22 novembro 2020

100 ANOS DA TOMADA DA BASTILHA!

Há dez anos atrás escrevi aqui um post sobre a Tomada da Bastilha, com aquilo que então sabia sobre o assunto.
Agora, que se passam 100 anos sobre aquele memorável evento, achei interessante ir procurar mais fundo, para melhor perceber o que aconteceu e porque aconteceu, procurando contribuir para o esclarecimento da verdade histórica, já que têm sido publicadas versões nem sempre concordantes entre si sobre os referidos factos, seus antecedentes e sua importância, e, até, avaliações distorcidas daquilo que se passou.
Para tanto, consultei e confrontei tudo o que consegui encontrar, desde depoimentos de conjurados e de jornais da época até livros e artigos de revistas que foram publicados a partir dos anos 40.
Essa pesquisa está na base do artigo que poderão ler nas págs. 7 a 16 do n.º 55 da revista Capa e Batina (número especial que a AAECL - Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra em Lisboa acaba de editar para assinalar o I Centenário da Tomada da Bastilha), onde encontrarão outros depoimentos a propósito desta data.
Para aceder ao PDF CARREGAR AQUI.
Nota: Para uma visão geral clicar nas setas < >; para ler clicar na nuvem.
Se tiver dificuldade em trabalhar com o link acima, abra o PDF AQUI.

Zé Veloso

23 dezembro 2019

REVISITANDO A ORIGEM DAS CARTOLAS E BENGALAS NA QUEIMA (PARTE II)

À procura do rasto das cartolas

Quando entramos numa biblioteca à procura de qualquer coisa cuja existência desconhecemos, nem sempre encontramos o que lá nos levou, mas nunca saímos de mãos vazias. Foi o que me aconteceu quando fui em busca de notícias sobre o desfile dos finalistas de Medicina (armados de bengalas e chapéus de coco) no cortejo da Queima das Fitas de 27 de Maio de 1932.
Tinha a convicção de que os jornais de Coimbra teriam noticiado o desfile com a mesma ênfase com que tinham tratado na véspera a Venda da Pasta, evento que também naquele ano se estreara, exactamente pela mão do mesmo curso e por iniciativa do mesmo estudante – Henrique Pereira da Mota, o célebre Pantaleão. Mas estava enganado. Nem uma palavra!
Resolvi, então, andar para a frente. Percorri, linha a linha, as notícias da Queima no Diário de Coimbra, Gazeta de Coimbra e O Despertar entre 1932 e 1943 (12 anos!) e nova surpresa: toda a atenção dos repórteres vai para os novos fitados, para a descrição dos carros, para a atribuição dos prémios aos melhores carros, para o júri e seu palanque, para a alegria esfusiante da estudantada e suas famílias, para os forasteiros – “Japão”! –, para as “toilettes” das senhoras, para os gaiteiros e as bandas, para as janelas engalanadas com colchas, para os brindes com espumante, até para a condenação dos excessos,… mas cartolados no cortejo… nem vê-los! Afinal, a festa não era deles, a festa era dos quartanistas.
Minto! Há uma excepção a confirmar a regra, uma nota no final da notícia do Diário de Coimbra de 28/5/1941, pela qual ficamos a saber que, para além dos chapéus altos, a tradição também contemplava chapéus de palha.
E, ao percorrer O Ponney, o panorama é idêntico, já que encontrei vestígios das cartolas unicamente no n.º 125 (27/5/1936), onde, no CONVITE para o FUNERAL do jornal (que prematura e enganosamente se anunciava para o dia seguinte), se estabelece um conjunto de regras em que, logo à cabeça, aparece:

Tradições que não terão chegado sê-lo ou não chegaram aos nossos dias

Mas a leitura dos jornais permite-nos descortinar outros costumes relacionados com a despedida dos velhos quintanistas que não chegaram até aos dias de hoje. O mais antigo que apanhei refere-se a um “Cortejo dos Quintanistas” de que fala O Ponney de 21/4/1934, numa entrevista que faz ao Presidente da Comissão Central da Queima das Fitas. Tal cortejo teria lugar no “Dia dos Quintanistas”, o que me leva a supor que, por esta altura, a integração dos velhos quintanistas no cortejo da Queima não estaria ainda estabilizada.
Por outro lado, como se depreende dos recortes abaixo, no início da década de 40 do século passado existia a figura do "padrinho", figura que já não chegou à Coimbra dos anos 60 do meu tempo.
Extractos de notícia da Gazeta de Coimbra de 28/5/1940







