22 outubro 2013

À PROCURA DE UMA CHAVE

    Estou mesmo aperreado! Há 3 dias que procuro a chave por todo o lado e não há meio de a encontrar!
    Não que a casa seja muito grande, que o não é. Só que começa a estar um pouco cheia com o que se acumula em quase setenta anos de vida. Com o passar do tempo vamos guardando um pouco de tudo, de papéis importantes a ninharias sem valor algum. De coisas antigas que herdámos até maquinetas obsoletas que talvez um dia venham a ser antiguidades. E, no meio disto tudo… a chave que não aparece!
    Há caixotes de livros, gavetas com cassetes e bobinas de fita, máquinas de calcular, a minha régua de cálculo, pesetas e escudos que não foram trocados a tempo, cacos de louça para colar um dia, películas e slides para organizar “quando me reformar”, fotografias em barda, em álbuns e em envelopes de carta, mapas, cartões-de-visita, um santinho da comunhão solene, convites de casamento, óculos de sol e de sombra, relógios e rádios sem pilha, restos de tudo e de nada, uma botijinha a álcool para aquecer as mãos nas noites frias do Porto, papéis e mais papéis, moedas, ferragens, chaves… mas não a chave que eu procuro.
    Eu sei que não anda longe! Ainda há uns dez ou doze anos me lembro de a ter visto no meio desta confusão a que a minha mulher chama lixo mas que eu espero que, um dia, se tiver a sorte de morrer famoso, lhe venham a chamar “o espólio do Zé Veloso”.
    Já corri todas as cómodas, estantes e escrivaninhas, as gavetas das mesinhas de cabeceira e do toucador. Nem esqueci o velho camiseiro que veio de Ançã! Abri caixas e caixinhas, encontrei mil recordações que já tinha varrido da memória. Espetei, até, um alfinete num dedo. Mas, da chave… nada!
    Esta chave não é como as outras, embora faça a mesma coisa. Quem olhar para ela sem a conhecer, talvez não entenda mesmo que se trata de uma chave. É larga e curta, simétrica, e a pega circular tem no meio uns raios em X. É uma chave absolutamente única!
    Não que com ela abrisse hoje grande coisa! A porta que ela abria já foi feita em pedaços. A casa que ela franqueava já só existe em fotografias ou na nossa imaginação. Por isso esta chave é tão importante para mim. Ela é o último vestígio físico, palpável, que possuo do 333 da Avenida da Boavista!
    Ela é a chave que todos nós levávamos no bolso na hora da saída. Para voltar a entrar na nossa casa – a República – sempre que necessário, sem ter de bater à porta. Porque a figura de ex-repúblico não existe. Quem um dia foi repúblico, repúblico fica para toda a vida.
    Zé Veloso

Nota 1: Quase um ano depois de ter suspendido a escrita no blogue, escrita que só deverei retomar com regularidade lá para o início de 2014, resolvi trazer aqui um texto que publiquei no Kápranós, jornal da Real República dos Lysos – a minha República – aquando do seu último Centenário.

Faço-o em homenagem às Repúblicas de Coimbra, cuja tradição os Lysos perpetuaram no Porto, numa altura em que a sobrevivência de algumas delas poderá estar ameaçada pelo aumento das rendas de casa.
Nota 2: A Real República dos Lysos – a última república sobrevivente do Porto – vive hoje na sua quarta morada. Aquela chave esquisita, que acabaria por encontrar dias mais tarde, abria a porta do 333 da Avenida da Boavista, morada da República no final da década de 60.