Já por aqui escrevi que Coimbra deve uma boa parte da importância que ganhou, desde tempos muito antigos, ao facto de se localizar num ponto de passagem obrigatória para quem, pelo litoral, precisasse de se deslocar entre o Norte e o Sul da Península.
Não admira, por isso, que Coimbra seja hoje a terra portuguesa que mais pontes tem sobre o rio que a banha. Se Lisboa tem duas e o Porto tem seis, em Coimbra conto nada menos do que dez, compreendidas entre a A1 e a Portela.
Começando precisamente na Portela, logo aí existem três, separadas por poucos metros, o que, visto de longe, sugere uma complexa e intensa rede de tráfego! Puro engano. Só uma das três pontes funciona: a que hoje liga Coimbra à Estrada da Beira. Das outras duas… a ponte da linha da Lousã – Ponte das Carvalhosas – que tantos comboios carregou de um lado ao outro do rio desde 16/12/1906, está parada há vários anos, pacientemente à espera que lhe voltem a pôr em cima as travessas e os carris que em má hora foram levantados; e a velha ponte da Estrada da Beira, inaugurada em 13/07/1873, para ali ficou abandonada e a criar ferrugem, sem préstimo algum que não fosse o de ver passar os comboios na ponte ao lado… se os houvesse!
A quarta ponte a referir é uma ponte ferroviária que raramente observamos, pois que o normal é passar-lhe por cima, já de malas na mão; e se olhos há nessa altura… é para a Alta, que nos aparece, subitamente, no seu esplendor, mal o comboio entra sobre o rio. A ponte da Linha do Norte foi construída em 1864 e, embora tendo sido reforçada, ali continua a mostrar que “velhos são os trapos”.
Chegamos agora à Ponte de Santa Clara, a quinta deste itinerário, projecto de Edgar Cardoso, a qual foi aberta ao trânsito em 30/10/1954. Olhando a fotografia que mostra a ponte prestes a ser inaugurada e, à sua direita, a velha ponte (também ela de Santa Clara), facilmente se percebe que estamos perante duas realidades completamente diferentes. A construção desta nova ponte alteou e alterou profundamente a fisionomia do Largo da Portagem e avenidas confinantes. A nova Ponte de Santa Clara, muito mais larga do que a anterior, respondia assim ao crescente aumento do tráfego rodoviário Norte-Sul, tráfego que, à época, atravessava a cidade, escoando-se pelas avenidas Emídio Navarro e Fernão de Magalhães.
E porque aqui estamos, será altura de falar não apenas na velha ponte de Santa Clara – ponte metálica, em forma de gaiola, com um passeio pedonal de cada lado e apoiada em pilares de pedra, que foi aberta ao trânsito em 8/5/1875 – mas também em todas as que a precederam naquele local e que foram, pelo menos, três.
A primeira de que há indícios fortes, mas fracas notícias, seria uma ponte romana de pedra (ainda que haja igualmente referências a uma ponte de madeira; anterior a esta?).
Sobre as fundações da ponte romana, ou aproveitando muito mais do que essas fundações, construiu D. Afonso Henriques a partir de 1132 uma outra, conhecida como Ponte de D. Afonso Henriques, igualmente de pedra, cujas obras se continuaram por vários reinados. Mas, ou porque a construção fosse fraca ou porque o Mondego arrastasse na sua fúria de Inverno tudo o que da serra se desprendia ou, ainda, porque o rio, cada vez mais assoreado, galgava a ponte nas grandes cheias, a verdade é que, chegados ao reinado do rei venturoso, a ponte do rei fundador estava uma lástima e teve de ser, uma vez mais, reconstruída.
A Ponte de D. Manuel, também conhecida por Ponte do O, ficou concluída em 1513. Está retratada da gravura de Pier Maria Baldi, desenhada em Fevereiro de 1669. No enfiamento do leito mais fundo do rio, tinha 13 arcos que permitiam a passagem das barcas serranas com a vela panda. Na margem direita, a ponte terminava num arco/torre de secção quadrada, onde era cobrada portagem às mercadorias que entravam na cidade. Mais junto da margem esquerda, a ponte tinha agora um novo tramo com 12 arcos (talvez mais um viaduto do que uma ponte), separado do primeiro por uma plataforma a que se chamou O, de onde partiam duas rampas de acesso ao leito do rio. Era a ponte mais comprida e mais bonita do país e era local de passeio obrigatório dos estudantes que, tendo aulas apenas de manhã, eram assíduos frequentadores do Mondego pela tarte, até que a cabra os chamasse ao estudo. Era esta a ponte que deixava boquiabertos os caloiros que a Coimbra chegavam, como refere o Palito Métrico:
Quando a Coimbra chegares, não te espantes,
Se vires pela ponte passeando
A grande multidão dos Estudantes,
Por mais que para ti esteja olhando:
[…]
Se vires pela ponte passeando
A grande multidão dos Estudantes,
Por mais que para ti esteja olhando:
[…]
Quando foi dada como obsoleta, ainda a ponte estava rija e permitia bem que se lhe passasse por cima. O problema é que o Modego já mal lhe passava por baixo, no seu constante assoreamento, que vários conventos foi “enterrando” à medida que os séculos passavam. Por isso a ponte foi demolida e substituída pela ponte metálica em forma de gaiola (foto mais acima), cujos pilares foram construídos sobre as fundações da Ponte de D. Manuel, sendo que cada tramo da ponte metálica ficou a corresponder a dois arcos da ponte anterior.