Extracto de notícia do Diário de Coimbra de 28/5/1942

Extracto de notícia do Diário de Coimbra de 28/5/1943









Notas finais

Se é verdade que a inexistência de notícias sobre os cartolados em 1932 e nos anos que mais de perto se lhe seguiram poderá ser atribuída ao facto de que o centro da festa estava nos fitados, também é de admitir que a nova moda tenha levado o seu tempo a pegar e a ter alguma visibilidade.
Nos recortes do Diário de Coimbra de 1942 e 1943 acima está bem evidente um outro ícon associado ao finalista, que me parece ter vindo a ser sistematicamente esquecido. Refiro-me ao charuto, que tendo aparecido em 1932 conjuntamente com a bengala e o chapéu de coco, ainda nos anos 60 fazia parte dos adereços do cartolado masculino.
A estes dois posts seguir-se-á um terceiro, dedicado à Primeira Reunião do Curso dos Cocos, que encerrará a trilogia de posts de aprofundamento da origem das cartolas e bengalas na Queima.
Zé Veloso

12 dezembro 2019

REVISITANDO A ORIGEM DAS CARTOLAS E BENGALAS NA QUEIMA (PARTE I)



Há muito que ando para escrever sobre a origem das cartolas e das bengalas na Queima das Fitas, mas o tempo não tem dado para tudo. Agora, porém, passado que foi o pré-lançamento do primeiro volume d’Os Lysíadas [1], no VI Milenário da Real República dos LyS.O.S., é altura de voltar a animar o Penedo d@ Saudade e o tema parece-me interessante para a rentrée.
Para os estudiosos das tradições académicas é natural que este preâmbulo faça levantar o sobrolho: – Mas a origem das cartolas e das bengalas não está já devidamente estabelecida? Retomando uma frase que ficou célebre nos anos 70, talvez vos possa dizer: – Olhe que não, olhe que não!...
Vamos aos factos!

O que até há pouco se sabia

Do que até há pouco tinha vindo ao conhecimento do grande público [2], as cartolas e as bengalas teriam aparecido na Queima pela primeira vez em 1932 – não no cortejo, mas cerca de uma semana depois dele –, numa reunião de curso dos finalistas de Medicina desse ano, curso a que pertencia o Dr. Henrique Pereira da Mota, que ficou conhecido pela alcunha de Pantaleão.
Sobre o que em concreto se terá passado, vejamos o que escreveu em 1985 António José Soares [3] – que julgo ter sido o primeiro a colocar em livro o que os jornais noticiaram à época –, sendo esta a versão dos factos que tem vindo a ser sucessivamente repetida, ainda que nem sempre havendo o cuidado de indicar a fonte:
Poucos dias depois de largarem as suas fitas amarelas, os quintanistas de Medicina tiveram a sua primeira reunião de curso…
Apresentaram-se de chapéu de côco, ou de chapéu alto, de bengala e fumando charuto…
[…]
Descerraram uma lápide no Choupal (…de papelão, é certo), confraternizaram num lauto banquete, e tiraram uma fotografia nas escadas da capela da Universidade, envergando trajes respeitáveis, com chapéu alto, coco, chapéus de revirão, bengalas e outros acessórios de vestuário, a lembrar individualidades prestigiadas e respeitáveis que se tivessem formado ainda no séc. XIX.

