07 abril 2011

AS ORIGENS DA CAPA E BATINA

    Quando em 1537 a Universidade foi definitivamente reinstalada em Coimbra por D. João III, já a capa era utilizada pelos estudantes, aos quais os Estatutos Manuelinos ordenavam, num parágrafo dedicado à honestidade dos vestidos, que os escolares andem honestamente vestidos e calçados , isto é, não tragam pelotes, nem capuzes, nem barretes, nem gibões vermelhos nem amarelos nem verde-gaio, nem cintos lavrados de ouro.
     Na época, a capa fazia parte da indumentária corrente; e uma espécie de túnica preta era característica da indumentária dos eclesiásticos, muitos dos quais frequentavam a Universidade. Eis o embrião da capa e batina, tal como aparece retratada na gravura de Georgius Braunius.
    Como é visível, o traje era muito diferente do de hoje. Mas como as modas sempre existiram e as vestimentas sempre foram evoluindo ao seu sabor, também a capa e batina se foi adaptando ao corte dominante de cada época, embora mantendo sempre um ar austero, de inspiração eclesiástica, adequado ao estatuto social do estudante de então.
    Vogando um pouco ao sabor da tradição, a capa e batina nunca aparece perfeitamente definida, quer no que toca ao seu corte quer no que respeita à forma de ser usada. Contrariamente ao que acontece nos códigos da praxe dos Sécs. XX e XXI, os regulamentos de antanho dedicam-se muito mais a dizer o que não pode ser usado do que aquilo que o deve ser; e fazem-no sempre no sentido de evitar os excessos, a pompa e o gasto de despesas pelos estudantes que cursavam a Universidade.
    É assim que a Ordenança para os Estudantes da Universidade de Coimbra, de D. João III, determina que os académicos não possam trazer barras nem debruns de pano em vestido algum; vestido algum de pano frisado; barretes doutra feição senão redondos; capas algumas de capelo; golpes nem entretalhos nas calças; lavor branco, nem de cor alguma em camisas, nem lenços.
    Estas e outras restrições da mesma índole eram impostas no séc. XVI, altura em que se diz que Luís de Camões terá cursado em Coimbra. Conta-nos Alberto Sousa Lamy que Arnaldo Gama, no romance histórico A Caldeira de Pêro Botelho, referindo-se à indumentária de Luís de Camões, escreveu que ele vinha agora gravemente vestido de académico, com seu barrete redondo, o colar chão e sem nenhum daqueles feitios de rendas, bicos, trancinhas e outras guarnições, das que naquele tempo se usavam, e a aljubeta de pano liso e comprido tinha mais de três dedos abaixo dos joelhos.
    É interessante notar que a capa e batina que chegou aos nossos dias também é, de alguma forma, um traje austero. E que os "legisladores" dos Sécs. XX e XXI – os Conselhos de Veteranos – procuraram igualmente conter os luxos, arrebiques e exoterismos típicos da sua época. Veja-se que os Códigos da Praxe de 1957, 1993 e 2007 obrigam, entre muitas outras limitações, a que a camisa e a gravata sejam lisas, o colete seja não de abas ou cerimónia, e não se usem luvas nem pulseiras. E, no que às raparigas diz respeito, aqueles códigos não deixam também de limitar as suas vaidades: nos de 1957 e 1993 o fato saia-casaco deverá ser de modelo simples e sem gola de pele; no de 2007 as limitações são razoavelmente mais severas.
    Quanto à cor dos trajes, sempre há notícia de que tenha sido uma cor escura. Os denominados Estatutos Velhos – que vigoraram da ocupação espanhola à reforma pombalina e que continham uma lista infindável de limitações tendentes a evitar luxos e espaventos – prescreviam que os estudantes não trarão em nenhum vestido de sotaina, calças ou pelote, as cores aqui declaradas: amarelo, vermelho, encarnado, verde, laranjado, sob pena de perderem os ditos vestidos, a metade para a Capela e a outra para o meirinho, ou guarda das Escolas, qual o primeiro a acusar.
    Esta interessante paleta de cores era proscrita apenas para o que ficava à vista, já que, quanto à roupa de baixo, que os estudantes poderiam trazer para sua saúde, existia maior condescendência, desde que as cores ficasse bem cobertas. É curioso notar que os Código da Praxe de 1957, 1993 e 2007 acolhem estes mesmos princípios ao estabelecer, simplesmente, que a roupa interior e bolsos não estão sujeitos a revista.
    Voltando às cores proibidas pelos Estatutos Velhos, nunca apurei ao certo qual a diferença entre o vermelho e o encarnado mas fica clara a intenção de não utilizar cores garridas, incompatíveis com a austeridade pretendida para o traje e, como já me foi referido, de “tinturaria” mais cara. Fica igualmente claro que cores que encontramos hoje no hábito de algumas ordens religiosas, como o castanho escuro e o pardo, não estavam excluídas. Só não percebo a não proibição do azul… paciência!
    A cor que ganhou foi o preto… a capa e batina que chegou aos nossos dias é preta… e ainda bem, já que assim se chegou a um paradoxo interessante: É que o preto, aquela cor fúnebre e austera, símbolo da morte, do luto e da tristeza, tornou-se, paradoxalmente, por via da capa e batina, a cor da juventude, da alegria e da esperança!
    Não perca os próximos episódios (ver Nota)!

