Até meados do século passado, o S. João tinha em Coimbra uma grande tradição. Mais lógico me pareceria que se festejasse o Santo António, santo que fez os seus estudos no Convento de Santa Cruz, antes de partir para Lisboa e de ter chegado a Pádua, e que se diz que terá passado algum tempo no Mosteiro dos Olivais.
Mas não! As preferências iam para o S. João, esse santo casamenteiro a quem as raparigas confiavam a escolha de um bom marido, perito em "desencalhar" as que se sentissem desesperadas, como se deduz desta deliciosa e bem antiga quadra:
Mas não! As preferências iam para o S. João, esse santo casamenteiro a quem as raparigas confiavam a escolha de um bom marido, perito em "desencalhar" as que se sentissem desesperadas, como se deduz desta deliciosa e bem antiga quadra:
Ó meu rico S. João,
Casai-me, que bem sabeis:
O casar é aos catorze
Eu já tenho dezasseis...
Casai-me, que bem sabeis:
O casar é aos catorze
Eu já tenho dezasseis...
S. João é um santo folião, eu diria mesmo, um santo “desencaminhador”, cujas festividades misturam ritos ligados à figura de S. João Baptista com ritos pagãos, herdados das celebrações do solstício de Verão.
Recordo-me bem do pátio da casa onde nasci, em Ançã, onde na noite de S. João se saltava por cima duma fogueira – enorme para as minhas pernas de garoto – e se dançava de roda, encadeando os braços, ao som das quadras matreiras do santo:
Recordo-me bem do pátio da casa onde nasci, em Ançã, onde na noite de S. João se saltava por cima duma fogueira – enorme para as minhas pernas de garoto – e se dançava de roda, encadeando os braços, ao som das quadras matreiras do santo:
Fogueiras do S. João
No que elas vieram dar
Roubaram-me o meu amor
Na maior força de amar.
No que elas vieram dar
Roubaram-me o meu amor
Na maior força de amar.
Mas nas fogueiras do S. João no interior da cidade de Coimbra, há muito que não havia fogueira alguma com lenha e fogo vivo. Pelos anos 40 a 60 do século passado, as fogueiras eram essencialmente arraiais onde se dançava ao ar livre, com danças marcadas por um "mandador". Quando o "mandador" folgava para molhar o bico ou tratar de outras precisões, era a altura da malta "dançar agarrado", modalidade menos espectacular para os mirones mas muito do agrado de quem estava ali para tentar a sua sorte. Célebres eram as fogueiras do Bairro de Celas, onde uma boa parte do "povo Salatina" foi realojada depois da destruição da Velha Alta. O arraial ocupava todo o largo redondo no meio do bairro, onde pontificava a imagem de S. João Evangelista, de cuja coroa saíam - como raios de Sol - os festões enfeitados que partiam em direcção ao casario circundante. Recordam-me alguns amigos que o largo era inclinado, o que não facilitava que a mole humana fizesse a roda, mas sempre desculpava alguns desequilíbrios mais afoitos aquando da "dança agarrada".
Indo mais atrás, à segunda metade do Séc. XIX, fossem elas na Alta, na Baixa ou no Calhabé, as fogueiras são-nos descritas como um conjunto de postes colocados em redor de um outro, ao centro e mais alto, ornamentados com buxos de verdura e festões, donde pendiam balões venezianos, sendo o conjunto iluminado por bicos de gás ou candeeiros de petróleo. Ali se "prantavam" os tocadores – viola, violão, guitarra, harmónio, ferrinhos, castanholas… – e um "mandador" a quem cabia marcar a coreografia das danças enquanto, no dizer de Trindade Coelho, «andava a cachopada numa roda-viva nos braços dos estudantes, e os estudantes numa roda-viva nos braços da cachopada».
As fogueiras eram a festa das tricanas. Elas é que organizavam, punham e dispunham. Elas eram as rainhas da festa e, lá mais pelos calores adentro, eram também a causa das zaragatas em que fatalmente as fogueiras haveriam de terminar, por mor das arremetidas dos estudantes, dos risinhos folgados das tricanas e da ciumeira dos futricas.
As letras das músicas que se cantavam e dançavam chegaram até nós em livros da época, aparecem em alguns fados de Coimbra e a sua compilação foi recentemente editada pela C.M.C. [1]. À primeira vista, parecem ser quadras soltas, sem qualquer ligação entre si. Mas, se repararmos melhor, notaremos que elas retratam as tensões existentes no triângulo amoroso "estudantes – tricanas – futricas". E, com um pouco de fantasia, poderemos até agarrar numas quantas, reordená-las e imaginá-las como fazendo parte de uma desgarrada – um "Vira de Coimbra"? – em que as três partes se iam mutuamente provocando.
