No meu tempo de Coimbra, quando se dizia que uma República «andava à lebre» era porque o fim da caixa e do crédito na mercearia tinham chegado mais cedo do que o fim do mês, não restando aos repúblicos outra alternativa que não fosse distribuírem-se por outras Repúblicas, onde comeriam até que a caixa se recompusesse com as mesadas do mês seguinte.
Se várias Repúblicas andavam à lebre ao mesmo tempo, o problema passava para as cozinheiras, que teriam de fazer mais comida com o mesmo conduto, que onde comem oito também comem nove ou dez, desde que não se fuja muito das arrozadas. Todos passavam a comer um pouco pior para que todos pudessem continuar a comer. A solidariedade sempre foi uma qualidade do nosso povo e também não era negada entre os estudantes.
O que eu não entendia, na altura, era porque se chamava «andar à lebre», quando lebre era coisa que nem vê-la; e o coelho, se o havia, andava bem escondido por debaixo do arroz ou das batatas. Mas o termo era já corrente nos tempos de Antão de Vasconcelos, estudante brasileiro que cursou Direito entre 1860 e 1865 e que escreveu mais tarde as célebres Memórias do Mata-Carochas.
Segundo o Mata-Carochas, quando o estudante por estroina, jogador ou vagabundo perde as mesadas, que vai rebatendo, ou a família lhas suspende por castigo ou por pobreza, vê-se ele na contingência de empenhar ou vender tudo o que tem, a própria cama, e assim fica «à pauperibus», como ali se diz. Então, explora as repúblicas amigas, almoçando aqui, ceando acolá, dormindo com alguns amigos ou algures embrulhado na capa, até que melhorem os tempos e sopre a bonança. Este estado é ali denominado – «andar à lebre».
E Amílcar Ferreira de Castro, em A Gíria dos Estudantes de Coimbra, adianta uma explicação plausível para a expressão «andar à lebre»: acção semelhante à do caçador que para caçar a lebre tem de percorrer muitos lugares. Temos, assim, que, em tempos que já não são os meus, se chamava «caçador» ao estudante que andava à lebre.
Voltando ao Mata-Carochas, num capítulo do livro dedicado à Associação Filantrópico-Académica (lembram-se dela?), podemos ler:
Quando chegava ao conhecimento da Associação que algum companheiro «andava à lebre», mandava-lhe pequena quantia e logo abria uma subscrição, sem nunca declinar o nome do «caçador». Era assim:
Um pegava no gorro, abeirava-se dos grupos ao cavaco e dizia:
«Oh, coisas; deitai aqui o que quiserdes.» Toda a gente dava, isto é, largava dentro do gorro o que queria ou podia.
Feita a colecta, embrulhava-se a quantia em um papel; espreitava-se o tipo e logo que era encontrado o portador, descia o gorro pela cara abaixo, mascarando-se, e entregava-lhe o embrulho sem balbuciar palavra; se o sujeito tinha ponto certo, depositava-se no lugar para lhe ser entregue e, logo que saía o portador, entrava outro a vigiar a pontualidade da entrega, de forma a não haver burla ou ladroeira do depositário.
O «caçador» não sabia quem lho dava e os académicos não sabiam para quem davam, mas sabiam a que fim se destinava.
Sábado de manhã, ao passar os olhos pelo Expresso, chamou-me a atenção uma notícia: «Estudantes de Aveiro e Algarve lançam campanhas de recolha de alimentos para colegas em dificuldades». A notícia conta que naquelas Universidades foram montados locais de recolha onde os estudantes colocam bens alimentares essenciais que são depois distribuídos aos alunos que se encontram em dificuldade. E esclarece que, na Universidade de Aveiro, para preservar a identidade dos estudantes, a distribuição será assegurada pelo gabinete pedagógico da UA, a única entidade que conhece quem pediu ajuda. Tal como no tempo de Antão de Vasconcelos, o dar sem saber para quem, embora conhecendo o fim, e o respeito pela identidade de quem é ajudado.
Sábado à tarde fui ao supermercado. Estava a decorrer a recolha do Banco Alimentar contra a Fome. Abeirou-se de mim um jovem que me disse, simplesmente – O que quiser dar. O jovem não vinha de capa e batina mas o gesto era igual ao que vem referido nas Memórias do Mata-Carochas. Só que em vez de me estender um gorro de pano preto me entregou um saco de plástico branco.
Zé Veloso
Como sempre, muito interessante e fluido.