O que há de novo

Acontece, porém, que enquanto esgravatava à procura de informação para escrever Os Lysíadas, tive acesso a um pequeno livro de memórias [4] escrito por Maria José de Figueiredo Carmona da Mota, então viúva do Pantaleão, onde a autora dá o seu testemunho sobre uma série de episódios da vida de seu falecido marido. E logo no primeiro testemunho, que a seguir reproduzo na íntegra, se afirma que as cartolas (aliás, os cocos) desfilaram mesmo no cortejo de 1932.
– TESTEMUNHO 1 – A Queima das Fitas aproximava-se. Os Grelados trabalhavam activamente ultimando a ornamentação dos carros alegóricos, organizando os festejos, angariando donativos. Deslocavam-se à Figueira da Foz por causa da garraiada, enfeitavam o salão do Baile de Gala, contratavam artistas para abrilhantar, no Parque, as noites das várias Faculdades.
Por toda a parte havia agitação, alegria; todas as conversas da malta acabavam no assunto do dia: a Queima.
Tudo isto causava uma sensação estranha misto de saudade e inveja nos finalistas da Academia.
Sentiam-se ainda estudantes. Ostentavam com orgulho as suas largas fitas mas sofriam com a marginalização a que eram votados. Os reis da festa eram os outros, a quem talvez, em tempos, tivessem feito sentir os rigores da Praxe e que agora se erguiam vitoriosos conquistando os loiros, pondo-os a eles na “prateleira”.
Mas alguns não se conformavam, eram ainda estudantes, estes dias também lhes pertenciam. Não tinham ainda abdicado. A capa e batina continuava a cobri-los e faziam parte integrante da velha Briosa.
Era preciso prová-lo e não se esconderem na sombra.
Então o Pantaleão lançou a ideia apoiada por unanimidade e assim um numeroso grupo de estudantes finalistas primorosamente bem postos com fraques e chapéus de côco ou sobrecasacas e cartolas, de bengala e charuto – símbolo da prosperidade que os esperava no futuro – fechava o cortejo da Queima das Fitas.
Grito de saudade por deixarem Coimbra e a praxe! – Brado de esperança pelo futuro.
Tratando-se de uma edição familiar de distribuição muito reduzida, a preciosa informação não circulou. Mas a sua lógica é cristalina!
Por um lado, dá-nos a conhecer a motivação para o acto – o despeito dos finalistas por não poderem participar na festa.
Por outro, o precedente de ter havido cocos e cartolas no próprio cortejo afigura-se mais plausível como detonador da tradição do que a existência dessas mesmas vestimentas numa simples «primeira reunião de curso».

Uma fotografia e várias interrogações

A foto acima, pertencente ao acervo da família do Dr. Henrique Pereira da Mota (Pantaleão), “cheira” inquestionavelmente a Queima das Fitas. Inclino-me para que tenha sido tirada no dia do cortejo de 1932, embora nada o garanta.
Segundo fui informado, à nossa direita, de coco, está o Pantaleão. Também de coco, mas à nossa esquerda, está o seu inseparável companheiro de farras e de República, Castelão de Almeida. Os estudantes do meio não estão identificados.
A fotografia levanta algumas interrogações que importa discutir.
Apesar de vir referido em Testemunhos [4] que os estudantes finalistas desfilaram de fraque ou sobrecasaca, não me repugna que os da foto estejam, ao que me parece, de batina, pois admito que nem todos tenham conseguido mobilizar a tempo tais vestes, sendo obrigados a improvisar a partir do que tinham mais à mão. Ressalvo, no entanto, que só o Pantaleão está identificado como aluno de Medicina.
Já a presença de Castelão de Almeida é intrigante, uma vez que era aluno de Direito e nem sequer tinha ainda posto fitas, não fazendo sentido que desfilasse no cortejo. Mas tal poderá ser explicado se a foto corresponder a um momento de confraternização entre amigos, antes ou depois do cortejo, porventura gente da Real República Ribatejana (como era o caso de Castelão e Pantaleão).
Igualmente intrigante é a espessa cobertura que os dois estudantes de coco na cabeça me parece trazerem aos ombros. Será a capa dobrada?
Outra questão para a qual peço ajuda: que prédio(s) aparece(m) ao fundo, na fotografia? Debalde tentei identificá-los em fotos da Velha Alta, bem como no trajecto entre a Alta e a Portagem. Se a foto foi tirada na zona da R.R.R., diz Lamy [5] que nessa data a República se encontrava na Rua dos Militares.

Uma frase intrigante

É curioso notar que a forma como está escrito o penúltimo parágrafo do TESTEMUNHO 1 acima – «um numeroso grupo de estudantes finalistas […] fechava o cortejo» – nem nos diz se todos os finalistas de Medicina aderiram à façanha, nem elimina a hipótese de estudantes de outros cursos terem aderido à ideia do Pantaleão.
Foi à procura de respostas para esta e outras questões que fiz uma busca exaustiva nos jornais que por aqueles dias se publicavam em Coimbra. Mas disso vos darei conta no próximo post  REVISITANDO A ORIGEM DAS CARTOLAS E BENGALAS NA QUEIMA (PARTE II).
Entretanto, fico a aguardar os vossos comentários e qualquer ajuda que possam dar-me.
Zé Veloso

Aditamento feito em 22/10/2021

A foto acima foi amplamente discutida na página do Facebook “Penedo d@ Saudade – TERTÚLIA” em que divulguei este post pela primeira vez (12/12/2019). Eis o mais relevante:

- não se conseguiu identificar o local onde a fotografia foi tirada, o que aponta para que se situasse, efectivamente, na velha Alta já destruída.

