27 março 2010

TRICANAS DE COIMBRA

               Coimbra p'ra ser Coimbra
               T
rês coisas há-de contar:
               G
uitarras, tricanas lindas,
               C
apas negras a adejar.
    Esta quadra antiga, a que o ritmo vivo do Vira de Coimbra empresta uma alegria, uma juventude - e também uma nostalgia - difíceis de igualar, continua a ser uma das mais cantadas em qualquer Serenata de Coimbra, dentro ou fora das portas da cidade.
    Ela simboliza a tripeça em que sempre se apoiou a mística do estudante de Coimbra: o estudo (capas negras), a borga e a vida airada (guitarras), e os amores fugazes e ardentes da juventude (tricanas lindas). E com a particularidade de que, sendo o estudo representado pelas capas negras a adejar, aquilo que seria um fardo se transforma em bandeira ondulante da fantasia!
    Mas será que aqueles ícones ainda hoje se mantêm? Como é fácil de ver, não totalmente.
    E não é por culpa das capas negras, as quais, tendo embora deixado de ser um traje do dia-a-dia do estudante, continuam a aparecer por altura das festas académicas. Nem por causa das guitarras, as quais, ao que penso, são hoje mais populares em Coimbra do que o eram no meu tempo. Nem tão-pouco porque as tricanas tenham deixado de ser lindas. Mas simplesmente porque as tricanas já nem são lindas nem feias. Extinguiram-se, pura e simplesmente.
    Mas quem eram, afinal, as tricanas? Tricana era o nome pelo qual era conhecida, até ao início do Séc. XX, a mulher do povo na região de Coimbra, mas também em Aveiro, Ílhavo, Ovar, e até na região de Águeda. Só que a tricana de Coimbra ficou mais célebre, por causa da sua estreita ligação com a estudantada que pululava na cidade e para a qual se sentia irresistivelmente atraída.
    A primeira referência deste relacionamento encontra-se, ao que se pensa, numa peça de teatro - Eufrósina - escrita em meados do Séc. XVI, pouco depois da instalação definitiva da Universidade em Coimbra. Nesta peça, cujo autor não encarava bem os estudantes (seria ele futrica?), diz-se que estes "andavam em alcateia da cidade para o rio, gabadores e palreiros, namoriscando as moças com parolas latinas, chusma de ociosos cujo trato amoroso era todo de comer feito, como se nunca saíssem do mal cozinhado". E como se tal não bastasse, uma tricana sabida, de seu nome Vitória, lá diz a páginas tantas que os "estudantes bons mancebos são. Se não fossem tão devassos!… O pior que é: muito palreiros e gabadores do feito e por fazer... "
    Como é fácil de perceber, os estudantes de hoje, como os do meu tempo, não diferirão muito dos seus antepassados no que toca à sofreguidão do trato amoroso e à publicidade que fazem dos troféus de noitada, sejam eles reais ou virtuais. Adiante…
    Mas as tricanas, essas, evoluíram e de que maneira, não perdendo muito tempo a rechaçar os "assaltos amorudos dos estudantes”, que as atraiam “com merendas e guloseimas, … contas do pescoço, … sapatinhos que lhes poupem os pés de âmbar e cousinhas de Lisboa, tentadoras como o demo”, para desespero da futricagem.
    Digamos que também se cultivaram e requintaram, no contacto com tantos letrados bem-falantes que lançavam graças em latim, exercício fácil para quem tinha obrigatoriamente de usar a língua latina portas adentro dos Gerais, passada que fosse a, por isso mesmo, designada Via Latina.
    Abro aqui um parêntesis para lembrar que, se hoje nos queixamos de que os alunos chegam à Universidade sem saber português, em tempos idos o mesmo se dizia do latim, sendo a entrada na Universidade precedida de um exame nesta língua morta que, à época, ainda estaria meia viva.
    E a tricana que chega ao Séc. XX já pouco tem a ver com a lavradeira e lavadeira dos séculos anteriores. Ela é já fruto de cruzamentos de sangue com as sucessivas levas de estudantes que invadiram o burgo nos séculos precedentes, sendo até algumas conhecidas e tratadas por apelidos fidalgos das mais nobres casas do reino. E têm já tiques da aristocracia, como bem o demonstra o facto de uma célebre tricana, Rosa Espanhola, se ter recolhido a um convento de Braga em 1900, por vias de uma desilusão de amor com um não menos célebre estudante de Direito.
    As tricanas de Coimbra alimentaram durante séculos a fantasia e os impulsos amorosos dos estudantes que a cidade acolhia. Mas o amor do estudante pela tricana tinha a morte anunciada, com a entrada da mulher na Universidade. Era uma questão de tempo. E no meu tempo já não havia lugar para elas. O amor do estudante tinha-se transferido definitivamente das tricanas para as colegas.

