26 junho 2010

FOGUEIRAS DE S. JOÃO

Celebrou-se na noite passada o S. João no Porto, com o povo na rua, alho-porro, erva-cidreira, martelinhos, algazarra, eu sei lá que mais. De Coimbra chegam-me os ecos do costume: meia dúzia de “fogueiras”, que não chegam para ser notícia de jornal. E, no entanto…
Até meados do século passado, o S. João tinha em Coimbra uma grande tradição. Mais lógico me pareceria que se festejasse o Santo António, santo que fez os seus estudos no Convento de Santa Cruz, antes de partir para Lisboa e de ter chegado a Pádua, e que se diz que terá passado algum tempo no Mosteiro dos Olivais.

Mas não! As preferências iam para o S. João, esse santo casamenteiro a quem as raparigas confiavam a escolha de um bom marido, perito em "desencalhar" as que se sentissem desesperadas, como se deduz desta deliciosa e bem antiga quadra:
                    Ó meu rico S. João,
                    Casai-me, que bem sabeis:
                    O casar é aos catorze
                    Eu já tenho dezasseis...
S. João é um santo folião, eu diria mesmo, um santo “desencaminhador”, cujas festividades misturam ritos ligados à figura de S. João Baptista com ritos pagãos, herdados das celebrações do solstício de Verão.

Recordo-me bem do pátio da casa onde nasci, em Ançã, onde na noite de S. João se saltava por cima duma fogueira – enorme para as minhas pernas de garoto – e se dançava de roda, encadeando os braços, ao som das quadras matreiras do santo:
                    Fogueiras do S. João
                    N
o que elas vieram dar
                   
Roubaram-me o meu amor
                   
Na maior força de amar.
Mas nas fogueiras do S. João no interior da cidade de Coimbra, há muito que não havia fogueira alguma com lenha e fogo vivo. Pelos anos 40 a 60 do século passado, as fogueiras eram essencialmente arraiais onde se dançava ao ar livre, com danças marcadas por um "mandador". Quando o "mandador" folgava para molhar o bico ou tratar de outras precisões, era a altura da malta "dançar agarrado", modalidade menos espectacular para os mirones mas muito do agrado de quem estava ali para tentar a sua sorte. Célebres eram as fogueiras do Bairro de Celas, onde uma boa parte do "povo Salatina" foi realojada depois da destruição da Velha Alta. O arraial ocupava todo o largo redondo no meio do bairro, onde pontificava a imagem de S. João Evangelista, de cuja coroa saíam - como raios de Sol - os festões enfeitados que partiam em direcção ao casario circundante. Recordam-me alguns amigos que o largo era inclinado, o que não facilitava que a mole humana fizesse a roda, mas sempre desculpava alguns desequilíbrios mais afoitos aquando da "dança agarrada".

Indo mais atrás, à segunda metade do Séc. XIX, fossem elas na Alta, na Baixa ou no Calhabé, as fogueiras são-nos descritas como um conjunto de postes colocados em redor de um outro, ao centro e mais alto, ornamentados com buxos de verdura e festões, donde pendiam balões venezianos, sendo o conjunto iluminado por bicos de gás ou candeeiros de petróleo. Ali se "prantavam" os tocadores – viola, violão, guitarra, harmónio, ferrinhos, castanholas… – e um "mandador" a quem cabia marcar a coreografia das danças enquanto, no dizer de Trindade Coelho, «andava a cachopada numa roda-viva nos braços dos estudantes, e os estudantes numa roda-viva nos braços da cachopada».
As fogueiras eram a festa das tricanas. Elas é que organizavam, punham e dispunham. Elas eram as rainhas da festa e, lá mais pelos calores adentro, eram também a causa das zaragatas em que fatalmente as fogueiras haveriam de terminar, por mor das arremetidas dos estudantes, dos risinhos folgados das tricanas e da ciumeira dos futricas.
As letras das músicas que se cantavam e dançavam chegaram até nós em livros da época, aparecem em alguns fados de Coimbra e a sua compilação foi recentemente editada pela C.M.C. [1]. À primeira vista, parecem ser quadras soltas, sem qualquer ligação entre si. Mas, se repararmos melhor, notaremos que elas retratam as tensões existentes no triângulo amoroso "estudantes – tricanas – futricas". E, com um pouco de fantasia, poderemos até agarrar numas quantas, reordená-las e imaginá-las como fazendo parte de uma desgarrada – um "Vira de Coimbra"? – em que as três partes se iam mutuamente provocando.
Por exemplo, a conhecida quadra
                    O amor do estudante
                    Não dura mais que uma hora
                    Toca o sino, vai prà aula
                    Vêm as férias, vai-se embora...
... é, claramente, uma provocação ou um aviso de um futrica para uma tricana. Perante o desafio, responde a tricana, com soberba:
                    O meu amor é estudante
                   
Estudante de Latim
                   
Se ele se chegar a formar
                   
Ninguém tenha dó de mim...
... ainda que não deixe de confessar quanto o amor do estudante a traz cativa e a faz sofrer:
                    Amor como o de estudante
                    N
ão há outro não há não
                    L
eva toda a nossa vida
                    R
ouba o nosso coração.
E, quando o estudante se procura justificar perante a cidade,
                    Ó cidade de Coimbra
                    A
rrasada sejas tu
                    C
om beijinhos e abraços
                    N
ão te quero mal nenhum...
... logo um futrica, despeitado, contra-ataca e deita uma acha mais para a fogueira:
                    As tricanas todo o ano
                    V
ão plantar os seus amores
                    L
á no jardim do engano:
                    N
o coração dos doutores.
A batalha aquece. O verniz está quase a estalar. Mas o estudante não desarma e vira-se para a tricana com voz insinuante:
                    Eu vim a Coimbra ao estudo
                    C
om tenções de me formar
                    A
penas vi os teus olhos
                    N
unca mais pude estudar...
... e quando a tricana se solta, ardente e graciosa,
                    Ó amor dá-me os teus braços
                    Q
ue eu dou-te o meu coração
                    A
ndo louca por abraços
                    F
ogueiras de S. João...
... a desordem está armada. Sai murro seco entre os homens, enquanto o mulherio acode pelos de fora e se delicia com o espectáculo.