- admitiu-se que o segundo aluno a contar da esquerda fosse Herculano Gonçalves, de Medicina, Pandeireta da TAUC em 1928-29, o que veio posteriormente a ser confirmado na Fotobiografeta de “Pantaleão”;

- aventou-se a hipótese de os alunos dos extremos terem pelo ombros um capote ou mesmo um gabão.

- O cocos não aparecem visíveis nas fotos conhecidas da Queima de 32 (este assunto está desenvolvido no final do post REVISITANDO A ORIGEM DAS CARTOLAS E BENGALAS NA QUEIMA (PARTE III).


Foto inicial: Cartolas deixadas no corredor de entrada da Real República dos LyS.O.S. (Porto) por antigos repúblicos (foto Zé Veloso)
Última foto: descrita no texto (foto do acervo da família de Henrique Pereira da Mota – Pantaleão)
[1]   VELOSO, Zé. Os Lysíadas. Vol. I, De Coimbra ao Porto. Edição Especial Comemorativa do VI Milenário da Real República dos LyS.O.S., MinervaCoimbra, Coimbra, Novembro 2019.
[2]   Ver um apanhado em «Notas à Margem da Cartola, Bengala, Laço e Roseta dos Finalistas Universitários», in Notas & Melodias, http://notasemelodias.blogspot.com/2014/04/notas-origem-da-cartola-bengala-e.html.
[3]   SOARES, António José. Saudades de Coimbra. 1917-1933. Almedina, 1985.
[4]   CARMONA DA MOTA, Maria José de Figueiredo. Testemunhos. Edição do autor, 2.ª ed. rev. e aum. Coimbra, 1997.
[5]   LAMY, Alberto Sousa. A Academia de Coimbra. 1537–1990. Rei dos Livros, Lisboa, 1990.


14 julho 2017

DO TEATRO ACADÉMICO DO SÉC. XIX AO TEATRO ACADÉMICO DE GIL VICENTE


Nos tempos em que andei em Coimbra– terminei os Preparatórios de Engenharia em 1966 – nunca prestei grande atenção ao edifício da Biblioteca Geral da Universidade. É desculpável. Tinha as aulas espalhadas pelos Gerais, pelas Físicas e pelas Químicas; e, na correria entre salas, quando atravessava o "Pátio das Mamudas" virava naturalmente as costas à austera Biblioteca, enquanto ia lavando os olhos na paisagem ondulante das carinhas larocas e tímidas mini-saias que desciam os degraus da Faculdade de Letras.

Nessa altura, a Biblioteca Geral parecia-me ser, à semelhança das já terminadas Faculdades de Letras e de Medicina, um edifício construído de raiz, em cima das demolições dos anos 40... Puro engano! Inaugurada em 1956, ela fora construída a partir da destruição parcial de uma Faculdade de Letras anterior, que não chegou a durar duas décadas, da qual se aproveitaram os alicerces e alguma parte do "miolo", mas cujas fachadas foram totalmente remodeladas.

Mas que defeito teria essa antiga Faculdade de Letras – um interessante projecto do arq.º Silva Pinto – para ser assim desaproveitada? Independentemente do facto de Cottinelli Telmo, o "Papa" da remodelação da Alta, achar que faltava dignidade ao edifício (!?), havia quem lhe apontasse o pecado de possuir um grande vão interior, que serviria bem à sala de leitura de uma (futura) biblioteca, mas que tinha pouco aproveitamento numa Faculdade de Letras…

E tudo isto porque esta antiga Faculdade de Letras também não fora um edifício projectado de raiz, mas sim a adaptação do projecto de um teatro académico, cuja construção, nunca concluída, começara na primeira década do séc. xx, e da qual se tinham aproveitado… os alicerces; de tal forma que o enorme vão onde hoje está instalada a sala de leitura da Biblioteca Geral correspondia, no projecto do dito teatro, ao espaço reservado à caixa do palco, plateia, camarotes e galerias!

E se recuarmos no tempo até ao séc. xix, o que vamos encontrar naquele local é o célebre Teatro Académico que nos é descrito por Trindade Coelho no In Illo Tempore, o qual, ao ser demolido em 1888, deixou a academia sem um dos polos aglutinadores da vida cultural universitária e sem o edifício que, durante cinquenta anos, foi sede da Associação Académica e dos organismos que a precederam.

