08 dezembro 2010

ELÉCTRICOS DE COIMBRA


Quando fui para Coimbra (anos 50) só havia cinco carreiras de eléctrico em toda a cidade. Nessa altura ainda os eléctricos não davam a volta pelo Palácio da Justiça. Por isso, à excepção do 2, todos saíam da Estação Nova rumo ao largo da Portagem, davam a volta à estátua do Mata-Frades, atravessavam o “canal”, olhavam de cima para baixo a escadaria da Igreja de Santa Cruz, fugiam da polícia avenida acima até deixar para trás o mercado D. Pedro V e só a partir daí é que começavam, cada um à sua vez, a seguir o seu percurso.
O 2 era um pouco diferente, pois que não largava da Estação Nova, como os demais. À hora certa, arrancava do largo de Sansão (Praça 8 de Maio para os menos antigos) e seguia Rua da Sofia afora. Passava junto ao edifício da recolha, onde à noite todos voltariam para dormir, e seguia pela Casa do Sal, até parar na Estação Velha, à espera de que lhe chegassem passageiros e malas para carregar de volta para a cidade.
O 1 era a carreira para a Universidade. Desde a destruição da Velha Alta que não dava já a volta completa pela Rua Larga. Por isso atacava a colina sagrada em dois tramos: um deles deixava a Sá da Bandeira, onde hoje é a Associação, e lá seguia a gemer pela Padre António Vieira acima até parar exausto junto ao Museu Machado de Castro. O outro seguia pela Praça da República até aos Arcos do Jardim e, daí, até à entrada do velho Hospital da Universidade, onde descansava uns minutos a rir-se de quem subia a escadaria monumental, enquanto o guarda-freio mudava o trolley para a retaguarda e o cobrador conferia os trocos para mais uma viagem, depois de ter virado os bancos ao contrário com um barulho metálico que acordava de vez quem se tivesse deixado adormecer no final da carreira.
O 4 seguia para a colina em frente, do outro lado da Sá da Bandeira. Queixava-se do reumático numa chinfrineira sofrida assim que virava à esquerda a seguir à Manutenção Militar, trepava por Montarroio até ao topo da Conchada, aliviava as dores uma vez passada a Poyn-Ta-Pau e parava para verter águas em Montes Claros, junto ao velho matadouro, onde haveria de cruzar-se com o outro 4 que, vindo da Cruz de Celas, fazia o percurso em sentido inverso.
O 5 era um sortudo! A caminho do Calhabé, carregava as meninas todos os dias para o Liceu Infanta D. Maria. Podia olhá-las de perto, demoradamente, enquanto nós tínhamos de ir até aos Lóios ou à ladeira do Cidral para as ver passar. Mas o 5 não era um eléctrico.  Era um trolley dos modernos, “como só havia em Coimbra”, dizia-se então. Andava sem fazer barulho. Eram os “pantufas”.
O 6 também era “pantufas” e ia até Santa Clara, onde dava a volta num grande largo… porque os “pantufas”, ao contrário dos eléctricos, não sabiam andar de marcha-atrás.
O 7 ia para o Tovim e lá ficava parado, fazendo manguitos a quem quisesse aventurar-se na subida, a pé, até ao Picoto e Vale de Canas.
Deixei para último o 3 para os Olivais, o meu eléctrico, o melhor de todos. Era lindo, rápido e amarelo. Tão amarelo como os outros, mas mais bonito.
O 3 acompanhou-me diariamente durante os nove anos em que vivi na “casa verde”, pouco acima do Café Madeira. Foi na plataforma da frente que calcorreei meia Coimbra com o olhar, bebendo o vento estimulante da corrida, capa traçada para arrepiar o frio, à espera que o guarda-freio embalasse a sete. Foi na plataforma traseira que fumei belas cigarradas, abrigado da chuva de molha-patos do Outono, ainda os exames vinham longe. Dali acenava aos amigos, passava para o estribo, ia ao chão e voltava a subir… Nunca gostei de ir lá dentro. Nas plataformas sim! Sentia-se a velocidade. Trazia-me lembranças das corridas loucas em cima de um carro de bois em Ançã, eu ainda garoto agarrado aos fueiros do carro, e o Zé Palhoça a picar os bois encosta de S. Miguel abaixo, corridas com que o Pai Manuel Velloso nem sequer poderia sonhar…
Não! O 3 é muito forte para mim. Não vai caber neste post. Vai ficar para o próximo.
Zé Veloso
Legendas das fotos:
a. Frente a S.ta Cruz, vendo-se as linhas nos 2 sentidos e ainda a zona de parqueamento do 2.
b. O 2 na zona entre a Estação Velha e a Casa do Sal.
c. O 1 descendo da velha Alta ao longo dos Arcos do Jardim.
d. O 4 junto de arrastadeiras e carochas.
e. O 6 atravessando o antiga ponte.
f. 3 eléctricos descem a Sá da Bandeira, entre o Teatro Avenida e a Manutenção Militar.

