05 janeiro 2015

EUSÉBIO, VÍTOR CAMPOS, A BRIOSA, E O “FORMIDÁVEL”

Eusébio morreu precisamente há um ano, no dia 5 de Janeiro de 2014. Nos dias que se seguiram, quase tudo foi dito e escrito sobre a sua pessoa, o seu valor e as paixões que desencadeou. Passado um ano, pouco mais havendo a dizer, quero assinalar a data lembrando, apenas, que lhe ficarei eternamente grato por me ter devolvido o orgulho de ser português naquela jornada dos 5-3 à Coreia do Norte, no Mundial de 66. Foi um delírio que ainda hoje recordo de cor em todos os seus pormenores.

Mas a vida é cheia de meandros, de voltas surpreendentes. E os intérpretes rapidamente passam de salvadores a carrascos, consoante os papéis que ela lhes reserva. A eles, que os desempenham; e a nós, que assistimos do peão ou da bancada.

Três anos passados, estávamos na final da Taça de 69, em plena crise académica. O ambiente em Coimbra era de cortar à faca. Os ecos da crise dificilmente escapavam para fora dos muros da cidade, com a imprensa, a rádio e a televisão controladas pela censura. Mas ir até ao Jamor e fazer ali «um dos maiores comícios de sempre contra o regime», como mais tarde haveria de escrever Carlos Pinhão, era um desafio dos diabos. O regime estremeceu. O Presidente da República fez gazeta, não fosse o caso de voltar a passar vergonha. O mesmo fez o Ministro da Educação, que tutelava o desporto. Contrariamente ao que era hábito, a final não foi transmitida em directo pela televisão! Revistaram-se comboios e viaturas à procura de cartazes e panfletos alusivos à crise universitária. Nunca tanto agente da PIDE terá assistido a um jogo de futebol. A Briosa foi impedida de alinhar de branco e braçadeira preta (solidarizando-se com o luto académico), como tinha feito na meia-final em Alvalade. Mas os jogadores apresentaram-se no campo de capa preta pelos ombros, mostrando, assim, que estavam com a Academia que, de capa e batina, se apinhava no peão e na bancada. Artur Jorge, a cumprir serviço militar em Mafra, não foi dispensado para o Jamor mas telefonou na véspera a Vítor Campos, para o hotel onde a equipa estagiava, sugerindo que, caso a Briosa ganhasse o encontro, a equipa se dirigisse à superior sul onde estaria o Presidente da AAC e o convidasse para dar a volta de honra. Previa-se que daí pudesse nascer uma marcha até Lisboa, que desceria a Avenida da Liberdade… se a deixassem!

Mas Eusébio não deixou! A 5 minutos dos 90 a Briosa vencia por 1-0, quando o Simões levou o jogo para prolongamento e, finalmente, já na 2.ª parte do dito, o Pantera Negra acabou com o sonho. Com o nosso, claro. Que o dele era não só ganhar a taça mas, sobretudo, vestir a camisola da Briosa, o que veio a conseguir no final do jogo, graças à troca de camisolas que se seguiu à peleja! Só foi pena que na época de 69/70 não tivesse vindo estudar para Coimbra…

Vou rebobinar o filme três anos e volto ao Mundial de 66. Assisto agora, via TV, à meia-final de Wembley, contra a Inglaterra. Vejo um Eusébio massacrado até à medula das canelas por um Nobby Stiles que, se as regras fossem as de hoje, à meia hora de jogo já estaria expulso três vezes por acumulação de amarelos. Vejo uma equipa estoirada, jogando em condições desiguais, com menos tempo de repouso e mais viagens entre jogos, num campo que não era o inicialmente previsto, favorecendo a Inglaterra, tudo sancionado por obra e graça de uma negociação com contrapartidas nunca explicadas ou por pura ingenuidade de cordeiros que se oferecem à degola perante os súbditos de Sua Magestade. E vejo uma raiva que só parou, ao fim de 90 minutos, no choro convulsivo de um homem que acreditou sempre e que merecia ter sido considerado o melhor jogador do torneio – Eusébio!


Na fotografia que ficou para a posteridade, Eusébio aparece confortado por dois homens. Um é Manuel da Luz Afonso, o seleccionador nacional. Está no seu papel. O outro tem consigo uma máquina fotográfica e traz no braço direito uma braçadeira que o identifica como fotógrafo autorizado. É estranho, não é? Não deveria este fotógrafo estar do outro lado da barricada, a tentar bater a chapa para depois a vender? Que fotógrafo será este?

Há um ano, um canal de televisão deu na íntegra a repetição do jogo, incluindo esta cena, e permitiu-me ver que o dito fotógrafo vinha de fora do relvado para o centro do terreno, de frente para Eusébio, juntamente com outros companheiros de profissão e que, ao ver o desespero do jogador, em vez de se preparar para bater a chapa, aproximou-se dele e passou a caminhar atrás de si, falando-lhe e confortando-o na sua tristeza.

Foi essa a razão pela qual Fernando Marques, cauteleiro de profissão, fotógrafo nas horas vagas, nascido em Coimbra em 1911, onde viria a falecer em 1996, mais conhecido por “Formidável”, doido pela Académica, que ao longo de décadas registou em rolo todo o tipo de eventos que aconteceram em Coimbra, cidade que viria a acolher o seu arquivo fotográfico na Imagoteca da Casa da Cultura, foi essa a razão – dizia eu – pela qual Fernando Marques, o “Formidável”, que tem fotografias suas publicadas em vários jornais, incluindo jornais desportivos, não tem no seu espólio a fotografia do Eusébio a chorar. Porque o "Formidável" personificava o desprendimento e a solidariedade coimbrãs dos anos 60. E, antes de ser fotógrafo, era cauteleiro. E os cauteleiros conhecem os dramas da vida e sabem que a seguir aos maiores dramas melhores dias virão.

