22 março 2022

ESTUDANTES CLANDESTINAS NA UNIVERSIDADE. PARTE III: ANTÓNIA DA TRINDADE

 Este post é a continuação de:

ESTUDANTES CLANDESTINAS NA UNIVERSIDADE. PARTE I: EM MEMÓRIA DE TODAS ELAS e
ESTUDANTES CLANDESTINAS NA UNIVERSIDADE. PARTE II: AUTA DA MADRE DE DEUS

Antónia da Trindade terá sido a primeira mulher a estudar na Universidade de Coimbra, por onde passou, muito provavelmente, no final do reinado de D. João III, antes de se recolher ao Mosteiro de Nossa Senhora da Consolação de Figueiró dos Vinhos.

Não se conhece o nome suposto que usou para se fazer passar por rapaz na Universidade. E também não é seguro que Antónia da Trindade fosse o seu nome de baptismo, já que as suas biografias estão focadas no nome da religiosa em que mais tarde se tornou, independentemente de poder ter usado outro nome em fase anterior da sua vida.

A sua história vem descrita em quatro “enciclopédias biográficas” dos séculos xvii e xviii – vide [1] a [4] –, cujos verbetes não têm grandes contradições entre si, mas onde um deles se destaca pelo pormenor da narrativa – o da Historia Serafica Chronologica da Ordem de S. Francisco na Provincia de Portugal [2] –, facto que se compreende por Madre soror Antónia da Trindade ter chegado a «Mestra da Ordem» naquele Mosteiro e ter morrido com fama de santidade.

Façamos uma leitura comentada e abreviada do muito que esta última fonte nos conta. Para tornar mais fácil a leitura, fiz a actualização da ortografia e da pontuação das passagens transcritas.

Antónia da Trindade era natural de Cantanhede. Por lá terá aprendido alguma coisa, mas queria aprender mais. «Favorecia sua mãe estes intentos; mas, posto que era pessoa nobre, não tinha cabedais para sustentar um Mestre que ensinasse a filha e resolveram entre ambas que, com aparências e vestidos de moço, podia muito bem estudar em Coimbra».

E se assim o pensaram, melhor o fizeram: «Acompanhou-a a própria mãe, a título de ama, todo o tempo que cursou as escolas daquela Universidade; e a menina, vestida em trajes de estudante, se aplicou ao estudo com tanta curiosidade que, em pouco espaço, mostrou conhecidas vantagens a todos os seus condiscípulos».

Tudo corria de feição, não fora o gato estar escondido com o rabo de fora: «Porém, como o segredo com que intentou encobrir o sexo não foi totalmente bastante para desmentir as atenções da curiosidade, quiseram alguns escolásticos fazer maior exame; e, saindo com ela a passear até à ponte do Mondego, foram observando o modo com que andava e outros sinais que de todo lhes confirmaram a presunção; e parece que lhes deram a entender a sua suspeita, expondo com palavras equívocas que debaixo do vestido de estudante andava disfarçada outra pessoa a quem não convinha semelhante estado».

Imagine-se o embaraço da rapariga e de sua mãe, perante aquela corja de galfarros ressabiados pelo sucesso escolar de Antónia da Trindade, e louve-se o detalhe com que o cronista da Ordem de São Francisco conta o enxovalho sofrido pelas duas, cujo destino ficou logo ali traçado: «Vendo a Serva do Senhor que todas suas cautelas estavam desvanecidas e lhe era já impossível (sem ofensa de seu crédito) continuar nas Aulas, determinou seguir outra aplicação de estudo mais proveitoso, aprendendo a ser santa na escola de Deus».

E é assim que mãe e filha – sem quaisquer condições para continuarem a viver em Cantanhede depois destes incidentes, admito eu – decidem recolher-se ao Mosteiro de Figueiró dos Vinhos.

