13 junho 2010

O CARROSSEL - MAIS UMA CORRIDA! MAIS UMA VIAGEM!

    Andava eu no D. João III e vivia na Cumeada, na "casa verde", que ainda hoje lá está, igualzinha, e que nem sequer mudou de cor. À noite pouco havia que fazer e, diga-se em abono da verdade, as trupes que por ali vadiavam não nos permitiam ir muito além do Madeira, café de bilhares onde se deixavam umas coroas a jogar à pool, enquanto o João Villaret e o Dr. Raul Machado nos ensinavam a bem dizer e escrever a língua portuguesa, numa televisão – ainda a preto e branco – que não era suposto fazer parte do recheio de uma casa de família.
    Mas depois da Queima as coisas mudavam. Iam-se as trupes, vinha o picadeiro na Afonso Henriques, num vaivém constante entre Marrocos – que, no dizer da malta, "era para ali" – e o outro extremo da avenida. E vinha o Espírito Santo, arraial herdeiro de tradições centenárias que todos os anos assentava praça junto à Igreja de Santo António dos Olivais.
    O arraial não tinha muita coisa. Visto à distância de umas décadas, era até pequeno. Mas respirava vida e agitação, e sentia-se o seu pulsar mal os ecos dos altifalantes nos chegavam aos ouvidos, ainda íamos nós no campo do Olivais.
    Logo à entrada estava o carrossel, que mais parecia uma enorme saia ondulante de cigana rodando sempre, sempre, sem parar, ora subindo ora descendo, até entontecer de vez. Girafas, cavalos, zebras e burros, disciplinadamente lado a lado, alinhados por alturas, levavam as fantasias da rapaziada serra acima serra abaixo, enquanto os mais afoitos erguiam um punho de raiva no alto do monte mais alto para socar uma bola de futebol que rapidamente subia ao céu. E quando soava um apito de árbitro, como no final dos jogos, havia sempre mais três voltas de graça para gáudio da populaça, enquanto o gerente puxava do microfone e berrava para os clientes na bicha da entrada: – Mais uma corrida! Mais uma viagem!
    E a malta lá ia encher a barriga para outro lado, mas não havia muito mais para onde ir: barracas de tiro de miras vesgas (Ó cavalheiro, vai um tirinho?), tômbolas que davam tachos de alumínio, furgonetas que vendiam bolacha americana e malaqueco, farturas e manjar branco. Feirantes de banha-da-cobra, um fotógrafo "à-la-minuta" com cenários de buraco para enfiar a cabeça, uma banca com garrafas de Porto para ver quem enfia a argola no gargalo e, para remate da noite, uns carrinhos de choque tão manhosos, que a maior festa era ver os moços de estoque a desembaraçar as molhadas de carros que se engalfinhavam na pista, como uma matilha de cães cheirando o cio de uma cadela vadia.
    Ah, havia mais! Esqueci duas fiadas de tendas onde se vendiam bugigangas de toda a sorte, desde que fossem de madeira, barro ou lata, pois que à época o brinquedo de plástico ensaiava os primeiros passos e, quando muito, dizia-se que era "de celulóide". Mas fosse o que fosse que vendessem, sempre havia uma fila interminável de Zés-povinhos, também eles alinhados por alturas, como na tropa, disparando manguitos em formatura, qual exército malcriado apresentando armas a um general de costas.
    Mas o Espírito Santo também se modernizou. Veio um poço da morte que roncava como um trovão. Cá fora, os filhos do artista exibiam a masculinidade em tronco nu e as motas destilavam a arrogância dos seus escapes abertos. Lá dentro, o verdadeiro artista nacional, um pai de família calvo e de bigodes farfalhudos, desafiava a gravidade rodopiando com a filha aos ombros, sem mãos e de olhos vendados, dentes cerrados sobre um galhardete da Académica e uma bandeirinha verde-rubra.
    Mas veio mais! Veio um carrossel novo que se "prantou" ao pé do outro, fazendo-lhe negaças. Era rápido, tinha luzes no tecto e a pista fazia um oito de meter medo. Passava-se por baixo numa descida de vertigem que nem tempo deixava para fixar a fugaz imagem de uns socquettes brancos, mal adivinhados no tropel que corria pelo andar de cima. Mais ainda! Tinha várias bolas de futebol, o que dava para libertar muito mais adrenalina, coisa importante em época de exames.
    É claro que a malta se mudou de clube e o velho carrossel ali ficou, para avós e netas e mais para criadinhas de servir ainda amedrontadas com tanta zonzaria. E enquanto a malta corria já a sete no carrossel em oito, o gerente do carrossel despromovido desesperava para um microfone envolto num lenço de tabaqueira: – Mais uma corrida! Mais uma viagem!
    O arraial do Espírito Santo, que eu e muitos outros conhecemos, acabou já. Nem o carrossel novo o salvou. Foi perdendo velocidade ao longo dos anos até cair no fundo da sua atracção mais arrojada, o poço da morte. Pelas notícias que me chegam, o que hoje existe em seu nome já não é a mesma coisa.
    É a vida! As coisas nascem, crescem e morrem, tal como as pessoas. Mas continuam vivendo se as mantivermos vivas na nossa memória. Vamos lá, malta: – Mais uma corrida! Mais uma viagem!

