É Carnaval. Pelos corsos que despontam todos os anos, feitos
cogumelos, por esse país fora, as meninas seminuas vâo-se constipando ao ritmo
do samba, como se a tradição não nos tivesse deixado trajes trapalhões próprios
para um Carnaval de inverno e bombos mais condizentes com os ritmos do nosso
folclore.
No início desta retro-colonização
brasileira ainda cá vinham umas estrelas de primeira grandeza, cabeças de
cartaz de telenovelas que passavam o Carnaval entre nós para entretém dos
papalvos. Mas rapidamente o pessoal percebeu que, mesmo com tais enxertos, os
nossos corsos de pacotilha jamais passariam de uma imitação barata e deslocada
daquilo que a televisão nos mostra no sambódromo do Rio. E, para ajudar à
festa, as chuvas de Fevereiro têm-se encarregado de desmobilizar as gentes e de
mandar para a valeta, ano após ano, o dinheiro gasto nestes investimentos de alto
risco, já que a chuva está para o Carnaval como o Circo Luftman – o tal que trazia sempre chuva – estava para
Coimbra.
No entanto, e estranhamente, a cena repete-se todos os anos.
E agora até começa mais cedo, com o desfile das escolas primárias e dos infantários!
No caso que me tocou em sorte, foi logo na quinta-feira! E lá vão os papás
comprar os fatos e os avós levar os meninos e depois vem a chuva e o desfile
não sai e os miúdos já choram e acaba tudo ranhoso na urgência do hospital, que
a criancinha apanhou frio e o avô só não lhe deu um treco porque não calhou…
… e qualquer dia já ninguém se lembra que no Carnaval se
faziam partidas, se travestiam homens e mulheres, se vinha para a rua vestido com
trapos velhos, se faziam grandes bailes ou os chamados assaltos, se libertavam tabus e paixões proibidas, a coberto da
máxima no Carnaval ninguém leva a mal…
e até havia corsos, em terras que tinham essa tradição, embora em moldes bem
diferentes do standard brasileiro que está hoje na moda.
No meu tempo era assim. E como seria em Coimbra, um século
antes?
As notícias que chegaram até nós são do Carnaval de 1854,
ano em que se deram os graves acontecimentos que ficaram conhecidos pelos nomes
de Entrudada ou Tomarada. Tais notícias não são coincidentes entre si mas os
relatos convergem na brutalidade de algumas brincadeiras: «jogava-se o entrudo com limões de cera, que partiam vidros, cabeças e cegavam; com laranjas verdes, ovos, vermelhão, fundo de panela e pó de sapateiro»; «verdadeiras batalhas, cujos combatentes despediam, uns contra os
outros, ovos, laranjas e outros que tais projécteis, que por vezes se tornavam
ofensivos».
É Domingo Gordo, 26/02/1854, e na Praça de S. Bartolomeu
(actual Praça do Comércio) a malta joga ao entrudo. De um grupo de estudantes, que
se diverte, sai um ovo, tipo bala perdida, que atinge o peito de uma senhora que
está à janela de sua casa, senhora essa que tem a seu lado um tal Lima Valentão [1], o qual responde de forma
desproporcionada, atirando da janela abaixo uma panela de barro e empunhando
uma espingarda. A estudantada irrompe pela escada do prédio, enquanto Lima Valentão escapa pelo telhado. Salta
a futricagem em defesa dos do seu bairro, desata tudo ao biscoito, a polícia
toma partido pelos da terra, a estudantada leva uma coça e vai lamber as
feridas para o bairro alto. Estava aceso o rastilho que haveria de dar lugar a várias
incursões de guerrilha entre os dois territórios até que, na terça-feira, cerca
de 600 estudantes (numa universidade que contava nesse ano com 894 matrículas) invadem
em força o bairro baixo, sendo rechaçados a tiro pelas forças de segurança.
Por considerarem que a actuação da polícia não tinha sido
imparcial em toda esta contenda, uma delegação de 200 estudantes partiu a pé
para Lisboa, a fim de reclamar junto da rainha D. Maria II, mas uma força
militar impediu-a de continuar a marcha em Tomar. De regresso a Coimbra,
fundaram uma associação secreta, que viria a durar apenas seis meses – A Liga
Académica – com a finalidade de «sustentar
o afastamento de todas as relações com os filhotes da terra, fazer a ronda
nocturna pela cidade para a protecção dos estudantes, e organizar uma
Cooperativa de consumo, em que por conta dos associados mandassem vir de fora
de Coimbra os géneros alimentícios».