E ia-se depois até à Fonte do Castanheiro, hoje completamente ao abandono, no arrabalde da Arregaça. Era lá que todas as fogueiras se juntavam no final da folia. E ninguém mais se deitava antes que o sol raiasse, fazendo jus à expressão “noite de S. João”. Nas "Memórias do Mata Carochas", conta-se que, «ali chegados, todos faziam libações e abluções e os rapazes arrancavam canas bravas, davam-nas às raparigas e voltava-se no mesmo entusiasmo, em procissão da Cana Verde».
Dizia a tradição que, naquela noite, as águas da Fonte do Castanheiro eram abençoadas, tal como os orvalhos e ervas várias, possuindo virtudes e poderes mágicos. Mas havia que aproveitar bem a noite... já que as virtudes daquela água só duravam até ao raiar do Sol. E que virtudes, Deus meu! Escreve Octaviano Sá que aquela era a «água milagrosa, que traz noivo às raparigas»!
                    Lembras-te ainda, Maria
                    D
a noite de S. João?
                    T
u contavas as estrelas
                    E
u as areias do chão.
Zé Veloso
PS1: Esta crónica foi publicada inicialmente em 26 Jun 2010, tendo sido revista e acrescentada em 26 Jun 2011.
PS2: No primeiro Comentário a este post registei alguma informação adicional sobre as quadras utilizadas.
[1]:  Fogueiras de S. João, o que elas vieram dar..., um estudo etnomusicológico das fogueiras de Coimbra, de Avelino Rodrigues Correia. Coimbra, Câmara Municipal, 2007. Orig. tese mestr. em Ciências Musicais, Fac. de Letras da U.C. 2003.

13 junho 2010

O CARROSSEL - MAIS UMA CORRIDA! MAIS UMA VIAGEM!

    Andava eu no D. João III e vivia na Cumeada, na "casa verde", que ainda hoje lá está, igualzinha, e que nem sequer mudou de cor. À noite pouco havia que fazer e, diga-se em abono da verdade, as trupes que por ali vadiavam não nos permitiam ir muito além do Madeira, café de bilhares onde se deixavam umas coroas a jogar à pool, enquanto o João Villaret e o Dr. Raul Machado nos ensinavam a bem dizer e escrever a língua portuguesa, numa televisão – ainda a preto e branco – que não era suposto fazer parte do recheio de uma casa de família.
    Mas depois da Queima as coisas mudavam. Iam-se as trupes, vinha o picadeiro na Afonso Henriques, num vaivém constante entre Marrocos – que, no dizer da malta, "era para ali" – e o outro extremo da avenida. E vinha o Espírito Santo, arraial herdeiro de tradições centenárias que todos os anos assentava praça junto à Igreja de Santo António dos Olivais.
    O arraial não tinha muita coisa. Visto à distância de umas décadas, era até pequeno. Mas respirava vida e agitação, e sentia-se o seu pulsar mal os ecos dos altifalantes nos chegavam aos ouvidos, ainda íamos nós no campo do Olivais.
    Logo à entrada estava o carrossel, que mais parecia uma enorme saia ondulante de cigana rodando sempre, sempre, sem parar, ora subindo ora descendo, até entontecer de vez. Girafas, cavalos, zebras e burros, disciplinadamente lado a lado, alinhados por alturas, levavam as fantasias da rapaziada serra acima serra abaixo, enquanto os mais afoitos erguiam um punho de raiva no alto do monte mais alto para socar uma bola de futebol que rapidamente subia ao céu. E quando soava um apito de árbitro, como no final dos jogos, havia sempre mais três voltas de graça para gáudio da populaça, enquanto o gerente puxava do microfone e berrava para os clientes na bicha da entrada: – Mais uma corrida! Mais uma viagem!
    E a malta lá ia encher a barriga para outro lado, mas não havia muito mais para onde ir: barracas de tiro de miras vesgas (Ó cavalheiro, vai um tirinho?), tômbolas que davam tachos de alumínio, furgonetas que vendiam bolacha americana e malaqueco, farturas e manjar branco. Feirantes de banha-da-cobra, um fotógrafo "à-la-minuta" com cenários de buraco para enfiar a cabeça, uma banca com garrafas de Porto para ver quem enfia a argola no gargalo e, para remate da noite, uns carrinhos de choque tão manhosos, que a maior festa era ver os moços de estoque a desembaraçar as molhadas de carros que se engalfinhavam na pista, como uma matilha de cães cheirando o cio de uma cadela vadia.
    Ah, havia mais! Esqueci duas fiadas de tendas onde se vendiam bugigangas de toda a sorte, desde que fossem de madeira, barro ou lata, pois que à época o brinquedo de plástico ensaiava os primeiros passos e, quando muito, dizia-se que era "de celulóide". Mas fosse o que fosse que vendessem, sempre havia uma fila interminável de Zés-povinhos, também eles alinhados por alturas, como na tropa, disparando manguitos em formatura, qual exército malcriado apresentando armas a um general de costas.
    Mas o Espírito Santo também se modernizou. Veio um poço da morte que roncava como um trovão. Cá fora, os filhos do artista exibiam a masculinidade em tronco nu e as motas destilavam a arrogância dos seus escapes abertos. Lá dentro, o verdadeiro artista nacional, um pai de família calvo e de bigodes farfalhudos, desafiava a gravidade rodopiando com a filha aos ombros, sem mãos e de olhos vendados, dentes cerrados sobre um galhardete da Académica e uma bandeirinha verde-rubra.
    Mas veio mais! Veio um carrossel novo que se "prantou" ao pé do outro, fazendo-lhe negaças. Era rápido, tinha luzes no tecto e a pista fazia um oito de meter medo. Passava-se por baixo numa descida de vertigem que nem tempo deixava para fixar a fugaz imagem de uns socquettes brancos, mal adivinhados no tropel que corria pelo andar de cima. Mais ainda! Tinha várias bolas de futebol, o que dava para libertar muito mais adrenalina, coisa importante em época de exames.
    É claro que a malta se mudou de clube e o velho carrossel ali ficou, para avós e netas e mais para criadinhas de servir ainda amedrontadas com tanta zonzaria. E enquanto a malta corria já a sete no carrossel em oito, o gerente do carrossel despromovido desesperava para um microfone envolto num lenço de tabaqueira: – Mais uma corrida! Mais uma viagem!
    O arraial do Espírito Santo, que eu e muitos outros conhecemos, acabou já. Nem o carrossel novo o salvou. Foi perdendo velocidade ao longo dos anos até cair no fundo da sua atracção mais arrojada, o poço da morte. Pelas notícias que me chegam, o que hoje existe em seu nome já não é a mesma coisa.
    É a vida! As coisas nascem, crescem e morrem, tal como as pessoas. Mas continuam vivendo se as mantivermos vivas na nossa memória. Vamos lá, malta: – Mais uma corrida! Mais uma viagem!