Deixando para trás este local de atravessamento mais antigo, sigamos agora o aparecimento das restantes 5 pontes, por ordem cronológica.
No início dos anos 80 entrou em funcionamento a Ponte-açude que, conjugada com a construção da barragem da Aguieira e, mais tarde, do açude da Raiva, amansou um Mondego “basófias”. Também por ali o trânsito começou a escoar-se – não tanto como hoje – mas a obra era essencialmente hidráulica e, com ela, muito aproveitou a exploração agrícola do Baixo Mondego, menos sujeita às cheias que causaram a perdição de tantas colheitas. Mas Coimbra aproveitou também! E de que maneira! Apesar de ficar escondida, lá para o fundo do rio, esta é a ponte que mais alterou a fisionomia da cidade nas últimas décadas, ao proporcionar o belíssimo lençol de água onde a Alta se projecta a cada instante. Como não há bela sem senão, perdeu-se o bucolismo das margens que as antigas fotografias documentam, as árvores mais antigas do Choupal ressentiram-se do menor caudal do rio a jusante do açude e as lampreias diminuíram a montante, problema que se espera fique resolvido com a construção da nova “escada de peixes”.
A Ponte dos Casais, na estrada das Figueiras (a montante da A1), é a sétima ponte. Julgo que foi construída pouco depois da Ponte-açude e é bem menos importante do que as restantes de que tenho vindo a falar.
Em 1982, inaugurou-se o troço de auto-estrada Condeixa-Mealhada (A1), construindo-se sobre os campos do Mondego aquele imenso viaduto que passa sobre os dois tramos do rio (Rio Novo e Rio Velho) e, ainda, sobre a Vala do Norte. O trânsito Norte-Sul foi, pela primeira vez em milhares de anos, decisivamente desviado para fora da cidade.
Ficou apenas a passar por dentro da cidade o trânsito da Estrada da Beira, o qual seria definitivamente desviado em 2004, com a entrada em circulação da Ponte Europa que, entretanto, viria a ser rebaptizada com o nome de Ponte Rainha Santa Isabel. E pela primeira vez o Mondego era atravessado por uma ponte sem pilar algum assente no leito do rio.
Tinha chegado a altura de voltar a andar a pé sobre um Mondego que vira há muito desparecer a ponte do Almegue e outras pontes pedonais de madeira, ao estilo da que hoje existe na praia fluvial para cima da Portela.
A cereja sobre o bolo, a décima ponte deste inventário, surge quando, em 28/11/2006, os braços de Pedro e Inês se estendem um para o outro e dão as mãos a meio do rio, espelhando, nos vitrais de tons alegres, os reflexos coloridos do seu eterno amor.
Uma nota final: Ponte de Santa Clara, Ponte Rainha Santa Isabel, Ponte Pedro e Inês – três pontes cujo imaginário nos remete para a margem que fica em frente. Não deixa de ser curioso, quando, do lado Norte, haveria dezenas de nomes igualmente ilustres que poderiam ter sido evocados. Coincidência? Tendência para olhar para "a galinha do vizinho"? Querer ver mais longe? Ou, simplesmente, como diz a canção dos Jafumega, «a ponte é uma passagem para a outra margem»?
Uma nota final: Ponte de Santa Clara, Ponte Rainha Santa Isabel, Ponte Pedro e Inês – três pontes cujo imaginário nos remete para a margem que fica em frente. Não deixa de ser curioso, quando, do lado Norte, haveria dezenas de nomes igualmente ilustres que poderiam ter sido evocados. Coincidência? Tendência para olhar para "a galinha do vizinho"? Querer ver mais longe? Ou, simplesmente, como diz a canção dos Jafumega, «a ponte é uma passagem para a outra margem»?
Zé Veloso
Belo texto! Um trabalho que contribui para um melhor conhecimento da história da travessia do Mondego pelas populações locais. Ainda bem que existem registos e desenhos das primeiras pontes, que nos permitem ver a evolução na sua construção, a que o assoreamento do rio não tem sido alheio. Uma dezena de pontes, um número expressivo num rio português, que muito têm contribuído para o desenvolvimento da região.
ResponderEliminarObrigada pela partilha!