2 comentários:

  1. Meu Caro Zé Veloso:
    Não sei se alguém abordou já este assunto da "origem da Capa e Batina" sem qualquer receio de crítica.. Tanto quanto depreendi da Cadeira de "História da Universidade em Portugal", que frequentei na FLUC, a sua origem é clerical. Não esquecer que no início, 1288/90, o "Estudo" estava sujeito ao "Foro Eclesiástico"! Só depois da "Bula" de Nicolau IV, dirigida aos Mestres e Estudantes do "Estudo", bem como dos "privilégios" concedidos pelo Papa e acrescentados pelo Rei D. Diniz, se constituiu em "Foro Académico". O vestuário dos Estudantes era igual ao dos eclesiásticos, sendo a cor preta um sinal de "Humildade" e nada mais. Claro que desde o início, os estudantes procuravam distinguir-se do clero, na altura mais pelo olhar e por atitudes que eram impossíveis de utilizar pelo clero. Só em 1431, como sabes, ficou expresso nos estatutos que os estudantes usariam a "batina" até "meio da perna" e o clero até ao tornozelo. A partir daqui, o traje foi-se modificando consoante a sociedade e a moda, tendo evoluído sempre, sob este aspecto, até aos nossos dias. Pena é que o seu uso actual seja adulterado não só por ignorância, por desrespeito para com a Universidade de Coimbra, mas também por motivos políticos! Recordo que no meu tempo (década de 50), e no teu também (até certa data), todos - os do contra e os outros - usavam diariamente a Capa e Batina sem qualquer reparo!. Nunca qualquer estudante fora descriminado, muito menos proibido ou insultado pelo seu uso, consoante a sua opção política ou religiosa! A partir de "certa altura", os que "ontem" usavam Capa e Batina, no "dia seguinte", começaram a ser insultados, agredidos e chamados de "fachos", aos que a usavam! Aí, começou o descalabro que hoje existe.

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    1. Caro amigo,
      Obrigado pelo teu comentário, muito pertinente, quer no que toca aos primórdios do traje académico – a que hoje chamamos capa e batina – quer quanto à tua experiência na transição das décadas 60-70.
      Tens razão quando dizes que há escassez de escritos sobre a origem da capa e batina antes da instalação da Universidade em Coimbra por D. João III. Embora muita gente refira que a origem do traje é talar (o que indicia a sua raiz eclesiástica), normalmente faltam detalhes como os que agora aqui nos trouxeste.
      De férias, longe da minha biblioteca pessoal, não consigo ver se tenho algum livro onde esta questão seja abordada com rigor. Mas, espicaçado pelo teu comentário, acabo de encomendar o “Identidade(s) e Moda” do António Manuel Nunes (que andava há algum tempo para comprar). Vejamos o que lá vou encontrar.
      Comenta sempre que aches oportuno. Os comentários enriquecem os "posts". Um abraço,
      Zé Veloso

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