    Zé Veloso



03 junho 2010

RECORDAÇÕES DO PENEDO

    Coimbra, 19 de Julho de 1955 – Os cruzados à vista do Santo Sepulcro não deviam sentir emoção maior do que um magote de garotos da aldeia, que vieram fazer exame, ao descobrirem há pouco do Penedo da Saudade o relvado do campo de futebol, no Estádio Municipal. Só faltou ajoelharem-se dentro do eléctrico.
    Para se entender o texto acima, retirado do Diário VII de Miguel Torga, é preciso estar familiarizado quer com a geografia da cidade de Coimbra quer com o sistema de ensino que imperava àquela data. Nos anos 50, a entrada para o 1º ano dos liceus (hoje 5ª classe) era antecedida de um exame de admissão, que trazia a Coimbra miudagem das aldeias que, nalguns casos, era a primeira vez que andavam de eléctrico, subindo da baixa no 3 e passando no Penedo da Saudade a caminho do Liceu D. João III (hoje Liceu José falcão).
    Foi este mesmo trajecto que resolvi fazer um dia destes, numa romagem a Coimbra. Apontei da Praça da República até aos Arcos do Jardim e segui, a partir daí, o trajecto do antigo 3, Cumeada acima. Ao chegar ao Penedo, parei o carro na meia laranja onde o 3 se quedava uns minutos à espera de se cruzar com o outro 3 que haveria de vir dos Olivais, ao seu encontro. Terá sido algumas dezenas de metros à frente daquele local que os garotos quase ajoelhavam no eléctrico à vista do campo da bola.
    Foi também dali, e não longe da data inscrita no Diário do Torga, que vi o meu primeiro jogo da Académica, encarrapitado no muro que ladeia a rua, o que seria impossível nos dias de hoje, quer pela vegetação que entretanto cresceu quer porque a cobertura das bancadas cortou as vistas aos borlistas.
    Visto de cima, o relvado do Calhabé parecia uma mesa de matraquilhos onde o movimento de uma bola invisível era adivinhado pela movimentação dos jogadores. O entusiasmo dos golos fazia chegar até nós um bruá tremendo, cujo atraso era bem a prova de que o som caminha ao pé-coxinho enquanto a imagem viaja de avião.
    Jogava a Académica contra o Benfica e este haveria de ganhar por uma batelada de 7-3, que me ficou marcada a ferros na memória até aos dias de hoje. Sei agora que foi na época de 1954-55, graças à obra enciclopédica ACADÉMICA – HISTÓRIA DO FUTEBOL (olá João Santana! Obrigado João Mesquita, estejas tu onde estiveres…), época em que o guarda-redes da Briosa era o Ramin, herói dos jogos contra o Sporting mas que me fez chorar de raiva contra o Benfica.
    Mas o tempo passa. O Calhabé já não é mais fora de portas, como o era em 55, e como mais ainda o era no Séc. XVIII, quando ali havia uma taberna famosa ligada à boémia coimbrã, onde um taberneiro chamado Calhabé, cujo nome se estendeu depois ao sítio, vendia o peixe frito e o vinho que animavam as fogueiras de S. João no arrabalde de S. José, juntando estudantes, futricas e tricanas numa noite que só acabava com o raiar do dia.
    Também o tempo do Penedo já se transformou. Dizem que se chama “da Saudade” porque uma lenda conta que D. Pedro ali ia chorar a morte da sua Inês. Seria então um sítio ermo, um local de paz e de silêncio…
    A vista ainda hoje é bonita mas todo o vale é agora de betão. Perdeu-se o bucolismo da paisagem. E é só quando me volto para Sul e estendo os olhos na direcção da Ponte Rainha Santa Isabel, que revivo o cheiro daquele ambiente calmo, onde o olhar se demorava e os namorados se esqueciam do tempo.
    O Penedo da Saudade continua a ser um ícone da cidade e uma recordação de quantos nela estudaram. A prová-lo está a profusão de placas de antigos cursos que ali continuam a fazer as suas romagens, placas essas que, aliás, me parecem de gosto duvidoso, emprestando ao local um certo ar de “cemitério de recordações”.
    Já as antigas lápides, com versos líricos de antanho, me parecem bem enquadradas. Um grupo no Facebook, animado por gente nova, chama a atenção para a necessidade do seu restauro, para que os poemas se possam ler. É sinal de que o Penedo da Saudade continua vivo. E a intervenção, se bem pensada e bem executada, poderá ser positiva. Mas fico dividido. Pessoalmente, gosto mais que as marcas do passado aparentem a idade dos acontecimentos que evocam. Saber envelhecer é uma virtude.
    Zé Veloso

17 maio 2010

AS (VERDADEIRAS) ORIGENS DA QUEIMA

    Terminada que está a Queima das Fitas deste ano, chegou a altura de responder ao repto lançado no último post: – Quais são, afinal, as origens da Queima? Estarão tais origens no Centenário da Sebenta, como é afirmado nos sites oficiais da Academia de Coimbra? Eu penso que não.
    Antes de mais, o Centenário da Sebenta ocorreu em 1899. Ora, António José Soares diz ter encontrado em 1900 referências à "antiga queima" e Alfredo de Pratt conta-nos, em 1899, como se queimavam as fitas e como eram as demais festividades, fazendo-o de forma que permite supor que já nessa época havia uma tradição.
    Voltando ao Centenário da Sebenta, evento bombástico que decorreu de 28 a 30 de Abril de 1899, as celebrações meteram Zés-Pereiras e muita algazarra, os caloiros foram emancipados, houve sarau e cortejos monumentais envolvendo cerca de 30 carros que desceram da Porta Férrea até à Baixa e 30 barcos que desfilaram no "Basófias". As semelhanças com a Queima são evidentes, nomeadamente no que toca ao cortejo e à emancipação dos caloiros, mas são também ilusórias, porque as festividades não coincidem no essencial, como adiante se mostra.
    Quanto ao queimar das fitas, ele fazia parte dos festejos levados a cabo pelos quartanistas no dia do ponto, o último dia de aulas, o qual acontecia, por via de regra, depois de 12 de Maio. Já o Centenário da Sebenta foi outra coisa: não se destinou a festejar o final do ano lectivo, não se queimaram as fitas, aconteceu antes do dia do ponto e foi organizado por uma comissão que integrava alunos de vários anos, enquanto a Queima sempre foi organizada pelos quartanistas (até ao interregno de 1969).
    Esta questão das festas da Queima terem sido, décadas a fio, organizadas pelos quartanistas, ou seja, por aqueles que só daí a um ano viriam a deixar Coimbra, é de facto intrigante. Mas por que razão não eram as festas organizadas pelos alunos finalistas, como em todo o lado?
    Calma, que para o entenderem tenho primeiro de explicar os quês e os porquês do que se queimava.
    As fitas que se queimavam eram umas fitas estreitas de algodão, da cor de cada faculdade, que serviam para atar as pastas em que se guardavam as sebentas. Eram queimadas pelos quartanistas com grande cerimonial, no dia do ponto. Como esse dia não era o mesmo para todas as faculdades, cada curso queimava as fitas em separado. Mas note-se que os escritos dessa época apenas referem os quartanistas de Direito e de Medicina, os cursos de maior tradição na nossa Universidade, ainda que isso possa doer aos meus colegas engenheiros.
    Uma vez queimadas as fitas no Largo da Feira, frente à Sé Nova, como hoje ainda o são, havia que dar um destino às cinzas. Os quartanistas de Medicina de 1903 não se deram a esse trabalho, pois ataram as fitas a um balão e fizeram-nas subir no ar enquanto ardiam. Outros as lançaram ao vento do alto da torre da Universidade. Mas o destino mais antigo consistia em trazê-las em procissão dentro de uma lata até à Porta Férrea e aí as enterrar numa cova aberta por um caloiro no chão térreo, posto o que todo o curso lhes urinava em cima a um só tempo.
    Estranho costume este que só durou até o chão ter sido calcetado, e que nem vejo como poderia manter-se nos dias de hoje. O pudor não me deixa imaginar as nossas quartanistas greladas de perna aberta em tais preparos; e grande teria de ser a cova, para conter o líquido orgânico de tanta gente, num cortejo onde a cerveja é de borla. Mas se o costume desapareceu, ficaram os seus vestígios: ainda há não muito tempo as fitas – fita estreita ou grelo – se queimavam num penico; e pelos anos 40 ainda havia o costume de levar um desses vasos no interior do carro da Queima e, ali mesmo, se tratar do rescaldo das cinzas.
    É altura de falarmos nas chamadas "pastas de luxo", pastas de acabamentos de veludo e monogramas de prata, que de tão estreitas para nada serviam, mas que tinham umas fitas largas, imponentes e lustrosas como as fitas largas de hoje. Eram oferecidas aos quartanistas pelos padrinhos ou pelas noivas e, naturalmente, não serviam para transportar nada, muito menos sebentas. Mas também não era preciso, porque diz a tradição que depois do 4º ano nunca se chumbava.
    E começa aqui a fechar-se o ciclo do significado e das origens da Queima: o último exame a sério era, na prática, o do final do 4º ano, aquele que dava direito à obtenção do grau de bacharel. Todo o esforço era feito até aí e, por isso mesmo, os correspondentes festejos, como se do fim do curso se tratasse – e para alguns assim era, já que o grau de bacharel permitia (como hoje volta a permitir) saídas profissionais.
    Mas, mesmo para os que ficavam, as velhas pastas com fitinhas para amarrar as sebentas já não tinham préstimo daí para a frente. Havia, sim, que urinar-lhes em cima, escarnecer dessas “fitas operárias” que eram lixo e substituí-las. Ao bacharel, o que importava não era mais estudar – pois que o último ano seriam favas contadas – mas sim afirmar o seu grau de forma que bem se visse, dizer ao país que estava ali uma sumidade, com direito a um lugar ao sol. Para isso ele precisava de outras fitas, bem largas, que pudesse ostentar com um ar potencialmente próspero. Eram (são) as fitas largas.
    Para os que continuassem em Coimbra, até à licenciatura, teriam um ano para as exibir. Para os que saíssem de Coimbra com o grau de bacharel, já poderiam afirmar lá na terra, como era costume dizer-se nos finais do Séc. XIX, que "tinham urinado à Porta Férrea".
    Zé Veloso

