Carvalho-1942
    (***)Crónica de Santa Cruz-D.Fr.Timóteo dos Mártires-tomo I- Ed.Biblioteca Municipal de Coimbra-1955
    (****)A ponte real de Coimbra-A.da Rocha Brito-1947
    (*****)Finanças Quinhentistas-A.da Rocha Madail-1943
    (******)Uma grave questão de higiene –A.da Rocha Madail-1953

    ResponderEliminar

Os comentários são bem-vindos, quer para complementar o que foi escrito quer para dar outra opinião. O saber de todos nós não é de mais.