    Zé Veloso



10 comentários:

  1. Bom dia Sr Ze Veloso e mais uma vez Obrigada pelo lindo texto que aqui partilhou.

    O Espirito Santo, ou como lhe chamavamos a Feira do Espirito Santo, ja acabou sim, mas como diz e bem as nossas recordaçoes estao la.
    Obrigada
    Margarida Vaz

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  2. O Zé Veloso escreve com alma e paixão.As suas palavras são envolventes e transportam-nos com uma rapidez impressionante. Recordar também é viver e é sempre tão bom saborear coisas que já vivemos e sentimos..bem haja por tudo o que consegue transmitir..acredite que é muito

    Fernanda Bilau Silva

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  3. Ricardo Figueiredo16 junho, 2010 20:27

    Meu caro Zé Veloso
    Mais uma vez, o meu comentário: uma palavra de gratidão pelo teu esforço e bom gosto na ex posição. Além da minúcia correta, pois também eu estava perto do cenário, a tua descrição, não sendo de um saudosismo “pingado”, é uma recordação sadia.
    Para quem, como eu, numa faixa etária que, no jornalismo,já é referida nos acidentes, eufemísticamente, como “ fulano de certa idade” é um agrado ler.
    Depois, na expectativa de contribuir, em contraponto temporal: como “salatina”, 10 anos e, posteriormente, como habitante do Bairro de Celas, 20 anos , vizinho dos Olivais. Do Bairro, era a corta mato que atingíamos os Olivais, pelos terrenos baldios do chamado Hospital dos Doidos, ao tempo meio construído
    ( alicerces iniciados,dois ou três pavilhões construidos) pela disputa técnica(?) Elysio de Moura-Bissaia Barreto, ao que se dizia.Depois, o terreno onde está a Emissora e,chegados ao Pinheiro Manso –onde, mais tarde já se encontrava a moradia do Prof.Plachard, já tínhamos as primeiras barracas.Perto, o depósito da água e a serração de madeiras,
    A minha recordação é mais a de um “romeiro”, muito próximo da descrição de Ocataviano de Sá, Nos Dominios de Minerva-Coimbra-1939, pag.212.Morando na Alta-1936-41, os Olivais eram, para nós, nesse tempo, arrabaldes de Coimbra. O nosso mundo ficava pelo Largo da Feira; Castelo, S.Salvador, Sé Velha.Não garanto que fosse na 3ª. Feira, como nota o cronista,mas lembro a alegria de miúdo, na perspectiva de uma merenda no declivado terreno vizinho da Igreja.Então, o trajecto, feito a pé –economia doméstica-,entre a Alta e os Olivais, com os cestos, era uma aventura infantil.
    Mais que uma merenda, um almoço, com o prato forte –batatas com bacalhau,confecionado no local, em máquina de petróleo. Peixinhos da horta, preparados na véspera, ou carapaus em molho de escabeche,azeitonas,broa. Água da bilha, para os infantis. Pão de ló e biscoitos, secos, na lata.Mantas estendidas no chão e , depois, a sesta.A convivência e o encontro, nos anos em que não chovia….
    A visita à Igreja-era a Festa do Espirito Santo- as figuras do presépio explicadas pelo pai,os "judeus" os maus da fita,as barracas, o pífaro de barro grosseiro, regateado e barato e,em alguns anos, já ao entardecer, a retirada apressada antes da confusão-militares, futricas, estudantes,policia, tudo ao molho…
    Para mais “história”, a Coimbra-Boémia da Saudade de Gonçalo dos Reis Torgal-2003 dá uma boa ajuda. O autor, coimbrão da mesma época, também nos faz uma boa descrição,vivida, desta festa.

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  4. O Tempora! O Mores!
    Como vão longe os meus tempos do picadeiro na Avenida e as idas ao Santo António.
    Nessa altura ainda havia oleiros na zona de Miranda do Corvo que vinham aqui vender.
    Havia uns pretitos que, para darem sorte, tinham que ser roubados.
    As tendeiras também sabiam disso e, portanto, era necessária muita argúcia para levar a sorte para casa.
    Vivi una anos no Calhabé.
    No regresso, se levavamos moças no grupo, iamos surripiar amores perfeitos nos canteiros do Penedo da Saudade... para as sensibilizar.
    Ah! Como já foi diferente o amor em Portugal!

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  5. Caríssimo Zé!