Foto a preto e branco : No largo da Feira, tendo por pano de fundo o edifício do Governo Civil, as fitas sobem ao céu levadas por um balão.

04 maio 2010

O SEGREDO DA QUEIMA DAS FITAS

    Às zero horas da próxima sexta-feira, ouvidas que forem as doze badaladas na torre da Universidade, arrancará a serenata monumental! Vem aí a Queima! Vai ser um regabofe!
    Os caloiros emancipar-se-ão; os semi-putos passarão a putos; os putos a quartanistas (ou candieiros); os grelados queimarão o grelo e soltarão as fitas; os antigos fitados porão cartola; os que já não põem nada terão à espera o posto de veteranos e passarão a guardiões do templo. Há cargos para todos, promoções em barda, toda a gente festeja! É este o segredo da Queima.
    Não admira que um jogo destes, em que todos ganham e as medalhas não se esgotam, tenha ressurgido com tanta força depois de uma década de interregno (1969/80) e se tenha espalhado, como rastilho de pólvora, a outras universidades.
    É claro que a dimensão dos festejos de hoje é outra. E nem assim poderia deixar de ser, numa Universidade que cresceu em exponencial, numa sociedade de maior abastança e numa época em que o lazer se profissionalizou.
    Hoje a Queima tem registo comercial, IVA, contratos milionários, e até um recinto próprio para as "noites do Parque" – o Queimódromo. Transformou-se numa máquina de produzir e comercializar inventos, oleada de ano para ano. Longe vai o tempo em que o parco lucro era oferecido a instituições de beneficência e os prejuízos se cobriam com um baile extra a realizar no Mi-carême do ano seguinte.
    Mas se tudo se tem vindo a transformar em comércio e multi-média, porque haveria a Queima de ser diferente? Nos anos 50 e 60 o cartaz da Queima, bem como o selo (que se colava no interior da pasta da praxe) eram distintivos importantes. Sinal dos tempos é eu ter penado dias na internet à procura do dito “cartaz da queima”, enquanto o motor de busca me devolvia sistematicamente, de link para link, o cartaz dos espectáculos no Queimódromo. Aqui ficam os dois para comparação: o do show buzines e o das actividades tradicionais (utilizando a terminologia da Organização), referindo-se ambos ao período de 7 a 14 de Maio.
    Só que, tal como nas grandes cidades, hoje temos não apenas a Queima propriamente dita mas também aquilo que me apetece apelidar de Grande Queima, período que chega quase aos dois meses e que abarca uma série de inventos desportivos, lúdicos, culturais, radicais e tudo o mais de que a malta se lembre para fazer esquecer que os exames estão à porta e que a vida são dois dias e que o pouco que de cá se leva é o muito que por cá se goza.
    Ah, grande Queima! Que saudades!!!...
    … apesar de no meu tempo ser tudo muito mais modesto: serenata na noite de quinta para sexta, sarau na sexta, baile de gala no sábado, garraiada no domingo, venda da pasta e verbena na segunda, queima do grelo e cortejo na terça, chá dançante na quarta... e ala que se faz tarde e os exames estão à porta!
    Naquele tempo nunca questionei o porquê destes festejos. Não era preciso. Eles estavam-me na massa do sangue e o que é endémico não se questiona. Mas hoje, ou porque a cidade deixou de ser eminentemente estudantil ou porque as praxes académicas soam um tanto a falso quando replicadas fora do seu contexto natural, muita gente procura o porquê e a origem destas tradições. E as respostas aparecem, seja em livros, seja em sites, seja até num simples blogue…
    Acontece, porém, que o autor deste blogue não tem sobre as origens da Queima uma opinião coincidente com a estória que é contada nos sites oficiais da academia, estória que constava já dos textos introdutórios ao Código da Praxe de 1993 e que, de tanto repetida, tenderá a converter-se da verdade oficial.
    Aí se diz que as origens da Queima estão no Centenário da Sebenta, opinião com a qual eu não concordo de todo.
    Mas isso fica para depois dos festejos, altura em que vos contarei sobre as origens da Queima uma outra estória, que me parece estar bem mais de acordo com História.
    Zé Veloso

22 abril 2010

ESTUDANTES CONTRA FUTRICAS. UMA ESTÓRIA DE ÍNDIOS E COWBOYS?