16 comentários:

  1. Sobre a figura que o afastamento temporal foi sublimando, lancemos um manto de poesia:
    Aqui, António Pedro, em Voltas sobre o Mote: "Dá saudades aos teus olhos":

    Tricana de olhos lentos,
    (Duas lágrimas de olhar)
    Cheios de sonhos luarentos
    De guitarras a rezar,
    Fitaste um dia meus olhos,
    Fiquei-me sempre a lembrar...
    Dá saudades a teus olhos,
    Teus olhos lindos de olhar!

    E se for, a desventura,
    Tão desditosa e perjura,
    Que não mais tenha a ventura
    De poder poisar meus olhos
    Na lonjura desse olhar,
    Dá saudade aos teus olhos,
    Que me andam sempre a lembrar!

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  2. Depois do manto diáfano da poesia, a nudez (um pouco crua) da prosa.

    Esta é de Pinheiro Chagas e inserta no Álbum dos Costumes Portugueses, editado nos anos oitenta do século XIX.
    O texto foi truncado, para que o comentador não fique insuportavelmente maçudo e maçador.

    "Deviam saber latim e grego as tricanas do tempo das catedrilhas de Escoto e do domínio de Aristóteles; Devem conhecer perfeitamente Augusto Comte e Herbert Spencer as tricanas de hoje.
    Em Lisboa as sopeiras conhecem intimamente os filhos de Marte; em Coimbra as tricanas, que são muitas vezes as serventes daquele bairro latino, conhecem os filhos de Minerva.
    ...
    Ali, onde as vêem, são as verdadeiras Lauras de todos os Petrarcas da nossa terra.
    ...
    Quando Camões fez a corte a Natércia, já era homem erudito, que sabia Petrarca de cor e salteado e por isso lhe dirige uns sonetos magistrais.
    ...
    Mas as trovas sinceras, filhas das inspirações do Mondego, nascidas espontaneamente entre os salgueirais como as flores silvestres, essas, por Deus, iluminou-as com o negro olhar de alguma tricana de Coimbra.
    ...
    Catarina de Ataíde é a inspiradora oficial, a musa, a Natércia, que Camões adora de lira em punho e coroa de loiros na cabeça, mas a tricana da mocidade, a Lianor que vai de cântaro à fonte, essa é a inspiradora nacional e adorada pelo poeta ao som da guitarra da sua pátria, sob o luar sereno do nosso bom céu português.
    ...
    Assim, num dado momento da sua vida, encontraram-se por ali, em Coimbra, os rapazes gentis e enamorados e as galantes e divinas tricanas. Foram elas o sonho daquelas adolescências em pleno verdor e eles o ideal supremo daqueles corações feminis, que despertam na abençoada ignorância da vida.
    Mas depois passaram os cinco ou seia anos sacramentais, veio a barba aos rapazes e o rude trabalho às raparigas.
    Eles sairam de Coimbra, advogados, médicos prelados, engenheiros, homens graves, condecorados, maçudos e maçadores, casaram com umas burguesas ricas e gordas, ou com umas fidalgas anémicas e espevitadas e, de quando em quando, no aborrecimento do seu lar prosaico, sentem passar com um sopro de mocidade a imagem dulcíssima da tricana ignorante e ingénua que adoraram dois dias.
    Elas sentiram deformar-se-lhes o corpo sujeito ao duro trabalho do campo, casaram com alguns lapuzes que lhes batem e, quando estão a esfregar alguma casa ou a ensaboar alguma roupa, com as farripas do cabelo já grisalho a caírem sobre os olhos, vêem, também com um suspiro, passar entre os salgueiros a imagem fina do estudante que vinha ao seu encontro, de livros a tiracolo e que, às vezes, falava nas maravilhas igoradas da poesia e daciência."