As voltas que o mundo dá! Ou melhor, as voltas que este espaço deu! Mas comecemos a história pelo princípio:

No quarteirão onde hoje se encontra a Biblioteca Geral, mandou D. João III edificar, em 1549 – sensivelmente sobre as ruínas dos "Estudos Velhos" de D. Dinis  , o Colégio Real de S. Paulo Apóstolo, destinado a alojar clérigos indigentes que viessem estudar para a Universidade. Em 1838, já depois do decreto de extinção das ordens religiosas, o imóvel é entregue à recém-criada Nova Academia Dramática que, depois de sucessivas transformações, haveria de dar lugar à Associação Académica de Coimbra. Fazem-se obras no claustro do edifício para aí alojar o Teatro Académico, que é inaugurado em 1839. Ao longo dos anos que se seguiram, o Colégio Real foi partilhado com outros organismos, entre eles o Instituto de Coimbra (depreciativamente tratado por "Clube dos Lentes"), o qual surgiu como dissidente da Academia Dramática de Coimbra, entidade que, entretanto, tinha sucedido à Nova Academia Dramática.

Mas em 1888, na sequência de um incêndio de consequências terríveis no Teatro Baquet do Porto, onde terá morrido mais de uma centena de pessoas, o Teatro Académico foi alvo de uma auditoria que concluiu por insuficientes condições de segurança e determinou a imediata demolição de todo o imóvel. É certo que o edifício estava degradado, mas houve quem visse na rapidez desta decisão uma resposta oportunista à disseminação das ideias republicanas que grassavam na academia, da qual o Teatro Académico era ponto de encontro e uma importante fonte de receita. E lembro que, pouco tempo antes, a 3/11/1887, a Academia Dramática de Coimbra se transformara na Associação Académica, que teve como primeiro presidente António Luís Gomes, um prestigiado estudante republicano.

Abro aqui um parêntesis para salientar a curiosidade de a Associação Académica de Coimbra ter na sua génese uma Academia Dramática e um Teatro Académico!

Demolido o teatro e sem casa onde morar, a Associação foi atirada para o Colégio da Trindade em 1890 e ocupou posteriormente prédios acanhados na Rua Larga, Rua do Cosme e Rua do Norte, enquanto se aguardava que uma nova sede e um novo teatro fossem construídos no local onde tinham existido as anteriores instalações, ou seja, sobre os escombros do antigo Teatro Académico; porém, vinte anos depois, as obras ainda se arrastavam, entre indefinições do projecto, e pouco subiam além das fundações. Até que, em 1913, o Governo decide atribuir o edifício em construção à recém-criada (1911) Faculdade de Letras e despachar a Associação Académica para o Colégio de S. Paulo Eremita na Rua Larga, edifício que tinha sido o último colégio a ser fundado em Coimbra, já no tempo de D. João V.


O edifício era bom, mas o presente vinha envenenado, pois que a Associação Académica teria de se apertar no r/c, enquanto no 1.º andar e nas águas furtadas viveria o Instituto de Coimbra – o Clube dos Lentes –, com o qual as coisas não tinham corrido bem no Colégio Real de S. Paulo Apóstolo. E embora houvesse a promessa de que o Instituto sairia para outro lado a breve trecho, a verdade é que, passados sete anos, estes inimigos de estimação ainda ali se mantinham.

E foi por isso que, em 25 de Novembro de 1920, os do r/c perderam a paciência e decidiram fazer o despejo dos que viviam por cima, às 6 e 45 da matina, inda os galos estavam a esfregar os olhos. Chamaram ao golpe A Tomada da Bastilha. E por ali se quedaram até que o camartelo investiu uma vez mais contra a sua sede, aquando da remodelação da Cidade Universitária

Caída a "Bastilha", a AAC transferiu-se em 1949 para o Palácio dos Grilos (Colégio de Santa Rita, construído pelos Eremitas Descalços de Santo Agostinho, a quem o povo chamava "Grilos"), onde continuava a não haver teatro, mas – ironia do destino! – tinha por vizinhos, uma vez mais… o Instituto de Coimbra / "Clube dos Lentes", instalado uns metros abaixo, na Imprensa da Universidade. E chegados a 1954, como a construção de uma nova sede, agora prevista para a Praça da República, continuasse atrasada, um grupo de estudantes voltou a ocupar as instalações do "Clube dos Lentes" em 4 de Abril (4/4/54), numa segunda "Tomada da Bastilha", simbólica, de apenas uma noite.