Os comentários de Ricardo Figueiredo aqui no blogue têm-nos trazido vivências da velha Alta desaparecida e referências aos seus antigos habitantes autóctones, os Salatinas, os quais ele nos conta que mantinham com os estudantes uma boa relação. Foi para mim uma surpresa a existência de Salatinas, Chibatas e outros mais, já que na bibliografia dominante – escrita por antigos estudantes – não se fazem distinções entre os futricas, sendo todos eles apresentados por igual como inimigos figadais dos estudantes.
Mas é curioso, e confirma os comentários de Ricardo Figueiredo, que as grandes zaragatas entre estudantes e futricas são quase sempre descritas na Baixa, não acontecendo o mesmo na Alta, salvo as costumadas escaramuças que havia no rescaldo das fogueiras, quando os calores da dança incendiavam ciúmes e o verniz estalava entre uns e outros.
Mas o relacionamento conflituoso entre estudantes e futricas é uma estória cabeluda, como as guerras entre índios e cowboys. Uma estória em que uns (os índios, ou melhor, os futricas) habitavam um território que outros (os cowboys, ou melhor, os estudantes) viriam um dia a ocupar. Afinal, uma estória que, na origem, é semelhante a tantas outras de que a História está cheia, uma espécie de conflito étnico, a provar quão difícil é a co-existência pacífica entre ocupantes e ocupados, entre dominadores e dominados, tanto nos tempos idos como nos dias de hoje.
Voltando aos índios e cowboys, as estórias aos quadrinhos do meu tempo de garoto sempre me mostraram um intrépido branco – Bufallo Bill, Davy Crockett…– que, invariavelmente, se batia contra um bando de pérfidos peles vermelhas, liderados por um qualquer Boi Sentado. Posta desta maneira, a estória era sempre fácil de entender: de um lado os bons, do outro lado os maus.
Lembro-me de que um dia, eram os meus miúdos pequenos, me chamaram a correr ao televisor, numa manhã de domingo:
– Pai! Não estamos a entender nada desta fita. Quem são os bons?
– Depende do ponto de vista, meus filhos, as coisas nem sempre são assim tão simples. Tenho de vos contar a história do princípio...
Pois é. Estavam os habitantes de Coimbra postos em sossego, qual D. Inês no remanso dos seus doces fruitos, quando D. Diniz lhes resolveu mandar de presente uma horda desordeira que já em Lisboa se tinha distinguido por brigar com os habitantes do burgo. E, não contente com isso, toma os estudantes debaixo da régia protecção, manda que nenhum morador de Coimbra lhes faça agravo, determina que não possam ser julgados pelo foro comum nem ficar presos na cadeia onde os demais habitantes são encarcerados, ordena que uma comissão paritária avalie da justeza das rendas a cobrar pelo aluguer dos aposentos... e mais uma catrefa de regalias que me dispenso de enumerar. Ao invés, não consta que tenha dado, aos então habitantes da cidade, direitos simétricos que os defendessem dos eventuais abusos dos estudantes.
Se a tudo isto juntarmos os desmandos próprios da juventude em bando, fora de casa, os calotes por pagar em épocas de mesada curta ou de noitada longa, a boa vida de alguns que se podiam dar ao luxo de chumbar numa cadeira para ter um ano a mais de pândega e a jactância de quem se prepara para vir a ser a inteligência do reino, teremos o quadro quase pintado.
E digo quase, porque faltam ainda duas pinceladas. Antes de mais, o desprezo com que o estudante, alcandorado na Alta da cidade, tratava o povo que habitava a Baixa, chamando-lhe futrica, palavra que fede a metros de distância e que se admite que derive de fitricafilho de tricana – que o mesmo seria dizer "filho da mãe"…
E, por último – cherchez la femme! –, contam os livros que as tricanas, para além de se permitirem certas liberdades com os estudantes, sempre torciam pelos de fora, aquando dos arraiais de pancadaria com os da casa!
Torceriam? Provavelmente sim, já que é histórica e compreensível a atracção da mulher de Coimbra pela estudantagem jovem, irreverente, bem-falante e galanteadora, passaporte-quimera para uma vida melhor. Mas haverá que dar algum desconto, porque as crónicas da época foram escritas por quem sabia escrever, ou seja, pelos os ocupantes.
O conflito durou séculos. Continuava vivo no séc. XIX, altura em que, como muito bem retrata Eça de Queiroz no Conde de Abranhos, futricas e estudantes eram duas classes imiscíveis.
Mas chegou um belo dia o séc. XX e, com ele, o futebol. E o conflito encontrou um outro tabuleiro onde dissipar as suas tensões. A pancadaria mudou-se então das tabernas e ruelas da Baixa para o peão da Arregaça e a bancada do Santa Cruz, alimentando uma rivalidade Académica - União que durou até aos anos 70. E a ciumeira deixou de ser exclusiva da sorte aos amores para passar a abarcar também a sorte ao jogo.
Depois de um quadro destes, custa-me explicar de que lado estariam os bons e os maus neste conflito, como aliás em muitos outros que grassam por esse mundo fora. Dependerá sempre do ponto de vista. Como diria o outro: – É a vida...
Zé Veloso

07 abril 2010

TRICANAS, XAILES E CAPAS. TRANSFORMA-SE O AMADOR NA COUSA AMADA…

Tendo ainda nos olhos e na boca o gosto das amêndoas da Páscoa, faço o gosto à escrita voltando hoje a evocar as tricanas, as tais que os estudantes de antanho diziam ser – tal como as amêndoas – doces, bonitas e sempre bem apresentadas.
Trindade Coelho, que cursou Direito entre 1880 e 1885, dizia que tinham “uma cara quase sempre bonita, e espirrando sempre vivacidade; e naqueles braços, naquelas pernas, naquele busto, quando gesticulam, quando marcham, quando estão paradas, qualquer coisa que deve ser a própria graça, como só os artistas apreciam."