ResponderEliminarDá prazer ler.
Obrigado, Teresa, pelo apoio que tens dado ao blogue desde a primeira hora.
ResponderEliminarUm beijo,
Zé Luís
Meu caro
ResponderEliminarTambém é oportuno recordar a "Venda da Pasta"iniciativa do curso médico (1931/1932), Dr.Henrique Pereira da Mota (Pantaleão), pai do meu muito estimado e nosso comum amigo Augusto Carmona da Mota, cuja receita sempre reverteu a favor do Asilo da Infancia Desvalida-Doutor Elísio de Moura.
Muitas e iguais atitudes foram motivadas pelos estudantes da nossa Universidade, a favor de vitimas de catástrofes, homenagens, monumentos, ensino (Jardim Escola João de Deus, centenário em Abril último).
Abraço
Belo artigo a recordar, pro exemplo, os saruas e quermesses em que as Tunas davam concerto em faqvor da "Caixa dos Socorros aos Estudantes Pobres".
ResponderEliminarParabéns, ilustre, pelo apontamento.
Um blogue muito interessante que convém ser mais divulgado pelas tradições que descreve e que incita os antigos companheiros de Coimbra a intervirem e a acrescentar mais achas à fogueira do conhecimento.
ResponderEliminarMuito humana a atitude de partilha entre colegas e muito mais ainda quando era feito de forma secreta, não humilhando ou ferindo o orgulho de quem necessitava. A capa (faz-me lembrar a minha bata do Liceu Gil Eanes em Cabo Verde e, depois, no Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, que nos fazia iguais, pelo menos durante as aulas) serviu bem este propósito, em todos os aspetos da vida do estudante de Coimbra!
Nos tempos difíceis que atravessamos, o saco de plástico das campanhas contra a fome faz na realidade lembrar a solidariedade de que o povo anónimo é capaz.
Um texto humano que nos contagia e que nos faz sentir na pele dos que se juntam anonimamente para seguir a tradição de dar um pouco do pouco que se tem! Conheço grupos de jovens que vão ajudar a distribuir sacos de alimentos (além de executar a tarefa de recolher alimentos onde pode, até nos mercados, em troca de trabalho duro) por quem nada tem e sente vergonha de dar a cara em público. Em tom de homenagem, vou tomar a liberdade de divulgar este texto no meu nural do Facebook. Obrigada pela partilha, Zé!
Meu caro Zé Veloso
ResponderEliminarSempre lendo e relendo, o que tenho e o que encontro, sobre a nossa Universidade, junto umas linhas que focam o tema"Em Santa Cruz de Coimbra, depois da mudança de Dom JoãoIII, davam-se diariamente por sua ordem e intenção do fundador S. Theotónio, vinte e quatro rações cobertas a outros tantos estudantes pobres, com cujo auxilio muitos deles se graduaram, como refere o cronista da ordem(1).
Posteriormente,a irregularidade da alimentação determinou a funcção académica de andar à lebre que consistia em visitar os amigos à hora das refeições, dando-se por achado e ocultando a penúria do seu viver."
(1)Dom Frei Nicolau de Santa Maria,Chronica dos Conegos Regrantes de Santa Cruz,VII,64
In Coimbra Doutora-Hyppolyto Raposo-MCMX
Caro Ricardo,
ResponderEliminarNas pesquisas que fiz não encontrei referência ao termo "andar à lebre" anteriores a Antão de Vasconcelos (1860-1865).
O teu texto, posso concluir que o termo existisse já anteriormente. De que data é a crónica de D. Frei Nicolau?
Obrigado e um abraço
Zé Veloso
Meu caro Zé Veloso
ResponderEliminarNão.Como não transcrevi todo o texto....resultou essa ilação. O autor Hyppolyto Raposo é que vai procurar alguma(?) "relação"na atitude, não no termo ,quando escreve (1910),com a "norma" em St. Cruz, quando da instalação da Universidade em Coimbra.
Abraço
Meu caro Veloso
ResponderEliminarRelendo, Coimbra, tu eras dantes…A.Alexandre de Matos (1942),pag.107 que cursou Direito em 1893/1898 contemporâneo de Augusto Gil e de Hilário
“Livrai-nos, Senhor, também
(Reza o Correia de Barros)
Dos que, por andar à onça….
Deixam em casa os cigarros”
Virá a prepósito ?...
