Eusébio morreu
precisamente há um ano, no dia 5 de Janeiro de 2014. Nos dias que se seguiram,
quase tudo foi dito e escrito sobre a sua pessoa, o seu valor e as paixões que
desencadeou. Passado um ano, pouco mais havendo a dizer, quero assinalar a data
lembrando, apenas, que lhe ficarei eternamente grato por me ter devolvido o
orgulho de ser português naquela jornada dos 5-3 à Coreia do Norte, no Mundial
de 66. Foi um delírio que ainda hoje recordo de cor em todos os seus
pormenores.
Mas a vida é cheia de
meandros, de voltas surpreendentes. E os intérpretes rapidamente passam de salvadores
a carrascos, consoante os papéis que ela lhes reserva. A eles, que os
desempenham; e a nós, que assistimos do peão ou da bancada.
Três anos passados, estávamos
na final da Taça de 69, em plena crise académica. O ambiente em Coimbra era de
cortar à faca. Os ecos da crise dificilmente escapavam para fora dos muros da
cidade, com a imprensa, a rádio e a televisão controladas pela censura. Mas ir
até ao Jamor e fazer ali «um dos maiores comícios de sempre contra o regime»,
como mais tarde haveria de escrever Carlos Pinhão, era um desafio dos diabos. O
regime estremeceu. O Presidente da República fez gazeta, não fosse o caso de
voltar a passar vergonha. O mesmo fez o Ministro da Educação, que tutelava o desporto.
Contrariamente ao que era hábito, a final não foi transmitida em directo pela
televisão! Revistaram-se comboios e viaturas à procura de cartazes e panfletos alusivos
à crise universitária. Nunca tanto agente da PIDE terá assistido a um jogo de
futebol. A Briosa foi impedida de alinhar de branco e braçadeira preta
(solidarizando-se com o luto académico), como tinha feito na meia-final em
Alvalade. Mas os jogadores apresentaram-se no campo de capa preta pelos ombros,
mostrando, assim, que estavam com a Academia que, de capa e batina, se apinhava
no peão e na bancada. Artur Jorge, a cumprir serviço militar em Mafra, não foi
dispensado para o Jamor mas telefonou na véspera a Vítor Campos, para o hotel
onde a equipa estagiava, sugerindo que, caso a Briosa ganhasse o encontro, a
equipa se dirigisse à superior sul onde estaria o Presidente da AAC e o
convidasse para dar a volta de honra. Previa-se que daí pudesse nascer uma
marcha até Lisboa, que desceria a Avenida da Liberdade… se a deixassem!
Mas Eusébio não
deixou! A 5 minutos dos 90 a Briosa vencia por 1-0, quando o Simões levou o
jogo para prolongamento e, finalmente, já na 2.ª parte do dito, o Pantera Negra
acabou com o sonho. Com o nosso, claro. Que o dele era não só ganhar a taça
mas, sobretudo, vestir a camisola da Briosa, o que veio a conseguir no final do jogo, graças à troca de camisolas que se seguiu à peleja! Só foi pena que na época de 69/70 não tivesse
vindo estudar para Coimbra…
Vou rebobinar o filme
três anos e volto ao Mundial de 66. Assisto agora, via TV, à meia-final de Wembley,
contra a Inglaterra. Vejo um Eusébio massacrado até à medula das canelas por um
Nobby Stiles que, se as regras fossem as de hoje, à meia hora de jogo já
estaria expulso três vezes por acumulação de amarelos. Vejo uma equipa
estoirada, jogando em condições desiguais, com menos tempo de repouso e mais
viagens entre jogos, num campo que não era o inicialmente previsto, favorecendo
a Inglaterra, tudo sancionado por obra e graça de uma negociação com
contrapartidas nunca explicadas ou por pura ingenuidade de cordeiros que se
oferecem à degola perante os súbditos de Sua Magestade. E vejo uma raiva que só
parou, ao fim de 90 minutos, no choro convulsivo de um homem que acreditou
sempre e que merecia ter sido considerado o melhor jogador do torneio – Eusébio!
Na fotografia que
ficou para a posteridade, Eusébio aparece confortado por dois homens. Um é
Manuel da Luz Afonso, o seleccionador nacional. Está no seu papel. O outro tem consigo
uma máquina fotográfica e traz no braço direito uma braçadeira que o identifica
como fotógrafo autorizado. É estranho, não é? Não deveria este fotógrafo estar
do outro lado da barricada, a tentar bater a chapa para depois a vender? Que fotógrafo
será este?
Há um ano, um canal de
televisão deu na íntegra a repetição do jogo, incluindo esta cena, e
permitiu-me ver que o dito fotógrafo vinha de fora do relvado para o centro do
terreno, de frente para Eusébio, juntamente com outros companheiros de
profissão e que, ao ver o desespero do jogador, em vez de se preparar para bater
a chapa, aproximou-se dele e passou a caminhar atrás de si, falando-lhe e confortando-o
na sua tristeza.
Foi essa a razão pela
qual Fernando Marques, cauteleiro de profissão, fotógrafo nas horas vagas, nascido
em Coimbra em 1911, onde viria a falecer em 1996, mais conhecido por
“Formidável”, doido pela Académica, que ao longo de décadas registou em rolo todo
o tipo de eventos que aconteceram em Coimbra, cidade que viria a acolher o seu arquivo
fotográfico na Imagoteca da Casa da Cultura, foi essa a razão – dizia eu – pela
qual Fernando Marques, o “Formidável”, que tem fotografias suas publicadas em
vários jornais, incluindo jornais desportivos, não tem no seu espólio a
fotografia do Eusébio a chorar. Porque o "Formidável" personificava o desprendimento e a solidariedade coimbrãs dos anos 60. E, antes de ser fotógrafo, era cauteleiro. E os
cauteleiros conhecem os dramas da vida e sabem que a seguir aos maiores dramas melhores
dias virão.