Pela descrição se vê que, para os estudantes de In Illo Tempore, as tricanas eram a perfeição absoluta. E sê-lo-iam, com certeza, mas algum desconto teremos de dar. As tricanas eram um bem escasso, sem concorrência à vista, numa cidade onde a população juvenil masculina, vinda de todos os lugares do reino, viveu durante séculos na Alta num regime de quase internato. E acresce que os livros que nos relatam a Coimbra académica de outros tempos são livros de memórias de antigos estudantes, escritos já no declinar da vida, quando se esquece o mal e do bem ficam as saudades.
Mas voltemos ao In Illo Tempore de Trindade Coelho e vejamos o retrato que ele fez do traje das tricanas, retrato que julgo tenha inspirado aquelas figurinhas de barro – com o estudante de guitarra na mão e a tricana de perna cruzada a seu lado – que se vendiam na feira do Espírito Santo aos Olivais:
"Como andam sempre muito afinadinhas, desde os pés à cabeça...vão-se os olhos a olhar para elas e fica a gente a dizer consigo que nunca viu mulheres assim... Sua chinelinha de biqueira, em que só lhes cabe metade do pé; sua meia branca, ou às riscas, muito esticada; saia de chita, das cores mais claras, deixando ver os tornozelos e acima dos tornozelos duas polegadas de perna; aquele aventalinho muito pequenino, que é mais um chique que outra coisa; o chambre de chita clara, aberto no peito em decote quadrado; e então o xaile de barras, ou a capoteira, passando por baixo do braço direito e lançando (com elegância que se não descreve, mas que os estudantes copiaram para as suas capas) por cima do ombro esquerdo!"
As últimas linhas desta citação levantam uma observação bem curiosa sobre uma certa forma do traçar da capa, forma que os retratos da época confirmam mas que tinha já caído em desuso no meu tempo.
Mas será que os estudantes copiaram das tricanas apenas a forma displicente do traçar da capa em momentos de descontracção? Ou terão copiado ainda mais, e ter-se-ão inspirado no franjado do xaile para começar a rasgar as suas capas? Eu vou por aí! Como dizia o poeta, "transforma-se o amador na cousa amada, por virtude do muito imaginar".
No meu tempo de Coimbra – onde as colegas tinham tomado já o lugar que antes fora das tricanas – dizia-se que cada franja da capa correspondia a uma conquista, ainda que de um fugaz beijo se tratasse. E os mais gabarolas retalhavam as desgraças capas, quais pistoleiros do Oeste enchendo de mossas as coronhas dos revólveres.
Na Coimbra universitária de hoje, onde a mulher está agora em maioria, é natural que o significado seja já outro. Tendo feito a pergunta a algumas raparigas estudantes, apurei que os rasgos podem ter significados vários, ou mesmo nenhuns, mas há um detalhe interessante, uma vez mais ligado às lides amorosas: quando se namora, faz-se um grande rasgo pela capa adentro e, se o namoro acaba, coze-se o rasgo com linha da cor da Faculdade!
Estranho costume este! Parece querer mostrar que para os males de amor sempre haverá remendo. Mas que das cicatrizes ninguém se livra…

Zé Veloso

PS: No final do primeiro quartel do Séc. XX a tricana ainda estava bem no coração dos estudantes: no dia 31 de Janeiro de 1924 houve um jogo particular Académica - Salgueiros (1-0) em que todos os jogadores da equipa da Académica – que na altura ainda não tinha emblema – se apresentaram com uma figura de tricana ao peito.

Foto ao lado: Galante

27 março 2010

TRICANAS DE COIMBRA

               Coimbra p'ra ser Coimbra
               T
rês coisas há-de contar:
               G
uitarras, tricanas lindas,
               C
apas negras a adejar.
    Esta quadra antiga, a que o ritmo vivo do Vira de Coimbra empresta uma alegria, uma juventude - e também uma nostalgia - difíceis de igualar, continua a ser uma das mais cantadas em qualquer Serenata de Coimbra, dentro ou fora das portas da cidade.
    Ela simboliza a tripeça em que sempre se apoiou a mística do estudante de Coimbra: o estudo (capas negras), a borga e a vida airada (guitarras), e os amores fugazes e ardentes da juventude (tricanas lindas). E com a particularidade de que, sendo o estudo representado pelas capas negras a adejar, aquilo que seria um fardo se transforma em bandeira ondulante da fantasia!
    Mas será que aqueles ícones ainda hoje se mantêm? Como é fácil de ver, não totalmente.
    E não é por culpa das capas negras, as quais, tendo embora deixado de ser um traje do dia-a-dia do estudante, continuam a aparecer por altura das festas académicas. Nem por causa das guitarras, as quais, ao que penso, são hoje mais populares em Coimbra do que o eram no meu tempo. Nem tão-pouco porque as tricanas tenham deixado de ser lindas. Mas simplesmente porque as tricanas já nem são lindas nem feias. Extinguiram-se, pura e simplesmente.
    Mas quem eram, afinal, as tricanas? Tricana era o nome pelo qual era conhecida, até ao início do Séc. XX, a mulher do povo na região de Coimbra, mas também em Aveiro, Ílhavo, Ovar, e até na região de Águeda. Só que a tricana de Coimbra ficou mais célebre, por causa da sua estreita ligação com a estudantada que pululava na cidade e para a qual se sentia irresistivelmente atraída.
    A primeira referência deste relacionamento encontra-se, ao que se pensa, numa peça de teatro - Eufrósina - escrita em meados do Séc. XVI, pouco depois da instalação definitiva da Universidade em Coimbra. Nesta peça, cujo autor não encarava bem os estudantes (seria ele futrica?), diz-se que estes "andavam em alcateia da cidade para o rio, gabadores e palreiros, namoriscando as moças com parolas latinas, chusma de ociosos cujo trato amoroso era todo de comer feito, como se nunca saíssem do mal cozinhado". E como se tal não bastasse, uma tricana sabida, de seu nome Vitória, lá diz a páginas tantas que os "estudantes bons mancebos são. Se não fossem tão devassos!… O pior que é: muito palreiros e gabadores do feito e por fazer... "
    Como é fácil de perceber, os estudantes de hoje, como os do meu tempo, não diferirão muito dos seus antepassados no que toca à sofreguidão do trato amoroso e à publicidade que fazem dos troféus de noitada, sejam eles reais ou virtuais. Adiante…
    Mas as tricanas, essas, evoluíram e de que maneira, não perdendo muito tempo a rechaçar os "assaltos amorudos dos estudantes”, que as atraiam “com merendas e guloseimas, … contas do pescoço, … sapatinhos que lhes poupem os pés de âmbar e cousinhas de Lisboa, tentadoras como o demo”, para desespero da futricagem.
    Digamos que também se cultivaram e requintaram, no contacto com tantos letrados bem-falantes que lançavam graças em latim, exercício fácil para quem tinha obrigatoriamente de usar a língua latina portas adentro dos Gerais, passada que fosse a, por isso mesmo, designada Via Latina.
    Abro aqui um parêntesis para lembrar que, se hoje nos queixamos de que os alunos chegam à Universidade sem saber português, em tempos idos o mesmo se dizia do latim, sendo a entrada na Universidade precedida de um exame nesta língua morta que, à época, ainda estaria meia viva.
    E a tricana que chega ao Séc. XX já pouco tem a ver com a lavradeira e lavadeira dos séculos anteriores. Ela é já fruto de cruzamentos de sangue com as sucessivas levas de estudantes que invadiram o burgo nos séculos precedentes, sendo até algumas conhecidas e tratadas por apelidos fidalgos das mais nobres casas do reino. E têm já tiques da aristocracia, como bem o demonstra o facto de uma célebre tricana, Rosa Espanhola, se ter recolhido a um convento de Braga em 1900, por vias de uma desilusão de amor com um não menos célebre estudante de Direito.
    As tricanas de Coimbra alimentaram durante séculos a fantasia e os impulsos amorosos dos estudantes que a cidade acolhia. Mas o amor do estudante pela tricana tinha a morte anunciada, com a entrada da mulher na Universidade. Era uma questão de tempo. E no meu tempo já não havia lugar para elas. O amor do estudante tinha-se transferido definitivamente das tricanas para as colegas.