28 comentários:

  1. Bonito!
    Não esquecer o 3 branco e o 3 vermelho...ou 3 traço, que se cruzavam em Celas e no Penedo da Saudade, com troca de testemunho entre os Guarda-freios...penso eu...
    Abraço

    ResponderEliminar
  2. FOI DA FUSÃO DA LINHA 4 E DA LINHA 6 QUE, NO FINAL DOS ANOS 80, SURGIU A LINHA 46 QUE IA DESDE CELAS ATÉ SANTA CLARA... MAS AGORA EM TROLEY...

    ResponderEliminar
  3. Ainda nos anos 70,apareceu a carreira nº8,primeiro em eléctrco e mais tarde em trolley.O percurso era o mesmo da carreira nº3,mas quando subia para Santo Antº dos Olivais,desviava nos Arcos do Jardim, pelo Botânico e subia ao Penedo da Saudade.A partir daí e no percurso descendente,coincidia com o eléctrico nº3.

    ResponderEliminar
  4. Obrigado, Luís Pinto Coelho,
    O 3 com traço e o 3 sem traço não estavam esquecidos mas essa da troca das senhas já não me lembrava. Mas tenho ideia dela, pelo menos no encontro do Penedo…
    Seria para confirmar que não dariam de caras um contra o outro no tramo seguinte?

    ResponderEliminar
  5. Zé VELOSO: como vê, eu não encontro os seguidores...Quando encontrar...conte comigo!
    Eu tambám vivi na CUMEADA, em casa dos sogros do meu compadre JÚLIO RAMOS...
    BEIJO
    Mª ELISA

    ResponderEliminar
  6. Ricardo Figueiredo17 dezembro, 2010 09:18

    Nos anos 40, 46/47 mais concretamente, trabalhava na Av. Navarro e lembro-me de algumas vezes utilizar o chamado"carro(electrico operário).
    Não era elitista..servia para quem começava o dia mais cedo.
    Até às 7h das manhã(não me lembro da hora da primeira saída) e com direito a regresso, após as 17h., com bilhete único, de
    50 centavos(?)Terá sido, inicialmente de 2,5 centavos(?).O percurso era,da Baixa, por Montarroio até aos Olivais(frente ao Clube) e volta.Mais tarde, até à Igreja e volta.
    Havia dois agulheiros: um na Cruz de Celas e outro, nos Olivais,frente à Escola.
    Com a ajuda de contemporâneos, creio ter reconstituida a situação, ao tempo.Outros poderão corrigir.
    Já agora, lembro o chamado"bairro operário" que situava no percurso, na zona da actual igreja N.S.Lourdes.
    Abraço, meu caro Veloso.Boas Festas

    ResponderEliminar
  7. Ricardo Figueiredo17 dezembro, 2010 09:29

    Zé Veloso
    E o "chora"?Chiava...
    Era um atrelado ao electgrico 5, do Calhabé, circulação
    Quando frequentei o Jardim Escola João de Deus,40/44, (frente à Maternidade, antiga)havia uma viagem, regresso às mamãs, com o "chora" ocupado pelos meninos.
    Já agora, o Jardim Escola, fruto do Orfeão Académico, vai fazer 100 anos

    ResponderEliminar
  8. Ricardo Figueiredo17 dezembro, 2010 09:36

    Mais uma nota, Veloso, transcrita de Toponimia Coimbrã,II, zona da Universidade, pag. 56,António Correia
    "Para valorizar a rua Larga muito contribuiu a montagem dos serviços dos carros americanos e eléctricos, sendo inaugurada em 1904 a linha que estabelecia ligação entre este local e a praça 8 de Maio"
    Já agora, a rua foi depois iluminada com arco voltaico (1908/09)
    Abraço

    ResponderEliminar
  9. O Penedo d@ Saudade vai-se enriquecendo com os vossos comentários. Cada vez aparece mais a mais informação. Essa do 46 resultar da fusão do 4 e do 6 (ovo de Colombo!) é o máximo.
    Caro anónimo… obrigado!