Meu caro Zé Veloso
ResponderEliminarPara motivar os teus muitos seguidores que provocas com (?) da ponte romana, há uma interessante”Noticia sobre o encanamento do rio Mondego-Doutor Agostinho José Pinto de Almeida (15-04-1822)”,conimbricense ilustre que dirigiu essa tarefa, onde especula e procura fundamentar, com extenso raciocínio, “a tradição” das três pontes sob a construída pelo nosso rei D.Afonso Henriques, concluindo:”Eis aqui a meu ver explicada a tradição das 3 pontes sobre o Mondego umas sobre as outras, que vem a ser a primitiva ponte do tempo do Senhor D. Afonso Henriques, ……a reedificação de parte da ponte no tempo do Senhor D. Manuel, como consta da inscrição de 1513, e o pequeno acrescente junto do convento velho de Santa Clara posterior a 1587;”
Haverá, entre os teus leitores, gente com conhecimentos mais atuais, novas fontes de informação e que pode ajudar.
O meu abraço
Caro Ricardo,
ResponderEliminarA "tradição" das 3 pontes sobrepostas foi desmontada por Borges de Figueiredo num trabalho a que ainda não tive acesso, baseando-se na altura que as pontes teriam e no alteamento que o leito do rio teve ao longo dos séculos. Mas é facto que algumas terão sido construídas sobre as fundações das anteriores.
Quanto à ponte romana não há desenhos dela mas ela é descrita num tal "Itinerário de Antonino"
Antes da ponte romana é que haverá dúvidas, e daí o meu (?). Teria havido uma ponte anterior à romana, de madeira? Li em tempos qualquer coisa sobre essa hipótese mas não consegui recuperar essa informação.
Obrigado pelos teus comentários, sempre tão oportunos.
Um abraço,
Zé Veloso
Olá! Andava na net a ver se sabia se os comboios já circulam novamente até dentro da cidade de Coimbra e encontrei este seu texto. Eu vivo, a maior parte do tempo, na Figueira da Foz e amanhã tenho de ir a Coimbra. Vou de comboio pois vendi o meu carro. Nunca tinha feito a conta ao número de pontes que Coimbra tem!! Se me perguntassem diria um número inferior! Bom Domingo!
ResponderEliminarCaro Veloso
ResponderEliminarUm interessante apontamento In Escriptos Diversos-Augusto Filippe Simões-Coimbra-1888, sobre a chamada Ponte de Ferro que ainda conhecemos, onde se pescavam as laranjas, quando das invernosas cheias:
Dispendeu-se com a obra o seguinte:
Demolição da ponte velha, remoção dos materiais, ponte de serviço, etc…2:925$700
Expropriações de casas em Santa Clara……………………………………………………..1:230$000
Construção da avenida para Santa Clara…………………………………………………… 6:103$865
Obra de ferro assente……………………………………………………………………………….53:149$770
Pintura…………………………………………………………………………………………………………1:159$450
Obra de pedra e de madeira……………………………………………………………………….37:161$910
Custo total………………………………………………………………………………………………….101:730$695
Ainda”foi a nova ponte experimentada por uma comissão constituída por……………….
Carregou-se a ponte com saccoc de areia, cujo peso era de 2300 kilogrammas por cada metro corrente, e verificou-se , por meio dos instrumentos apropriados, que a máxima flexa de cada tramo não passava de 1/2000 do sedu comprimenrto; sendo de 16 millimetros no primeiro e de 20,25 no segundo tramo.
Também faz curta referência “ao que se dizia sobre as duas pontes” asa romanas.
Abraço
Caro Ricardo,
ResponderEliminarVieste mesmo a tempo!
Como terás oportunidade de ler,esta preciosa informação será utilizada já na próxima crónica.
Um abraço,
Zé Veloso
Boa tarde.
EliminarÉ pá depois de ler alguns dos teus textos (desculpa estar a tratar-te por tu)que aqui publicaste, ou conforme os fui lendo, devo confessar e não sinto vergonha de o dizer fiquei com lágrimas nos olhos...que saudades...
Como a nossa cidade era e como ela está...mas apesar de tudo não troco Coimbra por nenhuma outra cidade. A Coimbra da minha juventude era completamente diferente para melhor...para muito melhor.
Um abraço
Jorge Queiroz
Obrigado, Jorge Queiroz, pelo teu comentário.
EliminarZé Veloso
Boa noite, Zé Veloso
ResponderEliminarMais uma pequena nota, para juntar à história das pontes" ...Tendo a dita cheia de 902 descavado a areia junto d'alguns pegões da ponte, ficaram a descoberto no verão os restos da antiga (a do Ó), onde aquelles assentam"
In-Estudantes de Coimbra-B.M.Costa e Silva-1903, pag.360
Obrigado, Ricardo.
EliminarMais uma confirmação daquilo que outros livros contam.
Um abraço, Zé Veloso
Excelente e muito interessante trabalho ... mas ... só que falta uma ... portanto tomo a liberdade de acrescentar à sua dezena de pontes mais uma !!!!
ResponderEliminarA Ponte Pedonal do Modesto (típica ponte de madeira) que após a Primavera permitia encurtar o caminho a jusante da Ponte de Santa Clara para o outro lado .- Almegue
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Obrigado pelo comentário, a recordar a Ponte Pedonal do Modesto. Porém, julgo que, à data da elaboração do post, tal ponte não existia já, uma vez que, ao construir-se a ponte-açude, o lago artificial "enguliu" a Ponte do Modesto.
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