Esta é, em resumo, a história da Tomarada (ou Entrudada) que
nos conta Sousa Lamy na sua obra monumental – A ACADEMIA DE COIMBRA. 1537-1990 – a partir de fontes idóneas, como
Teófilo Braga, Martins de Carvalho e Eduardo de Noronha, obra que lamento
profundamente ter ido consultar para compor esta crónica.
E lamento profundamente porque, se me tenho ficado pelas MEMÓRIAS DO MATA-CAROCHAS do Dr. Antão
de Vasconcelos, aquele livro fabuloso que tem o encanto de nunca sabermos onde
acaba a realidade e começa a fantasia, ter-vos-ia deixado aqui algo muito mais adequado
à quadra do entrudo, não necessariamente uma patranha de Carnaval mas uma história bem mais sanguinolenta e façanhuda. Ter-vos-ia falado das dezenas de estudantes e futricas
gravemente feridos ou mortos, sendo que, no caso dos estudantes, quase todos apanhados
à falsa-fé e, alguns deles, apunhalados ou baleados pelas costas. Ter-vos-ia
dito que vieram tropas de fora, que confraternizaram com os futricas, o que mais enraiveceu os estudantes. Ter-vos-ia
contado que os estudantes que marcharam para Lisboa eram 1500, mais do que a
população universitária de então (!), organizados em três batalhões que se distinguiam pelas cores branca, azul e encarnada, armados e embarretados com o saque de quantas armas e carapuças pela calada de uma só noite conseguiram obter em Coimbra. E que, para saírem da cidade sem darem nas vistas, atravessando a ponte sobre o
Mondego à meia-noite em ponto, lançaram previamente o fogo aos quatro cantos da
cidade, atraindo para aí a população e a tropa. E que, uma vez chegados a Tomar, na
iminência de um confronto que resultaria numa carnificina dos estudantes, o
oficial do exército português que lhes fora fazer frente se recusara a fazer disparar
os seus homens e «a dizimar por centenas
aqueles rapazes cheios de vida e de brios, as esperanças da Pátria». E «reunido o Conselho de Estado ou o Gabinete,
pouco importa», e com a anuência da Rainha, que tenazmente tomara partido
pelos estudantes, «foi então ordenado à
tropa que batesse em retirada» e aos nossos garbosos académicos lá lhes foi
permitido marcharem sobre Lisboa, onde foram aboletados por conta do governo,
chamando-se a esta façanha a Rendição do
exército português e a tomada de Lisboa! E passaram em formatura «sob as janelas onde se encontrava a Soberana,
destacando uma comissão que pediu a mudança da Universidade para o palácio de
Mafra»! Ah!, malta dum raio! Como escreveu Antão de Vasconcelos, «Quem conhecer esta parte da história da Universidade de Coimbra, jámais enfrentará uma capa e batina sem se desbarretar respeitosamente ante o símbolo da União e do Brio»!
Nesta coisa de escrever sobre o passado é importante
encontrar as boas fontes e não ficar pelas bicas inquinadas que alimentam
pequenos riachos. Mas é bem verdade que a água de alguns riachos pode ser bem
mais saborosa que a das fontes mais fidedignas!…
Zé Veloso
[1] Segundo Sousa Lamy, Lima Valentão era a alcunha de João Lúcio de Figueiredo Lima, natural de Sandomil, Guarda, que havia de se formar Filosofia em 1855.
Transcrevo comentário recebido na página www.facebook.com/groups/penedodasaudade.tertulia em 16/02/2015
ResponderEliminarDe: Marinela St Aubyn
Li e gostei.
Pois, também eu acho muito mais interessante a história do Mata-Carochas, do milagre da multiplicação das matrículas na Universidade, que de 894 consegue um exército de 1500, um batalhão de grandes estrategas que ludibriam a população dos coimbrões e conseguem marchar até Lisboa, com garbo e valentia. Certamente nasce aí o nome de “Briosa”...