Não quero terminar esta
crónica sem uma palavra para o Vítor Campos, contemporâneo dos meus tempos de
Coimbra, hoje distinto médico, médio esquerdo da Briosa no jogo da final da
Taça de 1969, que, na foto ao cimo, aparece com o Eusébio, já depois da troca das camisolas.
Para ele, aqui deixo um forte abraço e os votos de continuação da excelente
recuperação que sei que está a acontecer. E que 2015 seja para si um ano de sorte,
apesar de já cá não estar o “Formidável” para lhe vender a cautela que o há-de
ajudar a atingir em breve a plena forma.
Zé Veloso
Nota: Contrariamente ao que a foto mais acima sugere, foi José Belo e não Vítor Campos quem trocou de camisola com Eusébio.
Foto 1: Vítor Campos e Eusébio no final da Taça de 1969. Obtida do livro Académica. História do
Futebol, João Santana e João Mesquita, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 223.
Foto 2: Final do jogo da meia-final do Mundial de 1966, Inglaterra-2, Portugal-1. Da esquerda para a direita: “Formidável”, Eusébio, Manuel da Luz Afonso, Foto obtida da internet.
Que texto maravilhoso ! Só um coração apaixonado pela Académica, pelos sucessos da mais Histórica Seleção Portuguesa de Futebol, e um um profundo sentido humano a servir de binócolos na observação dos factos, poderia ter escrito algo que outros, como eu, poderam viver e agora, reviver: os 5 a 3 com a Coreia, a derrota com os Ingleses na 1/2 final de 66, e aquela tarde luminosa, indescritível e apaixonante em que assistimo ao pôr-do-sol no Jamor, mas ao nascer do sol da Liberdade !
ResponderEliminarCaro Francisco José Carvalho Domingues,
EliminarObrigado pelas suas palavras amigas.
Zé Veloso
Um texto que nos identifica. Parabéns !
ResponderEliminarCarlos Carranca
Obrigado, Carlos Carranca.
EliminarUm abraço.
Zé Veloso
Sou do Benfica. Estudei muito tempo em Coimbra.
ResponderEliminarA tal final de 1968 1969, retrato-a aqui:
http://aminhachama.blogspot.pt/2012/11/museu-taca-deste-portugal.html
Confesso que me dá arrepios de ler textos sobre o contexto e a própria final. Foram tempos diferentes...
Esta publicação é muito valiosa. Há palavras de muito valor não só para a cidade, como para a AAC e para Eusébio.
Muito obrigado elo seu comentário.
EliminarO link é excelente. Com a devida vénia, vou divulgá-lo no grupo do facebook "Penedo d@ Saudade - TERTÚLIA" (https://www.facebook.com/groups/penedodasaudade.tertulia/) - grupo para o qual desde já o convido a pertencer - onde a fotografia final das duas equipas com as camisolas trocadas foi ainda ontem referida mas sem que se soubesse onde poderia ser visionada.
Um abraço,
Zé Veloso
Bom dia, aqui fica mais uma pequena foto que já usei no meu blog sobre outro tema... Ou talvez nem por isso. Mas que se refere à dita final:
ResponderEliminarhttp://3.bp.blogspot.com/-wBUTU7el5KQ/UtZ45951-pI/AAAAAAAALm4/1n6ovkEJQKA/s1600/1968+1969+SLB+Acad%C3%A9mica+TdP+1.png
Obrigado.
EliminarTomei a liberdade de colocar o link na página do Facebook "Penedo d@ Saudade - TRETÚLIA", que tem acompanhado este tópico.
Uma abraço,
Zé Veloso
Boa tarde Zé, enviei-lhe uma mensagem atravez do FB. Não sei já teve a oportunidade de a ler.
EliminarNão consigo identificar a mensagem. Em que nome aparece? Em que página foi postada?
EliminarZé Veloso
O nome é este Minha Chama. Enviei um link para a sua página pessoal no FB. pelo que me apercebi, essa mensagem é capaz de estar na caixa "outras" e não na "caixa de entrada".
EliminarMas não é nada de especial, no entanto posso transcreve-la aqui:
Boa tarde Zé,
Agradeço-lhe a amabilidade por ter mencionado o meu blogue no grupo a que pertence. Em anexo, envio-lhe mais uma foto referente a tal final da TdP. Infelizmente (ou não ), tem o logo do blogue...
Vou ver se consigo arranjar mais mas não é fácil, no entanto (e se não estou enganado) há muita informação sobre essa final e o seu contexto na web.
O nome do grupo... Conheço bem o Penedo da Saudade, lá passei muitos momentos a contemplar a noite daquela zona de Coimbra.
A foto (que eu adoro):
https://fbcdn-sphotos-h-a.akamaihd.net/hphotos-ak-xpa1/v/t34.0-12/10921901_1618292934936093_2005033884_n.jpg?oh=247b27c9d8c0fd45be705b4793284985&oe=54C07E20&__gda__=1421968433_0a2ff8542a2cd744f0d2289597a97ce1
Belíssima crónica, como é teu hábito, caro Zé Veloso. Abraço amigo e Parabéns
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