06 fevereiro 2011

BENTES OU VENTES?

    Dizia-se, no meu tempo, que era em Coimbra que melhor se falava o Português. Não admira que assim fosse e admito que ainda assim o seja. Coimbra é uma terra de cultura. Para além disso, é uma terra de passagem, não longe do centro demográfico de Portugal continental. Logo, o português que nela se fala deve ser o mais representativo do país. Em Coimbra não se usa a pronúncia do Norte, nem a de Bijeu, não se diz mensa como em Lisboa, não se diz compádriii como no Alentejo, nem se fala cantando, como acontece em muitas outras terras. A pronúncia de Coimbra não é pronúncia, é o padrão. É como a água pura, cristalina, incolor, insípida e inodora, com densidade 1 a 4 graus centígrados e que ferve a 100, quando à pressão normal.
    Porém, se a pureza da língua era um facto nas gentes de Coimbra, não é menos verdade que as populações rurais dos arredores costumavam trocar os vv pelos bb, tal como é característico do Norte. Mas também aí havia excepções. Recordo que na quinta onde nasci e vivi a meninice havia um criado da lavoura, de nome César, que fazia gala em falar bem, gabando-se de nunca trocar os vv pelos bb, não fosse ele de Ançã, ali tão perto de Coimbra, e adepto da Académica.
    Foi com ele que aprendi a admirar o Ventes, numa altura em que pouco ligava ao futebol, já que os relatos do hóquei em patins eram muito mais emocionantes e as finais tinham um saborzinho a Aljubarrota, com "táctica do quadrado" e tudo – embora, no caso do hóquei, esta táctica estivesse com os de Castela e não com as hostes portuguesas!...
    Mas voltemos ao Ventes. Aos domingos ouvia-se o relato do futebol e às segundas lá vinha o César, doido pela Académica, clube dos estudantes bem-falantes a que ele pertencia por direito próprio – por nunca trocar os vv pelos bb –, lá vinha o César gabar as jogadas e os golos do Ventes: «Ó Zezinho, aquilo é que foi! Grande Ventes!...»
    Não foi apenas ao César que o Ventes enfeitiçou. Enfeitiçou a muitos mais. A sua magia ficou nos olhos de quantos o viram jogar, ou de quantos, como o César, não o tendo nunca visto, apenas o puderam imaginar. Como diria o Poeta, "melhor é experimentá-lo que julgá-lo, mas julgue-o quem não puder experimentá-lo".
    E já que entrámos pelo campo da poesia, deixo-vos com a Balada do Bentes, de Manuel Alegre. Quem nunca o viu jogar… que o julgue agora.
    Nem tudo era só bota de elástico
    havia alguém capaz de alguns repentes
    a fuga para a frente e o fantástico
    a festa e a alegria: havia o Bentes.
    Ele fintava ele driblava ele ganhava
    os jogos que ninguém nos consentia.
    Era a Académica e a aventura era a palavra
    que de súbito golo se fazia
    quando corria pela esquerda e nos levava
    nas jogadas da sua fantasia.
    No tempo devagar ele era a pressa
    trazia o imprevisto e o inesperado
    um golo de pé esquerdo ou de cabeça
    que virava o domingo e o resultado.
    Ele avançava sem pedir licença
    contra a rotina o tédio a vida anémica
    era a ousadia e a diferença
    ele era outra maneira – era a Académica.
    Fosse o Porto o Sporting o Benfica
    ele era o que rompia.
    De seus dribles nasciam as serpentes
    como o poema o seu jogo não se explica
    ele era a fantasia
    ele era o Bentes. [1]
    António de Deus Costa de Matos Bentes de Oliveira – o “Rato Atómico”, como carinhosamente era conhecido pelos adeptos da Briosa – nasceu em Braga a 29 de Agosto de 1927 e faleceu com 75 anos a 6 de Fevereiro de 2003 [2].
    É sua a frase «O meu primeiro clube é, como toda a gente sabe, a Académica. O segundo, as reservas da Académica. E o terceiro, os juniores da Académica
    Zé Veloso
[1] Poema escrito para o livro ACADÉMICA, da AAC (OAF) e da Casa da Académica em Lisboa, editado em 1995.
[2] Dados biográficos do Bentes, excepto data de falecimento, obtidos em Académica. História do Futebol de João Santana e João Mesquita.
A fotografia do Bentes foi obtida a partir do livro referido em [1].
A segunda fotografia – Equipa da Académia de 1955-56  foi obtida na internet. 
 



 

2 comentários:

  1. Mais uma desta vez curta mas expressiva intervenção, ainda por cima ilustrada com a fotografia da Briosa e um poema ao eterno Rato Atómico.Obrigado!

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  2. arucinova@gmail.com22 fevereiro, 2011 15:32

    O que seria de nós sem as diferença que nos distinguem?
    Não é afinal Portugal um retalho de cores, saberes e sabores?
    Parabéns pela crónica.

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