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  3. Ricardo Figueiredo31 março, 2010 22:35

    Outra opinião: Camilo Castelo Branco-A filha do Arcediago, pg.171Ed.Circulo dos Leitores
    as de Coimbra "as mulheres mais feias que Deus Nosso Senhor depositou na face da Terra". Seriam as naturais de....as tricanas...
    Escreveu na fase em que já via mal e o figado também estaria com muito fel

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  4. Ricardo Figueiredo02 junho, 2010 19:41

    A Governanta D.Maria-Autor Joaquim Vieira-2010
    "A campónia.....rumou até Coimbra...Iria tornar-se numa tricana como tantas outras raparigas das terras em volta" Pag.33
    "Ia vestida à tricana, traje que então se usava na região, próprio da condição dela" Pag.157
    Quando a "governanta" , natural de Penela, vai trabalhar, em Coimbra, no Palácio (Republica) dos Grilos,para Salazar e Cerejeira, anos 1900 e tal.
    Quando, ela vai a St.Comba, os naturais anotam o facto do traje não ser habitual na região.

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  5. Ricardo Figueiredo12 junho, 2010 12:19

    http://memoriadecoimbra-alfaiate.blogspot.com/
    1941 -12 de Novembro - Morreu a última tricana, Carolina Pedro
    Interessante esta nota.Origem?Imprensa de Coimbra (Diário Coimbra?Despertar?)Vou investigar.Seria assim tão caracterizada uma tricana?
    Abraço

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  6. Ricardo Figueiredo13 junho, 2010 16:47

    O blogue citado, tem a fundamentação da noticia que, com a devida vénia, se transcreve:
    http://memoriadecoimbra-alfaiate.blogspot.com/
    941-12 de Novembro - Morreu a última tricana, Carolina Pedro
    PEDRO, Carolina – Cantora nas fogueiras do Romal. Tricana, “encantadora morena das tranças negras e fartas, do olhar feiticeiro e embriagador que apaixonou o poeta Adelino Veiga”. Adelino Veiga dedicou-lhe a quadra: Eu tenho duas vizinhas, / Uma clara, outra trigueira; / Eu não sei qual mais adoro… / Se a segunda, se a primeira. Com ela desapareceu “a verdadeira última tricana; a típica, a castiça tricana de Coimbra, saia rodada negra, blusa branca a marcar-lhe a perfeição das formas, o lenço atado naturalmente, sem afectações e o xaile atirado sobre os ombros e cruzado no característico costume coimbrão, nesse hábito que só elas eram capazes de realizar, com graciosidade e arte”. Sobre ela disse ainda Adelino Veiga: “Mal te vi a vez primeira / Perdido de amores fiquei! / Maldito seja o instante / Em que eu te vi, que te amei!... Faleceu em 12 de Novembro de 1941 e foi a enterrar no cemitério da Conchada (1).
    (1) Cf. Gazeta de Coimbra de 13 de Novembro de 1941, citada por António Gonçalves in Vida e Obra de Adelino Veiga.
    A vida coimbrã conta com muitos e dedicados investigadores.Grato

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  7. Ricardo Figueiredo31 janeiro, 2012 11:39

    Meu caro Veloso
    Sobre o tema “tricana/estudantes de Coimbra” acabo de encontrar o livro O Filho do Morgado (Aventuras d’um caloiro) de Alexandre Malheiro-Porto-1909,Magalhães & Moniz-Porto. Sob a forma literária de novela, descreve o amor de um estudante/tricana, vinte anos antes. Sobre factos reais, romanceados, uma história com final trágico, muito semelhante ao que, garoto, ouvia referir, na Alta de então.
    O meu abraço

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  8. Ricardo Figueiredo10 julho, 2012 15:30