14 março 2010

A MULHER E A UNIVERSIDADE. UM SÉCULO A ACELERAR

    No passado dia 1 de Março, Miguel de Sousa Tavares iniciava o seu programa “Sinais de Fogo” com uma notícia bombástica: “Nos últimos 10 anos, por cada 100 licenciados que saíram das universidades portuguesas, 65 eram mulheres, só 35 eram homens”. E adiantava que, nesse mesmo período, a percentagem de alunas inscritas no ensino superior era, em média, de 53,8% contra 46,2% de alunos do sexo masculino.
    Quem hoje assiste a um cortejo da Queima e vê a mancha ondulante de cabeleiras femininas esvoaçando por sobre as capas negras, talvez não saiba que a primeira formatura de uma mulher na Universidade de Coimbra aconteceu apenas em 1894 e que, nesse ano, ela era a única aluna a frequentar a universidade. E talvez não se dê conta da aceleração brutal que o acesso da mulher portuguesa à instrução sofreu ao longo do século passado.
    Mas antes de irmos mais fundo no retratar desta aceleração, olhemos melhor os números apresentados pelo MST. Comparando a percentagem dos alunos e alunas que terminam os seus cursos com a percentagem dos que os frequentam, conclui-se que, pelo menos na idade escolar, elas são muito mais eficazes do que eles no que toca a atingir objectivos. Os homens que se cuidem!
    Poderia pensar-se que a aceleração do acesso da mulher portuguesa ao ensino superior tivesse tido o seu ponto alto no pós 1974, mas não é assim. Tomando por referência a Universidade de Coimbra, que constitui uma amostra credível do ensino superior em Portugal, a grande aceleração dá-se entre os anos 20 e os anos 70, sendo a década de 60 a mais responsável. No início desta década havia naquela universidade 36% de alunas, enquanto em 1972 a percentagem já ultrapassava os 49%! Em números redondos, passou-se, em doze anos, de pouco mais de uma para dois para pouco menos de uma para um! Benditos anos 60, que tanta transformação trouxeram à sociedade!
    É esta embalagem dos anos 60 e, provavelmente, o clima de descompressão que se segue ao 25 de Abril, que permitem ter em 1976 uma mulher como Presidente da AAC, a maior associação académica do país.

    E antes de 60 como foi?

    Bem, nos seis primeiros séculos da universidade portuguesa – sendo que em quatro deles a universidade portuguesa e a Universidade de Coimbra eram uma e a mesma coisa – só quatro mulheres a terão frequentado e nenhuma delas terminou o curso. Eram aves raras, que apesar da protecção do reitor – e até por sugestão deste – chegavam a disfarçar-se de homem para não serem importunadas. Sabe-se que uma ficou solteira, duas foram para freiras e da quarta não ficou rasto. Fracos louros para quem se atreveu a desafiar o terreno dos homens…
    Em 1894 formou-se, finalmente, a primeira mulher: Domitilla Hormizinda Miranda de Carvalho! Formou-se em Matemática. Um ano depois formou-se em Filosofia (Ciências, se diria hoje) e, em 1904, em Medicina.
    Por esta altura já não estava sozinha na universidade, pois que no rondar do Séc. XIX para o Séc. XX existiam já cinco alunas.
    Em 1914 forma-se em Direito Regina Quintanilha, que viria a ser a primeira advogada da Península. Tal como Domitília, também ela se forma com altas classificações.
    Em 1920 é fundada a primeira residência universitária feminina. Em 1926 há já uma mulher para cada 17 homens. A partir daí é sempre a acelerar.

    Volto à nossa primeira mulher formada, Domitilla Hormizinda, para referir que cheguei a pensar que, com um nome destes, só soubesse estudar... Mentira! Para além de médica, foi poetisa e escritora, professora de matemática, reitora do primeiro liceu feminino de Lisboa e deputada à Assembleia Nacional. Afinal, uma grande mulher!
    Segundo Afonso Lopes Vieira, “uma mulher gloriosa que uma Faculdade de Medicina, violentando os preconceitos terríveis de uma escola e de um país, pretendeu unanimemente contar entre os seus membros”. Curioso é que, passado um século sobre esta afirmação, os cursos superiores na área da saúde sejam frequentados em 75% por mulheres!...
    No passado dia 8 comemorou-se, pela centésima vez, o Ano Internacional da Mulher. Que se passará nos próximos 100 anos? Quando haverá um Dia Internacional do Homem? No “Sinais de Fogo”, dizia-se também que na Suécia já há quotas a favor dos homens na entrada para a universidade. Aguardemos pela evolução das coisas em Portugal. Pelo andar da carruagem, ainda cá estarei para ver…
    Zé Veloso

07 março 2010

ÀS VOLTAS COM O LARGO DE SANSÃO

Dos vários comentários que recebi via e-mail sobre AS CHEIAS DO MONDEGO, retive um em que me era pedido para esclarecer melhor essa coisa de a Igreja da Santa Cruz se encontrar hoje ao nível da Praça 8 de Maio, enquanto num passado não muito distante se encontrava alguns degraus abaixo dela (7 ou 12 consoante as fontes consultadas).
Como é evidente, a igreja sempre esteve à cota topográfica que tem hoje. A Praça 8 de Maio – conhecida como Largo de Sansão até 1874 – é que não, tendo a sua cota variado ao longo dos tempos, consoante as conveniências urbanísticas.
Assim, em 1540 subiam-se 4 degraus para entrar na igreja. Mas o largo foi sendo alteado e, em 1796, já o largo e a igreja se encontravam ao mesmo nível. E como o Mondego continuasse a entrar impiedoso pela igreja adentro – a altura das cheias era medida já na antiguidade pelo nível que atingiam as suas águas junto ao altar-mor – quando, em 1858, a Rua Visconde da Luz foi traçada, alteou-se a metade do Largo de Sansão do lado da Igreja da Santa Cruz, de modo a fazer-se como que um dique que travasse as inundações (o que obrigou a fazer uma escadaria para descer atè à igreja).
Com as obras de regularização do alto Mondego (barragens da Raiva e da Aguieira), o Bazófias perdeu a bazófia, a baixa de Coimbra não mais foi invadida pelas suas águas e a Praça 8 de Maio pôde voltar a ser rebaixada, passando a ter uma fisionomia mais parecida com a que tinha o Largo de Sansão antes das obras de 1858. E é assim que quem entra hoje na Igreja de Santa Cruz volta a ter de subir, ainda que apenas 2 pequenos degraus.
As fotos referem-se às cheias de 1946, onde dá ideia que a água terá vindo da Alta, descendo a Sá da Bandeira. Mas ilustram bem a topografia da Praça 8 de Maio naquela época, topografia que se mantinha quando nos anos 50 e 60 eu calcorreava as ruas de Coimbra.
Recordo-me bem que, a separar a parte alta da parte baixa da praça, havia uma grade de ferro. Que junto a essa grade, do lado de cima parava o eléctrico 2, trazendo os passageiros que vinham da Estação Velha. E que do lado de baixo aguardavam os táxis, à espera de mais um servicinho... Se fosse hoje, diríamos que a Praça 8 de Maio era assim uma espécie de estação inter-modal! A estação inter-modal de Santa Cruz!
Zé Veloso

PS: Junto duas fotos da Praça 8 de Maio (Largo de Sanção) nos dias de hoje, mostrando o rebaixamento da praça para a sua cota original, bem como as rampas de acesso de um e de outro lado da praça.

