Passam hoje 24 anos sobre a morte de Zeca Afonso.
24 anos! Como é possível?! Estou a vê-lo entrar no palco para o seu último concerto e arrancar, já sem o fulgor de outros tempos,
Do Choupal até à lapa
Foi Coimbra os meus amores
A sombra da minha capa
Deu no chão, abriu em flores
Foi Coimbra os meus amores
A sombra da minha capa
Deu no chão, abriu em flores
para, pouco depois, ter a coragem de cantar, voz embargada pela comoção, a premonitória “Balada do Outono”:
Águas das fontes calai
Ó ribeiras chorai
Que eu não volto a cantar.
Águas das fontes calai
Ó ribeiras chorai
Que eu não volto a cantar.
Zeca era, foi, o maior. Todos os outros procuraram imitá-lo, segui-lo, mas de cada vez que o tentavam agarrar ele já não estava no mesmo sítio. A sua incrível intuição musical – Zeca Afonso sabia da música apenas os rudimentos – e o seu apurado sentido poético logo o atiravam mais para a frente.
Quando a moda era a canção de Coimbra acompanhada à guitarra e à viola, ele surgiu acompanhado apenas pela viola do Rui Pato; quando os demais imitaram as suas baladas acompanhadas à viola, ele surgiu com Maio, maduro Maio, acompanhado pela mini-orquestra e coros dos arranjos do Zé Mário Branco, no mesmo disco em que arriscou lançar uma canção sem acompanhamento algum: Grândola, Vila Morena.
A saída do LP Cantigas do Maio, cuja novidade não se esgotou ainda, 40 anos depois (!), foi algo que eu costumo comparar ao aparecimento do Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band. Cada um no seu estilo musical, mas o estrondo foi o mesmo: os consagrados rompiam em absoluto com o que até aí tinham feito, mostrando aos mais novos que “velhos são os trapos”.
Não conheci pessoalmente o Zeca. Ele era da geração de 50, enquanto eu pertenci à de 60. Mas fui colega de músicos que o acompanharam: Rui Pato, “Bóris”, Phil Colaço, 15 anos mais novos do que ele, o que dá bem a ideia da sua juventude de espírito.
Zeca Afonso não era de modas. Mas ele acabava por fazer a moda, com o seu estilo anti-vedeta. Como não era capaz de decorar as letras – nos tempos em que cantava fado de Coimbra era a malta que lhe fazia de ponto – começou a cantar com a letra escarrapachada num tripé à sua frente… e a moda pegou. O que até aí era parolo passou a ser chique!
Sobre o Zeca Afonso muito foi dito e escrito. Mas tem ficado esquecida a sua ligação à Briosa. Zeca Afonso jogou um ou dois anos na equipa B dos juniores da Académica, nos finais da década de 40, a extremo-direito e a interior-esquerdo. Como ele próprio confessou numa entrevista que deu a José A. Salvador poucos anos antes de morrer, foi sempre extremamente irregular: sem saber népia metia assim um golo… mas no desafio seguinte jogava pouco. Não aguentava mais que vinte minutos de jogo.
Pergunta o jornalista: - E se a Académica ia jogar fora, também ias? – É claro. – E se havia porrada no campo? – Considerava uma obrigação, um dever, quase um autêntico juramento, uma autêntica profissão de fé defender a chamada Briosa. E, quando o entrevistador lhe pergunta: – Mas o que te marcou em Coimbra? - responde o mesmo que eu e muitos outros teríamos respondido: – Essa atmosfera romântica e irreverente ao mesmo tempo.
Depois de Abril, Zeca Afonso passou ainda mais a património nacional e foi bandeira de muitas causas. O seu espírito desprendido, ingénuo, anarquista, revolucionário, “o rosto da utopia” como lhe chamou José Salvador, levou a que se entregasse sem nada pedir em troca às mais diversas causas, tornando-se o patrono dos mais fracos.
Não admira, por isso, que muitos se apropriassem da sua imagem; e muitos são aqueles que hoje reclamam Zeca Afonso para o seu lado. Mas é bom não esquecer que Zeca foi, antes de mais, um produto de Coimbra e da sua Academia! E é para essa Coimbra e para essa Academia que eu o reclamo.
Zeca Afonso é vinho da mesma cepa que produziu as gerações solidárias de estudantes da Coimbra dos anos 50 e 60, aquelas gerações que - como escreveu Amadeu Homem num comentário que li no Facebook – partilhavam quase tudo, menos as namoradas.
O Zeca nunca esqueceu Coimbra e a sua Academia. E nunca as renegou, mesmo que se tenha referido posteriormente aos seus tempos de estúrdia coimbrã com algum distanciamento crítico. Por isso, ao dar no Coliseu de Lisboa o seu último espectáculo, o concerto em que revisitou toda a sua vida artística, fez questão de abri-lo com uma guitarrada de Coimbra, tocada por antigos estudantes de Coimbra, capas negras pelos ombros, numa época (1983) em que nem todos tinham coragem de assumir esse passado que, à altura, era frequentemente tido por reaccionário.
Zé Veloso
Coimbra a as suas tradições não me dizedm muito, mas cá vou aprendendo. Já o Zeca, diz-me muito mais. Este texto merece uma ilustração musical. Talvez Utopia
ResponderEliminarhttp://www.youtube.com/watch?v=RGj75QdsROk
Pedro,
ResponderEliminarObrigado pela tua sugestão, deste-me uma belíssima ideia. Acabo de ilustrar musicalmente a crónica com alguns trechos do Zeca
Zé Veloso
Zé Veloso,estive nesse fabuloso e inesquecivel concerto do Zeca Afonso de 1983,no Coliseu. O que mais guardo e retanho,alem da já grande debilidade física,é a sua enorme generosidade em palco ,ao ponto de nas músicas mais emblemáticas(como a Grândola,por ex.)chamar todos os amigos cantores presentes,e eram bastantes,para cantarem com ele,e além disso, fundamentalmente, para participarem daquele evento,porque tudo na vida do Zeca era um saber estar com toda a gente,tudo aquilo em que participava,era uma comunhão colectiva e solidária.Além de guardar com muita ternura,a grande emoção do início do concerto,quando cantou os fados e as baladas de Coimbra.Abraço Luis Oliveira
ResponderEliminarUm texto sempre atual, Zé Veloso! É uma homenagem a um homem que a nós todos inspirou pela coragem com que assumiu os seus ideais. Através do seu legado, Zeca continua a mostrar-nos como foi um homem que lutou pela liberdade, mas também um homem que soube viver o seu tempo e nos deixou gravações de extrema beleza.
EliminarNão resisto a deixar aqui mais um registo musical dele:
http://www.youtube.com/watch?v=ebfUlFSjw70
Inquietação
José Afonso
És linda, se foras feia
Mesmo assim eu te queria
Não é por ser lua cheia
Que a lua mais alumia.
Todo o bem que não se alcança
Vive em nós morto de dor
Quem ama de amor não cansa
E se morrer é de amor.
Tal como escreveu e bem José VELOSO o nosso grande cantor e autor José Afonso no seu último espectáculo que organizou e participou Lisboa Coliseu dos Recreios em 1983 teve na abertura as guitarras de Coimbra.
ResponderEliminarNa verdade nunca renegou a sua vida académica na cidade do Mondego e foi intelectualmente honesto quando se referia ao fado de Coimbra. Admiro-o bastante pelo seu passado de luta antes de 1974 e pela sua independência e desapego ao poder depois do 25 de Abril.
Obrigado pelo seu comentário. O nosso Zeca bem o merece.
EliminarZé Veloso