    ResponderEliminar
  10. Caro Luís Oliveira,
    Não entendi bem o percurso do 8, enquanto alternativo ao do 3, uma vez que o 3, depois de passar por debaixo dos Arcos, seguia paralelo às grades do Jardim Botânico até virar à esquerda para a Av. Dr. Marnoco e Sousa, subindo rumo ao Penedo da Saudade.
    Zé Veloso

    ResponderEliminar
  11. Muito interessante, Ricardo Figueiredo!
    Nunca tinha pensado nisso: O 4 seguia pela “encosta operária” até Celas e Olivais. Ao invés, o 3 seguia pela cumeada das vivendas ricas da cidade...
    Ainda bem que voltaste aos teus magníficos comentários. Já cá se sentia a tua falta!...
    Zé Veloso

    ResponderEliminar
  12. A propósito do comentário do Ricardo Figueiredo sobre os carros americanos (“eléctricos” puxados a mulas):
    António José Soares escreveu em “Saudades de Coimbra” que, em Fevereiro de 1904, “os carros americanos que iniciaram as suas carreiras para a Estação Velha, lançaram também uma linha da Portagem para a Rua larga, notando-se logo que o gado chegava à Alta muito cansado, pelo esforço despendido na Avenida Sá da bandeira, Rua Alexandre Herculano e Ladeira do Castelo.
    Zé Veloso

    ResponderEliminar
  13. Ricardo Figueiredo20 dezembro, 2010 16:12

    Caro amigo
    Quanto ao elétrico 1,lembro-me do Arco do Bispo, tal como na foto da pag.81 da Velha Alta Desaparecida,AAEC(1984)"A carreira da Alta, montada no ano de 1911, vinha da Estação Nova à Rua Larga onde invertia a marcha, e só em 1932, se passou a fazer a circulação pela Abilio Roque, actual Rua Padre António Vieira"
    A entrada, à direita, no Arco, dava para o Largo da Feira, junto à Sé Nova, onde encontravas o "jizeiro"(fabricava o giz para riscar a fazenda, nos alfaites)que depois foi para o Bairro de Celas.
    Abraço

    ResponderEliminar
  14. Ricardo Figueiredo20 dezembro, 2010 19:02

    Amigo Zé Veloso
    Repassando as fotos, na pag.82 do citado livro, tens o arco do Bispo, com a linha do elétrico 1, depois o Largo de S.João, onde brinquei, seguindo a Rua de S.João, para a Rua Larga (na esquina, o Pirata(pag.42/43).
    Nota a via dupla, pag.32, e na 38 a "agulha" para a redução da via
    O arco foi derrubado, mais tarde, deu passagem ao troley.
    A propósito: conheceste a Império (Oliveiras) na Rua da Sofia e na Estação Nova? Na pag.74, tens as 3 portas da antiga pastelaria,na Alta, dos mesmos donos (padeiros), com padaria na Rua do Forno (pag.136)Também notarás,aqui, o pau da bandeira da república Baco.Desces a rua, e encontras a casa do "Calmeirão", mandador das Fogueiras.
    Fazer a circulação do electrico 1, ao tempo, era viver a história da velha Alta, entre os Arcos do Jardim até ao inicio da Couraça dos Apostolos.
    Já me estendi... e fuji ao tema
    Boas Festas

    ResponderEliminar
  15. Podes continuar, Ricardo. Nunca estás a mais.
    Boas Festas, Zé Veloso

    ResponderEliminar
  16. Luis Pinto Coelho24 dezembro, 2010 00:12

    Como curiosidade...adquiri há alguns anos, num antiquário do Porto, um titulo de 25 acções(nº 2676/2700)datado de 27 de Junho de 1907, em nome de Luiz Gonçalves Vianna de Lemos (meu bisavô), referente à Companhia Carris de Ferro de Coimbra - Sociedade Anonyma de Responsabilidade Limitada com sede no Porto....

    ResponderEliminar
  17. Caro ze Veloso Sobre o aparecimento do 8(primeiro electrico e depois trolley)lembro-lhe que no meu tempo(início da década de 70),já o 3 não passava no Botânico nem no Penedo.Ao chegar aos Arcos,continuava em frente,por Santana e entrava na Dias da Silva em Stª Teresa,junto ás Carmelitas.Penso que o 8 só apareceu,para aproveitar a linha, que já existia junto ao Botânico e Penedo da Saudade.Linha essa mais tarde removida e a carreira continua, mas de trolley.Abraço Luis Oliveira