Mais uma excelente crónica para nos animar um pouco neste enfadonho Entrudo-importado- das-Américas, que teimam em vender-nos ano após ano, esmagando a nossa tradição.
Obrigada, Zé Veloso, e parabéns!
Transcrevo resposta dada nesse mesmo dia:
EliminarCara Marinela, quando comecei a escrever a crónica, apenas conhecia a versão do Mata-Carochas, cujo livro tenho em casa. Mas, como sempre faço, procurei confrontar essa versão com outras e foi então que apanhei uma verdadeira desilusão pois que se foi embora metade do encanto da história, de que, de qualquer forma, fiz questão de não privar os leitores.
Antão de Vasconcelos era um brasileiro que estudou em Coimbra uns 40 a 50 anos depois dos acontecimentos da Entrudada. Conta o que ouviu dizer e quem conta um conto acrescenta um ponto. Mas mesmo nas histórias que conta do seu tempo, quando confrontadas com narrativas de outros seus contemporâneos, as suas têm sempre mais molho, mais tiros, mais mortos, mais futricas insidiosos e mais estudantes briosos.
Quanto à questão da origem da BRIOSA, ela vem, de facto, do "brio" dos estudantes, como expliquei já noutras crónicas. Mas não tenho provas de que o "brio" fosse já uma característica distintiva em 1854. O texto de Antão de Vasconcelos estará já contaminado por factos posteriores.
Transcrevo comentário recebido na página www.facebook.com/groups/penedodasaudade.tertulia em 16/02/2015
ResponderEliminarDe: Cândido Pereira
Mais uma viagem a essa Coimbra de outrora,da forma agradável que Zé Veloso tem de nos brindar.
A forma de diversão,naturalmente,mudou o estilo, mas,por volta da viragem da segunda metade do século XX,o povo ainda apresentava alguns resquícios da brutalidade nas brincadeiras.Basta recordar as matinés do Avenida em tempo de Carnaval,com arremessos de tudo quanto podia magoar,desde os camarotes para a plateia.
Transcrevo várias respostas:
EliminarDe Zé Veloso:
Caro Cândido, falando com uma irmã minha, ela lembra-se das matinés do Avenida, pelos anos 40/50, com o arremesso de saquinhos de serradura.
De Cândido Pereira:
Saquinhos de serradura,eram mimos com que se agraciava o colo das donzelas.Para os marmanjos,tudo servia de projéctil.Uma célebre matiné de Carnaval,até fui à mercearia que existia do outro lado da Avenida,comprar grão de bico!
De Carlos Eduardo Pereira Mendes:
POR VOLTA DOS ANOS 50, NO AVENIDA, NUMA TERÇA-FEIRA DE CARNAVAL UM COLEGA MEU LANÇOU PARA UM CAMAROTE ONDE ESTAVA "UM MENINO MUITO POPULAR, NAQUELA ALTURA, ENTRE AS MENINAS - O ZINHO - UMA CEBOLA PODRE (COM CHEIRO HORRÍVEL - )E LHE ACERTOU EM CHEIO...ERA TAL O CHEIRO QUE O CAMAROTE TEVE DE SER EVACUADO..........NÃO É HISTÓRIA DE OCASIÃO, MAS VERIDICA.
Nos anos 50, ainda me recordo de uma prática trazida dos Açores, em que um estudante, possuidor de uma pêra de metal, que se abria em duas metades. Fechava-se e, através de um orifício introduzia-se uma pequena quantidade de cera fundida. Agitava-se muito bem e, depois de fria, abria-se a pêra, ficando uma "pêra" de cera. Abria-se um pequeno orifício e enchia-se de água (ou outra qualquer coisa), tapando-de em seguida com um pingo de cera. Resultado, ficava uma "pêra de água". Esta era depois atirada das janelas ou da rua contra as damas ou donzelas, criando depois diversos "estragos", alguns deles físicos. Não deixava de ser violento! E os "sacos de farinha" e "areia"?
ResponderEliminarObrigado pelo comentário.
EliminarNão conhecia essa da pêra. Mas lembro-me dos sacos de farinha e serradura.
Abraço,
Zé Veloso