Por exemplo, a conhecida quadra
O amor do estudante
Não dura mais que uma hora
Toca o sino, vai prà aula
Vêm as férias, vai-se embora...
Não dura mais que uma hora
Toca o sino, vai prà aula
Vêm as férias, vai-se embora...
... é, claramente, uma provocação ou um aviso de um futrica para uma tricana. Perante o desafio, responde a tricana, com soberba:
O meu amor é estudante
Estudante de Latim
Se ele se chegar a formar
Ninguém tenha dó de mim...
Estudante de Latim
Se ele se chegar a formar
Ninguém tenha dó de mim...
... ainda que não deixe de confessar quanto o amor do estudante a traz cativa e a faz sofrer:
Amor como o de estudante
Não há outro não há não
Leva toda a nossa vida
Rouba o nosso coração.
Não há outro não há não
Leva toda a nossa vida
Rouba o nosso coração.
E, quando o estudante se procura justificar perante a cidade,
Ó cidade de Coimbra
Arrasada sejas tu
Com beijinhos e abraços
Não te quero mal nenhum...
Arrasada sejas tu
Com beijinhos e abraços
Não te quero mal nenhum...
... logo um futrica, despeitado, contra-ataca e deita uma acha mais para a fogueira:
As tricanas todo o ano
Vão plantar os seus amores
Lá no jardim do engano:
No coração dos doutores.
Vão plantar os seus amores
Lá no jardim do engano:
No coração dos doutores.
A batalha aquece. O verniz está quase a estalar. Mas o estudante não desarma e vira-se para a tricana com voz insinuante:
Eu vim a Coimbra ao estudo
Com tenções de me formar
Apenas vi os teus olhos
Nunca mais pude estudar...
Com tenções de me formar
Apenas vi os teus olhos
Nunca mais pude estudar...
... e quando a tricana se solta, ardente e graciosa,
Ó amor dá-me os teus braços
Que eu dou-te o meu coração
Ando louca por abraços
Fogueiras de S. João...
Que eu dou-te o meu coração
Ando louca por abraços
Fogueiras de S. João...
... a desordem está armada. Sai murro seco entre os homens, enquanto o mulherio acode pelos de fora e se delicia com o espectáculo.
E ia-se depois até à Fonte do Castanheiro, hoje completamente ao abandono, no arrabalde da Arregaça. Era lá que todas as fogueiras se juntavam no final da folia. E ninguém mais se deitava antes que o sol raiasse, fazendo jus à expressão “noite de S. João”. Nas "Memórias do Mata Carochas", conta-se que, «ali chegados, todos faziam libações e abluções e os rapazes arrancavam canas bravas, davam-nas às raparigas e voltava-se no mesmo entusiasmo, em procissão da Cana Verde».
Dizia a tradição que, naquela noite, as águas da Fonte do Castanheiro eram abençoadas, tal como os orvalhos e ervas várias, possuindo virtudes e poderes mágicos. Mas havia que aproveitar bem a noite... já que as virtudes daquela água só duravam até ao raiar do Sol. E que virtudes, Deus meu! Escreve Octaviano Sá que aquela era a «água milagrosa, que traz noivo às raparigas»!
Lembras-te ainda, Maria
Da noite de S. João?
Tu contavas as estrelas
Eu as areias do chão.
Da noite de S. João?
Tu contavas as estrelas
Eu as areias do chão.
Zé Veloso
PS1: Esta crónica foi publicada inicialmente em 26 Jun 2010, tendo sido revista e acrescentada em 26 Jun 2011.
PS2: No primeiro Comentário a este post registei alguma informação adicional sobre as quadras utilizadas.
[1]: Fogueiras de S. João, o que elas vieram dar..., um estudo etnomusicológico das fogueiras de Coimbra, de Avelino Rodrigues Correia. Coimbra, Câmara Municipal, 2007. Orig. tese mestr. em Ciências Musicais, Fac. de Letras da U.C. 2003.
PS2: No primeiro Comentário a este post registei alguma informação adicional sobre as quadras utilizadas.
[1]: Fogueiras de S. João, o que elas vieram dar..., um estudo etnomusicológico das fogueiras de Coimbra, de Avelino Rodrigues Correia. Coimbra, Câmara Municipal, 2007. Orig. tese mestr. em Ciências Musicais, Fac. de Letras da U.C. 2003.