    Extraordinária a forma como descreves o “arraial do Espírito Santo”. Embora nunca lá tivesse estado, até consegui sentir os solavancos da girafa, serra acima serra abaixo, numa electrizante viagem à volta do mundo. Bem Hajas por estas lições de Literatura! Percebi que querias escrever principalmente sobre o carrossel, mas a curiosidade é uma “pecha” que me ataca constantemente e fiquei a querer saber se o culto do Espírito Santo – uma heresia aos olhos de Roma, promovida pela Rainha Santa Isabel, com o apoio explícito de D. Dinis e da Ordem do Templo – se celebrava em Coimbra com os rituais simbólicos instituídos pela Rainha, ou seja: a coroação de uma criança (exaltando a simplicidade e a inocência); o bodo colectivo (sublinhando a igualdade entre os homens) e a libertação de um preso (simbolizando a necessidade de nos libertarmos dos nossos “grilhões”). É que essa tradição quase se perdeu, embora em alguns lugares ainda se cumpra, pelo menos parcialmente. Não tenho conhecimento do que se passa em Coimbra, mas... não é Coimbra a cidade de Isabel?

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  6. Os meus sinceros parabéns pela recriação da feira do Espírito Santo! Nasci e vivi em Coimbra até a minha profissão (de professora ...) me levar a conhecer o resto do país, cada ano em sua terra... mas recordo bem o Espírito Santo e estranhei, ao regressar há alguns anos, o facto de quase já não se falar dessa feira que reunia velhos e novos e substituía o dito picadeiro durante umas semanas... bem sei que as distracções hoje são muitas e que mudaram outro tanto as mentalidades...mas que pena, deixarmos de facto morrer, um pouco mais a cada ano, o património cultural desta cidade...

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  7. Olá,Zé!

    Gostei muito. Como a tua memória é fértil! Que inveja! E a cabeça que partiste nos carrinhos de choque, já te esqueceste? A propósito, o Pinheiro Manso, que dava o nome à zona, já lá não está.

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  8. Mais uma vez me deliciei a ler este bocadinho de passado...às voltas com a minha memória que me traz o cheiro das farturas, o som das vozes nos microfones, as imagens do carrosel e as sensações de descontrolo sentidas quando me sentava dentro das "chávenas" que rodavam sobre si dentro da própria rotação do carossel.
    Record-me tb das recorrentes recusas do meu Pai que ano após ano nos avisava sobre o perigo de nos aventurarmos nas cadeiras,autênticos baloiços resistindo à força centrífuga...que tb levava as nossas ilusões de aventura.
    Sempre morei nos Olivais e a Feira do Espírito Santo, à nossa dimensão, foi sempre uma parte do meu Mundo de fantasia. Obrigado pela recordação...e que o progresso se faça sempre sem esqueçer a memória!!!

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  9. Para a Fernanda, sobre as festas religiosas do Espírito Santo:
    Tanto quanto consegui saber, elas estavam ligadas à coroação do Imperador de Eiras. As festas no século XIX incluíam a coroação de um imperador adulto e uma procissão entre Eiras (na entrada Norte de Coimbra) e o Convento de Celas, convento que começou por ser uma prisão de mulheres e que fica não muito longe do local onde a feira do Espírito Santo tinha lugar. As tradições não morreram totalmente; este ano ainda houve coroação, tendo o imperador apenas 13 anos. Dos escritos que consultei, há diferenças e semelhanças em relação ao que referes. Vou ver se encontro mais material e para as festas do próximo ano fica prometido um post.

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  10. Muitos amigos comentaram este post, quer aqui quer no Facebook, lembraram detalhes e deixaram um molho de recordações que passo agora em revista: “o pífaro de barro grosseiro, regateado e barato”; “uns pretitos que, para darem sorte, tinham que ser roubados”; “o cheiro das farturas”; “a capelinha junto ao largo… o eléctrico que parava perto”; “o Pinheiro Manso, que dava o nome à zona, já lá não está”; “os solavancos da girafa, serra acima serra abaixo, numa electrizante viagem à volta do mundo”; “as sensações de descontrolo sentidas quando me sentava dentro das "chávenas" que rodavam sobre si dentro da própria rotação do carossel”; "o perigo de nos aventurarmos nas cadeiras, autênticos baloiços resistindo à força centrífuga...que tb levava as nossas ilusões de aventura”; “todos os anos comprava uma gaiola para colocar um grilo que trazíamos da aldeia para nos dar música nas noites de Verão”; “eu adorava comprar as frigideiras pequeninas em barro para fazer ovos estrelados”; “o poço da morte era um espectáculo....era sempre o meu pai a levar-me e depois aquele cheiro da gasolina da moto e ela a subir...a subir e as bancadas a abanar...a abanar, bom a emoção era muita!!!!”; e até uma irmã minha me lembrou: “E a cabeça que partiste nos carrinhos de choque, já te esqueceste?
    Obrigado a todos.

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