Uns, "andavam à lebre" e outros "andavam à onça"
O meu abraço
Caro Ricardo,
ResponderEliminarNão me recordo de ter lido a expressão "andar à onça", que deverá ser sinónimo de "andar à crava (de tabaco)", já que os cigarros eram feitos de tabaco vendido à onça, enrolado numa mortalha....
Essa expressão do "Livrai-nos, Senhor..." lembrou-me alguns conselhos que o Palito Métrico dá aos novatos que chegam a Coimbra e onde esta questão do cravar tabaco aparece:
«Nunca puxes por caixa de tabaco,
Onde vires que está grande arraial:
Porque há tal, que na caixa faz buraco,
Onde pode caber o Escurial;
Porém se acaso fôr tão vil, tão fraco,
Que queiras por estúrdia dar geral,
Ora vá, mas que sejam mãos perdidas,
Enche a estes tolinas as medidas.
«E se vires que algum, na tua presença,
Da caixa puxa sem que te convide,
Mete os dedos, e toma sem licença;
Porque lo que se toma, nó se pide;
Porém faze-lhe a mesma recompensa
Em outra ocasião que te la pide;
Porque pode dizer êsse marau,
Que além de perdulário, és um patau.»
Um abraço,
Zé Veloso
Boa noite, meu caro Zé Veloso
ResponderEliminarUm apontamento , por um dos fundadores da Real República Prá-Kys-Tão(*), Janeiro de 1951, para juntar ao tema:
”Geralmente a partir do meio do mês o dinheiro começava a escassear para os gastos da alimentação.E vezes havia em que faltava por completo, restando aos repúblicos o recurso , isto é, ir amesendar para outras repúblicas mais abonadas.
Que me recorde, só uma vez andámos .Em contrapartida, muitas foram as vezes em que acolhemos colegas doutras repúblicas tocados de penúria alimentar”
(*)Real República Prá-Kis-Tão-Memórias de Coimbra-José Marques Vidal-pag.46—2002
Eu lembro o uso da palavra , mas com a ideia (sentido)de falhar, faltar,perder…
Abraço
Estranhamente, o blogspot eliminou automaticamente a palavra "lerpa" que aparecia por duas vezes no comentário acima. Vou tentar reproduzir na íntegra o comentário:
EliminarBoa noite, meu caro Zé Veloso
Um apontamento , por um dos fundadores da Real República Prá-Kys-Tão(*), Janeiro de 1951, para juntar ao tema:
”Geralmente a partir do meio do mês o dinheiro começava a escassear para os gastos da alimentação.E vezes havia em que faltava por completo, restando aos repúblicos o recurso "à lerpa", isto é, ir amesendar para outras repúblicas mais abonadas.
Que me recorde, só uma vez andámos "à lerpa". Em contrapartida, muitas foram as vezes em que acolhemos colegas doutras repúblicas tocados de penúria alimentar”
(*)Real República Prá-Kis-Tão-Memórias de Coimbra-José Marques Vidal-pag.46-2002
Eu lembro o uso da palavra , mas com a ideia de perder, falhar, faltar...
Abraço
A fazer fé neste escrito, pelos anos 1950 dir-se-ia "andar à lerpa" em lugar de "andar à lebre". Acho pouco credível, pois que o termo, vindo já do século XIX, chegou intacto à Coimbra do meu tempo, posterior à Coimbra de Marques Vidal. Penso que Marques Vidal poderá ter-se equivocado, ao escrever as suas memórias de Coimbra 50 anos depois de lá ter estudado.
Zé Veloso
Meu caro Zé Veloso
ResponderEliminarDe facto, continuando a procurar a expressão usada -“andar à lebre”, em outros escritos mais antigos, reproduzo agora:
“ Andar à lebre-É não ter eira nem beira, casa nem mesa, quarto nem prato; o estudante dorme hoje aqui, amanhã acolá, por casa dos amigos. É gíria académica, calão dos geraes .”
E para alegrar a história, reproduzimos do mesmo escritor:” Ora um dos que andam à lebre, perguntou d’uma vez o lente respectivo:
-Como é que vive o sr. Evaporou a mesada num vício maldito. Não tem casa …
-Ganho a vida escrevendo
-Nos jornais?
-Aos amigos, pedindo-lhes dinheiro."
Abraço
In- Estudantes de Coimbra e as suas partidas-Santos Quintela-Escritório de Publicações J.Ferreira dos Santos-Porto
Pag58
Obrigado, Ricardo!
EliminarAjudas-me com imensa informação extra, que daria um segundo post.
Um abraço,
Zé Veloso