    ResponderEliminar
  18. Ricardo Figueiredo19 janeiro, 2011 15:26

    Meu caro
    Passando os olhos, relendo, vi umas notas que pode ser interessante juntar aos teus magníficos escritos,sobre a viação elétrica, em Coimbra.
    “Dia 20 de Abril, de 1911-Acta da reunião da Camara-O director dos Serviços Municipalizados dá conhecimento das circunstancias em que no dia 10 do presente mês ocorreu o primeiro atropelamento causado pela viação eléctrica, que vitimou um menor na Rua da Sofia e do qual não foi culpado o condutor do carro eléctrico”.A seguir, em 3 de Agosto há que “proceder a um inquérito sobre um choque entre um carro eléctrico e um trem de aluguer”.
    Também tinham avarias.O cabo aéreo partia-também viste, tempos mais tarde- e a demora na reparação foi,em Dezembro de 1911”pela falta de prontidão da parelha de serviço de incêndios para conduzir o carro de socorro”
    Logo, pouco tempo depois, em 19 de Outubro do mesmo ano”Nomeia-se uma comissão de três vereadores para averiguar das responsabilidades de um choque entre um carro eléctrico e um carro de bois carregado com pipas de vinho, de cujo desastre resultou a inutilização de um boi, pedindo o proprietário uma indemnização à Câmara”. Mais tarde, em 30 de Novembro “resolve-se indeferir o pedido de indemnização”
    Outros episódios são referidos, nos primórdios da viação eletrica, em Coimbra, como , em 21 de Agosto de 1919 “Gratifica-se com três dias de vencimento um guarda freio que evitou a morte de um soldado que se lançara para a frente de um carro eléctrico”.
    Poderemos,assim, motivar a curiosidade dos teus leitores para os Anais do Municipio de Coimbra.Tantos factos interessantes, sobre Coimbra…
    Abraço

    ResponderEliminar
  19. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderEliminar
  20. Caro L_Yeah,
    Desde já pode contar com a minha disponibilidade. Acho a iniciativa muito interessantes.
    Vou passar o convite aos "comentadores" do post cujo e-mail conheça.
    Zé Veloso

    ResponderEliminar
  21. Recentemente li uma notícia, que os eléctricos irão voltar a Coimbra...penso que numa fase inicial será só 2 ou 3 linhas turísticas...mas já é muito bom.
    Como ainda sou um pouco recente,... só me lembro de entrar num eléctrico e daquela zona que separava o motorista dos passageiros (devia ter uns 3 ou 4 anos)

    Carla Marques (Coimbra)

    ResponderEliminar
  22. Manuel Nogueira26 julho, 2011 10:20

    Bom dia.
    Sou novíssimo neste blogue, nunca fui grande apaixonado por história, ou eléctricos, embora sempre tivesse tido aquela curiosidade de os ver. No entanto estou a frequentar um curso de Museografia e Gestão do Património, e no decorrer do curso foi-nos estipulado para trabalho final um roteiro sobre o carro americano em Coimbra. Shhh isto é segredo :P Acontece que ao encontrar este blogue, com tanta e correcta informação (sim, nós já fizemos a nossa parte de investigação fidedigna, indo mesmo aos jornais Gazeta de Coimbra, O Conimbricense, e agora Gazeta dos Caminhos de Ferro) fiquei maravilhado com a possibilidade de falar pessoalmente e quiçá fazer uma entrevista a alguém que tenha vivido os dias do eléctrico. (Uma da parte que nos calhou foi a evolução dos transportes em Coimbra, nomeadamente: Carro Americano, Barca Serrana, Eléctrico, Trolley-carro e comboio.
    Agradeço desde já a dedicação a este blogue tão rico e didáctico.

    ResponderEliminar
  23. Manuel Nogueira26 julho, 2011 12:10

    Se lhe for possível ajudar-nos no nosso projecto final, por favor contacte-me em sweetanger87@hotmail.com

    Obrigado.

    ResponderEliminar
  24. Eu ainda me lembro do eléctrico nº 1 passar a farmácia e a livraria do castelo, ultrapassar o "pirata" e parar mesmo defronte à velhinha sede da Académica na Rua Larga. (anos quarenta)
    Passou a para em frente à porta do HUC só depois do derrube do arco do jardim, mesmo nos finais dos anos quarenta

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado pelo seu comentário.
      Belas recordações!
      Um abraço,
      Zé Veloso

      Eliminar
    2. ainda existe este site?

      Eliminar
    3. Sim, manu, este blogue ainda existe, embora tenha estado adormecido nos últimos dois anos.
      As minhas desculpas por só hoje ter validado e estar a responder ao seu comentário.
      Zé Veloso

      Eliminar

Os comentários são bem-vindos, quer para complementar o que foi escrito quer para dar outra opinião. O saber de todos nós não é de mais.