28 fevereiro 2010

AS CHEIAS DO MONDEGO

A recente tragédia das inundações ocorridas na Madeira e a inevitável discussão que se lhe seguiu sobre o encanamento das ribeiras trouxeram-me à memória experiências e saberes antigos sobre os caprichos das águas, os quais me apeteceu partilhar convosco nesta chuvosa tarde de sábado. Refiro-me às famosas cheias do Mondego, fenómeno que conheci e vivi anos a fio quando era mais novo.
Conheço as cheias do Mondego desde que me conheço. Guardo na memória quase inconsciente, de criança muito pequena, imagens difusas de uma viagem de Ançã a Coimbra, em que houve que atravessar um lençol de água entre o Choupal e o Campo do Bolão. Guardo na memória de adolescente o desespero das colheitas de arroz tragadas pelas águas no início do Outono, numa época em que a palavra "apoios" não fazia parte do léxico da agricultura. Continuo a rever a beleza trágica dos campos inundados, em repouso, numa planura imensa, onde só o recorte das linhas de salgueiros e choupos deixava adivinhar o traçado dos cursos de água e dos caminhos. Por tudo isto, convivo naturalmente com as cheias, com o fatalismo próprio de quem nasceu e cresceu no campo, tal como convivem com o fogo os que nasceram e se criaram na serra.
Quem vive na Coimbra de hoje, de onde as cheias foram arredadas vai para 40 anos, já se esqueceu desses tempos. A própria anatomia da cidade também já se modificou; veja-se a Igreja de Santa Cruz, cuja entrada se encontra agora ao nível do largo em frente. Todos os que passaram por Coimbra nos anos 50 ou 60 se lembram de que a igreja estava a um nível inferior ao da rua, havendo que descer uma dúzia de degraus para nela entrar. Pois bem, isto acontecia porque em 1858, quando o ministro das obras do reino, Visconde da Luz, mandou abrir a rua que tem o seu nome, se resolveu altear parte do Largo de Sansão, de modo a evitar que as águas do Mondego invadissem a igreja, como vinha acontecendo desde há muitos anos.
Caminhando no tempo mais lá para trás, sabe-se que a muralha que hoje ladeia o rio, destinada a proteger a cidade das cheias, foi mandada estudar por D. João III em 1538 e que, um ano após, aquele rei escreveu à Câmara de Coimbra aprovando "a obra da parede ao longo do rio" e propondo que a mesma fosse parcialmente custeada por uma "finta" a lançar sobre os moradores ribeirinhos. E assim se vê que ainda o futebol não o era e já as fintas existiam, entendendo-se então por finta um imposto extraordinário. E como ninguém gosta de ser fintado, e muito menos de ser fintado pelos impostos, mais de um século depois daquela carta real, ainda a Câmara não tinha decidido fazer a obra.
Mas desde quando datam as cheias de Coimbra? Não sei dizê-lo ao certo. Mas certo é que o rio corria outrora muito mais fundo do que hoje e que o seu leito se foi progressivamente assoreando, tendo alteado 8 a 10 metros no último milénio. Acresce ainda que, em tempos idos, o estuário do Mondego vinha até Montemor-o-Velho, sendo a distância entre Coimbra e o mar muito menor do que é hoje, o que facilitava o escoamento das águas. Certo é, também, que em 1461, D. Afonso V, em face dos estragos que as cheias causavam, "restabeleceu a proibição de queimadas na distância de uma légua, a contar das margens do rio, desde Coimbra até Ceia". E o verbo "restabelecer" mostra que o fenómeno era antigo, ainda que as causas se tenham mantido actuais até hoje, já que a destruição do coberto vegetal continua a ser causa de erosão dos solos, por esse planeta fora.
Mas por muito que Afonso V legislasse, nem por isso o rio deixou de assorear. O assunto foi alvo de sucessivos estudos até que, em 1790, o padre Estevão Cabral apresentou a solução que viria a vingar: – A areia sempre veio e sempre virá, e sempre passou nos séculos antigos! – disse o frade. O que era preciso era criar uma saída franca, fazer aumentar a corrente e esta se encarregaria de levar os detritos para o fundo do mar, o seu lugar natural. E consuma-se a ideia de criar um leito alternativo, um canal em linha recta de Coimbra até ao mar, o "Rio Novo", que viria substituir o antigo leito, já preguiçoso e cansado, o "Rio Velho".
E as obras começam frenéticas pouco depois, ordenadas por alvará de 28 de Março de 1791. E com elas veio a valorização do campo. Mas veio também a prova de que, nisto de cálculos de engenharia, também os ministros de Deus se enganam: é que o rio continuou a assorear, só que, agora, de forma muito mais rápida!
Desta enorme obra hidráulica, ainda hoje resta o leito entre Coimbra (Almegue) e Montemor-o-Velho, rasgado a direito pelo vale adentro e ladeado por diques de areia e lama. São estes diques que, uma vez ultrapassados pela altura da água no rio, rapidamente quebram, inundando o campo, que é mais fundo, com tremenda rapidez. Já era assim há muitos anos e assim voltou a ser, mais recentemente, em finais de Janeiro de 2001.
Mas aquela obra de há 200 anos deixou-nos mais: foi com o intuito de corrigir o traçado do rio na curva do Almegue, onde em tempos tinha havido a "Quebrada Grande", e de evitar que o rio quebrasse para o Campo do Bolão, que se mandou então plantar uma frondosa mata de 100 hectares, à qual foi dado o romântico nome de "Choupal" e onde se diz que o Hilário cantava, alta noite, para gáudio das tricanas extasiadas.
Os dois mapas abaixo, retirados do velhinho Guia de Portugal de Sant’anna Dionísio, permitem comparar os traçados do Mondego nas situações anterior e posterior à construção do Rio Novo. É curioso notar no primeiro mapa a localização do Campo do Bolão – que se estende da Cidreira ao local onde hoje treina a Briosa – e, no segundo, a localização estratégica do Choupal, no lado de fora da curva à entrada do "encanamento moderno", bem como o aparecimento das vias férreas.
Uma última nota para um detalhe picaresco, que a comparação dos mapas nos permite observar: o lugar situado na confluência da Vala de Ançã com a Vala do Norte, que no Séc. XVIII era chamado de "Lava-Rabos", onde a travessia da Vala real do Norte era feita a vau, aproveitando-se a ocasião para lavar os ditos cujos, passou a chamar-se "S. João do Campo"! Por certo as cheias passaram a ser menos elevadas, diluindo-se o efeito higiénico da travessia da vala...
É caso para dizer que "há bens que vêm por mal"!
Zé Veloso