Não imaginavam, porém, estes "revoltosos", que a desejada saída para uma nova sede viria a ser tão agitada e, até… contrariada pelos próprios estudantes! É que, chegados a Maio de 1962, estando iminente o encerramento da sua sede – na sequência de conflitos que se arrastavam entre a academia e o governo e que culminaram na chamada crise de 62 –, os estudantes decidiram trancar-se dia e noite no Palácio dos Grilos, de onde só viriam a sair com a intervenção da polícia de choque e sob a ameaça de prisão dos elementos da Direcção da AAC.

A crise de 62 e a ocupação do Palácio pela polícia de choque – que resultou no fecho da sede da AAC e obrigou a passar as Assembleias Magnas para o Campo de Santa Cruz – ditaram, para além da punição de muitos estudantes, o luto académico e, com ele, o cancelamento dos festejos da Queima e da Tomada da Bastilha de 62, e das latadas do início do ano de 62/63.

Entretanto, uma nova sede estava já construída e pronta a funcionar junto à Praça da República, mas a academia recusava-se a ocupá-la sem garantias de que viesse a ser por si gerida. Só viria a ser aberta em Outubro de 1963, um mês antes de voltar a haver eleições para a AAC. Durante vários anos ela foi a minha segunda casa: cantina, sala de ensaios, local de convívio e de estudo, que alternava com os muitos cafés da cidade...

Do complexo da nova sede fazia parte o tão desejado teatro, que também nasceria envolto em polémica, e não apenas por causa do seu modelo de gestão... ou autogestão. A academia sonhava com um teatro só para si e queria que ele se chamasse Teatro Académico. Porém por sugestão de Paulo Quintela (TEUC), a sala viria a denominar-se Teatro de Gil Vicente. E tudo isto alimentava uma contestação surda, que rebentou em pancadaria entre estudantes e polícia, aquando da sua inauguração prematura em Setembro de 1961 para acolher o festival de teatro VIII Delfíada, altura em que também abriram de forma experimental a cantina e as salas de convívio da Associação.

Inaugurado o teatro e terminada esta espécie de ante-estreia, a sala esteve fechada durante quatro longos anos, até ser aberta em Julho de 1965, 77 anos e 5 meses depois de o último espectáculo se ter realizado no velhinho Teatro Académico do séc. xix. E foi já depois do 25 de Abril de 1974, em data que não consegui ainda apurar (Alguém? Quem ajuda?) que o teatro passou a chamar-se Teatro Académico de Gil Vicente. Custou mas foi!

Apesar de o seu significado ser profundo, o facto de o teatro ter tido dois nomes é uma singularidade que passou despercebida à generalidade da Academia e da cidade. Mas que não passará despercebida a quem se der ao trabalho de fazer um "zoom" sobre as duas fotos acima e comparar os nomes que estão escritos na parede do lado esquerdo da porta de entrada. 

POSFÁCIO: Felizmente para a academia, enquanto todos estes factos se passavam, existia ao fundo da Avenida Sá da Bandeira uma sala de espectáculos alheia que, ano após ano, ia acolhendo as récitas de despedida, os saraus da Queima, os filmes em noite de latada, os cineclubes e o mais que houvesse, como se de um vero teatro académico se tratasse – o Teatro Avenida! Naquelas noites de glória, ele foi o "Teatro Académico" de dezenas de gerações de estudantes, entre as quais a minha se inclui!

Inaugurado em 20 de Janeiro de 1893 com o nome de Teatro Circo do Príncipe Real D. Luís Filipe, também ele não viria a resistir ao camartelo, já nos finais da década de 1980. Teve, porém, um final menos digno do que o do velho Teatro Académico, sobre cujas ossadas existe hoje uma biblioteca para matar a sede de saber. Ao Teatro Avenida acharam mais próprio botar-lhe em cima um centro comercial para matar a fome do consumo! Mas a sua alma continuará viva enquanto ele viver na recordação dos que nele e com ele vibraram.

Tendo eu começado esta crónica pelo que existe hoje no local onde outrora existiu o primeiro Teatro Académico, faz sentido que a termine referindo o que foi demolido para construir em seu lugar o Teatro Académico de Gil Vicente. E o que foi demolido chamava-se Jardim de Infância D. Maria do Resgate Salazar (nome dado em homenagem à mãe de António de Oliveira Salazar), vulgarmente conhecido por Ninho dos Pequenitos, da obra social do Professor Bissaya Barreto. A demolição do velho Ninho dos Pequenitos determinou a sua passagem para a Quinta da Rainha, abaixo do Liceu D. João III, onde se construíram novas instalações, lado a lado com o Instituto Maternal.