Não quero terminar esta crónica sem uma palavra para o Vítor Campos, contemporâneo dos meus tempos de Coimbra, hoje distinto médico, médio esquerdo da Briosa no jogo da final da Taça de 1969, que, na foto ao cimo, aparece com o Eusébio, já depois da troca das camisolas. Para ele, aqui deixo um forte abraço e os votos de continuação da excelente recuperação que sei que está a acontecer. E que 2015 seja para si um ano de sorte, apesar de já cá não estar o “Formidável” para lhe vender a cautela que o há-de ajudar a atingir em breve a plena forma.

Zé Veloso

Nota: Contrariamente ao que a foto mais acima sugere, foi José Belo e não Vítor Campos quem trocou de camisola com Eusébio.

Foto 1: Vítor Campos e Eusébio no final da Taça de 1969. Obtida do livro Académica. História do Futebol, João Santana e João Mesquita, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 223.

Foto 2: Final do jogo da meia-final do Mundial de 1966, Inglaterra-2, Portugal-1. Da esquerda para a direita: “Formidável”, Eusébio, Manuel da Luz Afonso, Foto obtida da internet.

12 comentários:

  1. Francisco José Carvalho Domingues05 janeiro, 2015 22:37

    Que texto maravilhoso ! Só um coração apaixonado pela Académica, pelos sucessos da mais Histórica Seleção Portuguesa de Futebol, e um um profundo sentido humano a servir de binócolos na observação dos factos, poderia ter escrito algo que outros, como eu, poderam viver e agora, reviver: os 5 a 3 com a Coreia, a derrota com os Ingleses na 1/2 final de 66, e aquela tarde luminosa, indescritível e apaixonante em que assistimo ao pôr-do-sol no Jamor, mas ao nascer do sol da Liberdade !

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    1. Caro Francisco José Carvalho Domingues,
      Obrigado pelas suas palavras amigas.
      Zé Veloso

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  2. Um texto que nos identifica. Parabéns !

    Carlos Carranca

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  3. Sou do Benfica. Estudei muito tempo em Coimbra.

    A tal final de 1968 1969, retrato-a aqui:

    http://aminhachama.blogspot.pt/2012/11/museu-taca-deste-portugal.html

    Confesso que me dá arrepios de ler textos sobre o contexto e a própria final. Foram tempos diferentes...

    Esta publicação é muito valiosa. Há palavras de muito valor não só para a cidade, como para a AAC e para Eusébio.

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    1. Muito obrigado elo seu comentário.
      O link é excelente. Com a devida vénia, vou divulgá-lo no grupo do facebook "Penedo d@ Saudade - TERTÚLIA" (https://www.facebook.com/groups/penedodasaudade.tertulia/) - grupo para o qual desde já o convido a pertencer - onde a fotografia final das duas equipas com as camisolas trocadas foi ainda ontem referida mas sem que se soubesse onde poderia ser visionada.
      Um abraço,
      Zé Veloso

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  4. Bom dia, aqui fica mais uma pequena foto que já usei no meu blog sobre outro tema... Ou talvez nem por isso. Mas que se refere à dita final:

    http://3.bp.blogspot.com/-wBUTU7el5KQ/UtZ45951-pI/AAAAAAAALm4/1n6ovkEJQKA/s1600/1968+1969+SLB+Acad%C3%A9mica+TdP+1.png

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    1. Obrigado.
      Tomei a liberdade de colocar o link na página do Facebook "Penedo d@ Saudade - TRETÚLIA", que tem acompanhado este tópico.
      Uma abraço,
      Zé Veloso

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    2. Boa tarde Zé, enviei-lhe uma mensagem atravez do FB. Não sei já teve a oportunidade de a ler.

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    3. Não consigo identificar a mensagem. Em que nome aparece? Em que página foi postada?
      Zé Veloso

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    4. O nome é este Minha Chama. Enviei um link para a sua página pessoal no FB. pelo que me apercebi, essa mensagem é capaz de estar na caixa "outras" e não na "caixa de entrada".

      Mas não é nada de especial, no entanto posso transcreve-la aqui:

      Boa tarde Zé,

      Agradeço-lhe a amabilidade por ter mencionado o meu blogue no grupo a que pertence. Em anexo, envio-lhe mais uma foto referente a tal final da TdP. Infelizmente (ou não ), tem o logo do blogue...

      Vou ver se consigo arranjar mais mas não é fácil, no entanto (e se não estou enganado) há muita informação sobre essa final e o seu contexto na web.

      O nome do grupo... Conheço bem o Penedo da Saudade, lá passei muitos momentos a contemplar a noite daquela zona de Coimbra.

      A foto (que eu adoro):

      https://fbcdn-sphotos-h-a.akamaihd.net/hphotos-ak-xpa1/v/t34.0-12/10921901_1618292934936093_2005033884_n.jpg?oh=247b27c9d8c0fd45be705b4793284985&oe=54C07E20&__gda__=1421968433_0a2ff8542a2cd744f0d2289597a97ce1

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  5. Belíssima crónica, como é teu hábito, caro Zé Veloso. Abraço amigo e Parabéns

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