    Meu caro Veloso
    Lendo e relendo, enquanto não tresleio ,encontro esta afirmação “ A palavra “tricana”, que inicialmente designava
    um certo tipo de tecido , com o decorrer do tempo passou a associar-se à mulher que o vestia, passando a Tricana a ser uma figura típica de Coimbra”(*).
    Teria existido tal qualidade/tipo de tecido? Quem conhecer o tema-tecelagem- que ajude.
    (*)Coimbra através dos tempos-Rafael Marques-2004

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  9. Ricardo Figueiredo26 julho, 2012 22:13

    Boa noite, caro Veloso
    Também tive o privilégio de conhecer, morava perto, a "tricana" citada-morava no Largo do Borralho- e o facto relatado por Mário Trepa, estudante nos anos 43-48 que muita abona as chamadas "tricanas"(lavadeiras, engomadeiras, cozinheiras, etc) e os estudantes que, como no caso, assumiram a sua responsabilidade
    As Tricanas
    “Tive o privilégio de utilizar os serviços de duas das mais formosas tricanas, pertencentes ainda à geração anterior à minha: a Virginia (mãe de um colega nosso que cursava Medicina) e a Candinha, igualmente da mesma época.Qualquer delas tinha no passado, lindos romances, quase lendários.Nunca mais poderei esquecer as suas figuras altaneiras e a sua maneira inconfundível de traçar o seu inseparável xaile, sobre o ombro esquerdo.”
    In- Crónica dos descobrimentos da Real República do Rás-Teparta-Mário, V.Trepa-pag.119- 2004 Ed. Autor-300 exemplares

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  10. Ricardo Figueiredo15 novembro, 2012 10:57

    In –A minha velha pasta-Tempos de Coimbra Gente do meu tempo (1896-1901)-1937 Pag. 151
    Tricanas e estudantes constituíam uma população àparte, quási estranha ao resto da cidade. A tricaninha da Alta tinha mesmo um não sei quê de estudante no traçar elegante do chaile, no geral preto, deixando um braço descoberto, na desenvoltura das atitudes, na facilidade das réplicas.A sua vida moral e material corria em volta da vida académica e era solidária com ela em tristezas e alegrias.Se surgissem lutas entre estudantes e futricas, a tricana estava ao lado dos primeiros, defendia-os como se ela própria fosse atacada, como se tratasse de irmãos seus ou camaradas. E nesta camaradagem não havia perda de hierarquia.A tricana sabia guardar , nas suas relações com os estudantes, a devida distância. Não tinha mesmo atitudes libertinas.Não era uma cocote, só entregue ao amor mercenário ou vicioso..Era, no geral, uma semi-virgem, sonhando a sua redenção por amores românticos.E algumas vezes assim sucedia.No meu tempo, uma Madalena arrependida redimiu seus pecados pelo amor que consagrou a um Poeta.É este romance de amor que agora vou contar(1).”
    (1) A Rosa Espanhola/Afonso Lopes Vieira

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    1. Obrigado, Ricardo, pelo teu comentário.
      Segundo rezam as crónicas, a Rosa Espanhola ao ver que o seu amor pelo poeta Afonso Lopes Vieira não era correspondido, recolheu-se a um convento (1). Isto mostra também que as tricanas, no seu processo de aculturação / "polimento", iam ganhando tiques típicos da aristocracia.
      Zé Veloso
      (1) Onde, por sinal, não ficaria muito tempo!

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  11. Veja tambem: http://varia-ap.blogspot.com/
    Saudacoes da Polonia !
    Andre

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    1. Caro Andrzej.
      As minhas desculpas por apenas hoje me ter apercebido do seu comentário.
      Fiquei surpreendido por ver um texto sobre as Tricanas de Coimbra em polaco.
      Obrigado e um abraço
      Zé Veloso

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    2. Eu encontrei um artigo sobre tricanas de Poveira na Wikipédia. Por que não fazer o mesmo sobre tricanas de Coimbra? Veja: https://en.wikipedia.org/wiki/Tricana_poveira
      Saudações de Polonia,
      Andre

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  12. Tricana no wikipedia polaca https://pl.wikipedia.org/wiki/Tricana !

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    1. Viva, Andrzej Polska!
      Obrigado pelas notícias!
      Zé Veloso

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