Como dizia o Poeta: «Todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades!» 

Zé Veloso

Fotografias: obtidas na internet

Bibliografia:

- A Velha Alta… Desaparecida. Edição da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra, Almedina, 2.ª edição, 1991.

- AGUIAR, Cristóvão de. Com Paulo Quintela à Mesa da Tertúlia. Edição do autor, 2005.

- AGUIAR, Cristóvão de. Nova Relação de Bordo. Cristóvão de Aguiar e Publicações Dom Quixote, 2004.

- «As Novas Instalações da A.A. - Exposição», in Via Latina, n.º 135, 16-12-1961.

- COELHO Trindade. In Illo Tempore. Estudantes, Lentes e Futricas. Livraria Aillaud & C.ª, 1902, https://ia800300.us.archive.org/18/items/inillotemporees00coelgoog/inillotemporees00coelgoog.pdf.

- «Instituto de Coimbra o percurso de uma Academia > Sedes» in História da Ciência na UC, http://www.uc.pt/org/historia_ciencia_na_uc/Textos/instituto/sedes (acedido em 13/10/2016)

- LAMY, Alberto Sousa. A Academia de Coimbra. 1537-1990. Rei dos Livros, 1990.

- NUNES, António M. «O Teatro Avenida», in Guitarra de Coimbra, 5/3/2006, http://guitarradecoimbra.blogspot.pt/2006/03/o-teatro-avenida-vista-geral-da.html (acedido em 28/6/2017).

- NUNES, Avelãs. «A nova sede», in Via Latina, n.º 132-133, 28-11-1961.

- «O primeiro Teatro Académico de Coimbra - o berço da A.A.C.», in Centelha, http://bloguecentelha.blogspot.pt/2007/11/o-primeiro-teatro-acadmico-de-coimbra-o.html (acedido em 10/10/2016).

- «O Teatro Baquet. (Cidade do Porto), in Monumentos Desaparecidos, http://monumentosdesaparecidos.blogspot.pt/2009/10/o-teatro-baquet-cidade-do-porto.html (acedido em 10/10/2016).

- ROSMANINHO, Nuno. O Poder da Arte. O Estado Novo e a Cidade Universitária de Coimbra. 2006, Imprensa da Universidade de Coimbra.

- SANTANA, João; MESQUITA, João. Académica. História do Futebol. Almedina, 2008.

- SOARES, António José. Saudades de Coimbra, 3 volumes (1901 a 1949). Almedina, 1985.

14 dezembro 2016

“PRAXE E TRADIÇÕES ACADÉMICAS”, DE ELÍSIO ESTANQUE. MAIS RIGOR SERIA BOM!