Dentro do Mosteiro, Madre soror Antónia da Trindade é-nos descrita como alguém que tinha uma aura de sabedoria, bondade e santidade e, também, grande capacidade de comunicação. Conta-se ainda que, ao morrer, «ficou o cadáver tão formoso, que não se podiam persuadir as religiosas que estivesse defunto: porque a cor do rosto estava viva e nas faces lhe apareciam duas rosas tão belas, que bem mostravam serem sinais dos dotes da Glória com que Deus teria enriquecido a sua alma. Cresceu nas religiosas, com estes e outros indícios, a grande opinião que tinham da sua santidade».

Sobre sua mãe, cujo nome nunca nos é revelado, contam-nos que conseguiu «que a admitissem por servente deste Mosteiro, em o número daquelas que andavam de porta em porta pedindo esmolas para o sustento das Freiras. Neste exercício elegeu o nome de Brites da Cruz».

DATAÇÃO DA PASSAGEM DE ANTÓNIA DA TRINDADE PELA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Segundo Sousa Lamy [6], Antónia da Trindade veio para Coimbra em 1549, data que, sendo embora possível, me deixa algumas dúvidas, pelas razões que a seguir explico:

Sousa Lamy transcreve esta informação da Miscellanea Historico-Biographica [7], um livro de biografias sintéticas, que não tem a credibilidade das outras obras que tenho vindo a referir e que, no caso vertente, me levanta interrogações. De facto,

- o texto não está isento de erros: lá se diz (e Sousa Lamy transcreve) que Antónia da Trindade professou «sob o nome de sóror Beatriz da Cruz». Ora, nas fontes com biografias circunstanciadas [1] a [4], Beatriz da Cruz nunca consta; consta, sim, Brites da Cruz, mas como tendo sido o nome adoptado pela mãe de Antónia da Trindade; 

- o ano de 1549, que não aparece nas fontes mais credíveis, pode resultar de uma leitura apressada da fonte principal, a Historia Serafica [2]. Isto porque, sendo neste ano que foi passado o Breve do Papa Paulo III a autorizar a edificação do Mosteiro de Nossa Senhora da Consolação de Figueiró dos Vinhos, todas as 35 páginas que aquela obra dedica ao dito Mosteiro e suas monjas, incluindo a página que descreve a passagem de Antónia da Trindade por Coimbra, são encimadas pela cota de referência "Anno 1549".

Mas como encaixa esta data – 1549 – nas restantes informações recolhidas?

Diz-nos a Historia Serafica [2] e o Anno Historico [4] que Antónia da Trindade «faleceu pelos anos de mil quinhentos e setenta e cinco», acrescentando a Historia Serafica que «não morreu velha».

Fazendo fé nestas informações, considerando a juventude com que, na generalidade dos textos, se diz que a menina partiu para Coimbra, e atendendo à esperança de vida naquela época [5], será de admitir como cenário provável que Antónia da Trindade tenha nascido por volta de 1535-40 e tenha vindo para Coimbra (com cerca de 15 anos) pelos idos de 1550-55. Este cenário e a data acima acabam por não ser incompatíveis. (*)

Assim sendo, penso que se pode afirmar com bastante segurança que Antónia da Trindade estudou na Universidade de Coimbra nos últimos anos do reinado de D. João III. (**)

Zé Veloso

(*) Um parêntesis para registar a voz discordante do autor do Theatro Heroino [3], para quem Antónia da Trindade «nasceu pelos anos de Cristo de mil quinhentos e sessenta e nove», o que, a ser verdade, atiraria a sua entrada na Universidade para 30 a 35 anos depois daquilo que admitimos acima. Mas esta fonte parece-me ser menos credível que a Historia Serafica [2] e o Anno Historico [4], por o seu texto ser bastante vago.

(**) Como é sabido, D. João III, que transferiu definitivamente a Universidade de Lisboa para Coimbra em 1537, reinou de 1521 a 1557.

Segue-se o post:

- ESTUDANTES CLANDESTINAS NA UNIVERSIDADE. PARTE IV: PÚBLIA HORTÊNSIA DE CASTRO

que será publicado nas próximas semanas.

[1] CARDOSO, George. Agiologio Lvsitano dos Sanctos e Varoens Illvstres em Virtvde do Reino de Portvgal, e svas Conqvistas. Tomo I, Officina de Antonio Craesbeeck de Mello, 1652, p. 248.

[2] SOLEDADE, Fr. Fernando da. Historia Serafica Chronologica da Ordem de S. Francisco na Provincia de Portugal. Tomo IV, Officina de Manoel & Joseph Lopes Ferreyra, 1709, pp. 646-648.

[3] PERIM, Damiaõ de Froes. Theatro Heroino, Abcedario Historico, e Catalogo das Mulheres Illustres em Armas, Letras, Acçoens Heroicas, e Artes Liberaes. Tomo I, Officina da Musica de Theotonio Antunes Lima, Lisboa Occidental, 1736, p. 67.

[4] SANTA MARIA, P.e Francisco de. Anno Historico, Diario Portuguez: noticia abreviada de pessoas grandes, e cousas notaveis de Portugal…. Tomo Primeiro, Officina e à custa de Domingos Gonsalves, Lisboa, 1744, p.p. 151-152.

[5] RODRIGUES, Teresa. Portugal nos séculos XVI e XVII. Vicissitudes da dinâmica demográfica. CEPESE, Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade, https://www.cepese.pt/portal/pt/publicacoes/colecoes/working-papers/populacao-e-prospectiva/portugal-nos-seculos-xvi-e-xvii.-vicissitudes-da-dinamica-demografica.

[6] LAMY, Alberto Sousa. A Academia de Coimbra. 1537-1990. Rei dos Livros, Lisboa, 1990, p.25.

[7] SILVA, Theodoro José da. Miscellanea Historico-Biographifica. Editor-Proprietario Francisco Arthur da Silva, Lisboa, 1877, p. 62.

 

2 comentários:

  1. Sou seguidor do seu Blogue quase desde o seu início. De há uns anos para cá pouco me tenho dedicado nestas leituras do blogue, incluindo até em trabalhos de continuação de alguma escrita nos meus. Não nos conhecemos pessoalmente mas também fui da geração dos caloiros dos anos 60. Foram as leis que puxaram, muito atraído por estar junto da cabra. Mas o grande sonho, que devoro com toda a minha paixão é a História (a minha melhor cadeira liceal). Tal como o "Zé" Veloso (permita-me pela afinidade dos nossos gostos, muito em particular os que respeitam à nossa Alma Mater, a nossa querida e única UC, mas também pelo local dos estudos secundários, O "Normal", Liceu D. João III), adoro toda a novidade histórica da nossa relacionada com o tema a que tão apaixonada quanto devotamente se dedicou. E fiquei muito honrado com o convite que foi enviado aos representantes do nosso Coro dos Antigos Orfeonistas, uma continuação da nossa paixão da vida estudantil, para mais, para mim que, tendo tido para aí uma dúzia de ensaios do nosso OAC, aí não consegui prosseguir por motivos imperiosos que a vida me impôs. Lá penso estar, pelas 16H30, para adquirir a edição de os "Lysíadas, devidamente autografado.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Caro Vítor Sérgio,
      Peço-lhe imensa desculpa por apenas hoje lhe responder ao seu tão amável comentário.
      Senti-me, naturalmente, lisonjeado com as suas palavras, mas creia que o mais agradável foi ter tido a oportunidade de o conhecer na Feira do Livro – a si e à sua esposa – e os minutos em que pudemos conversar, à sombra do casario da Praça Velha, naquela quentíssima tarde de 10 de Julho, quando lhe autografei um exemplar de OS LYSÍADAS.
      Ainda que não nos lembrando um do outro no passado – apesar de termos percorrido os mesmos espaços –, os interesses comuns que nos unem permitiram que a conversa corresse fluida e amenizar o incómodo da tremenda canícula daquele que terá sido um dos dias mais quentes do ano em Coimbra, a convidar muito mais para a praia do que para o centro da cidade.
      Bem haja, Vítor Sérgio.

      Eliminar

Os comentários são bem-vindos, quer para complementar o que foi escrito quer para dar outra opinião. O saber de todos nós não é de mais.