No início de Novembro alertaram-me para a saída do livro Praxe e Tradições Académicas de Elísio Estanque (EE) e para o facto de o mesmo conter transcrições do Penedo d@ Saudade. Senti, como é natural, um certo regozijo. Não é todos os dias que se é citado por um notório investigador da UC, em livro editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos!
Comprado o livro, encontrei, logo a abrir, uma sábia advertência: «A autorização para a reprodução total ou parcial dos conteúdos desta obra deve ser solicitada ao autor ou editor». Assim mesmo é que é! Pela minha parte, só tenho a agradecer. As 57 linhas do livro transcritas do Penedo d@ Saudade já não mais serão copiadas à vontade, ficando eu, até, dispensado de ter o trabalho de me preocupar com tais autorizações. Só lamento que EE não tenha seguido para si a regra que impõe aos outros, pois que, se o tivesse feito, tê-lo-ia eu próprio alertado para o facto de, à data em que diz ter acedido ao blogue, já estar on line uma outra edição do post TEIXEIRA,UM FUTRICA ESTUDANTE. Teria, assim, evitado transcrever um texto onde, meses antes, eu introduzira algumas emendas [A].
Obviamente, não seria este facto que me levaria a escrever o presente post. O que verdadeiramente me desgostou – e é esta a primeira razão pela qual o escrevo – foi perceber que aquele meu post sobre o Teixeira aparece numa sequência em que EE desenvolve uma teoria que acaba por se esboroar por falta de provas (já que é exemplificada através de figuras que não encaixam no perfil que lhes atribui), ao mesmo tempo que amesquinha antigos estudantes que tiveram um papel relevante na nossa academia e cuja memória não deveria ser deturpada e enxovalhada.
Mas que parágrafo é esse, para o qual já diversos estudiosos da academia de Coimbra têm vindo a chamar a atenção? Vide págs. 72 e 73:
«Igualmente digno de registo é a popularidade de alguns nomes ligados ao imaginário académico, embora não estudantes, que povoaram a cidade em épocas distintas, e o papel que desempenharam no universo das representações intelectuais e estudantis. Personagens como o Agostinho Antunes, o Pantaleão, o Pad Zé, o Castelão de Almeida, entre outros, fazem parte da história da academia de Coimbra, sendo de certo modo apropriados por essa espécie de "academia paralela" que animava os ambientes boémios e contestatários de Coimbra do passado (Duarte, 2000). Algumas dessas figuras, supõe-se que depois de convenientemente domesticadas, e uma vez garantido o seu lugar subalterno na comunidade, sendo alimentadas e até merecedoras de vestimenta própria (o traje académico), tornaram-se ícones de uma cultura onde a irreverência e o excesso eram condimentados com a atitude paternal em relação a esses (dóceis) animadores da algazarra estudantil. É o caso do Taxeira (cujo verdadeiro nome é Raul dos Reis Carvalheira), conforme aqui descrito por um observador que o recorda desde os anos cinquenta do século passado:» [negrito da minha responsabilidade; segue-se a transcrição do já referido post do Penedo d@ Saudade].
Ora, acontece que aqueles quatro “não estudantes” não só terminaram os seus cursos na UC e exerceram posteriormente as profissões a que os mesmos habilitavam, como são figuras que aparecem largamente referidas na bibliografia académica, sendo que, quanto aos três últimos, não é sequer possível fazer uma pesquisa séria sobre a história e as tradições da academia de Coimbra sem tropeçar, por diversas vezes, nos seus nomes [B]. Como exemplo, “Pantaleão” (Henrique Pereira da Mota) é a figura mais citada do “curso dos cocos”, curso que foi precursor do uso da cartola e que iniciou a venda da pasta, tradições que chegaram até aos nossos dias; Pad Zé (Alberto Costa) fez parte da comissão central do Centenário da Sebenta e é autor do best seller O livro do Doutor Assis, uma sátira à Coimbra universitária dos finais do séc. XIX; e Castelão de Almeida, para além de aparecer conjuntamente com “Pantaleão” em partidas célebres que fizeram correr tinta em vários jornais (e.g. o casamento do Nunes de Ranhados), fundou o seu próprio jornal humorístico, O Ponney, que ainda hoje tem uma edição on line em cujo cabeçalho consta o seu nome. Convenhamos que são factos suficientemente relevantes para passarem despercebidos a quem escreve sobre tradições académicas de Coimbra!...
A avaliar pela referência que o livro aponta – (Duarte, 2000) – o erro começou numa simples dissertação de licenciatura [C], que nem sequer está acessível para consulta. Mas o facto de o mesmo erro ter já contaminado outros trabalhos [D] de EE anteriores a este livro mostra bem o perigo da replicação de “fontes inquinadas”. Foi por isso que contactei o autor e o editor do livro através de mensagens escritas, sugerindo que tal erro fosse corrigido numa próxima edição [E]. Porém, quase um mês passado sobre o envio de tais mensagens, não recebi qualquer resposta, sendo esta a segunda razão que me levou a escrever este post. Errar é humano. Deixar que o erro se propague é que já não me parece admissível.
Quanto ao mais, centrando-me apenas nos interfaces do livro com o Penedo d@ Saudade e passando por cima de questões menores [F], só tenho a regozijar-me com a nota de rodapé 37, onde uma transcrição do post DAS LATADAS À FESTA DAS LATAS – PARTE II aparece como ilustração do que se passava no século XIX. Como aquele texto é uma descrição do que se passou na minha latada, serei, por certo, o estudante de Coimbra mais antigo ainda por cá! Um caso sério de longevidade!
Zé Veloso

[A] Na nota de rodapé 45, EE diz que obteve o texto do post “Teixeira, um futrica estudante” acedendo ao link http://penedosaudade.blogspot.pt/2015/03/teixeira-um-futrica-estudante.html, em 27/09/2015, o que não pode ser verdade, uma vez que o texto que apresenta foi obtido do link http://penedosaudade.blogspot.pt/2011/03/taxeira-um-futrica-estudante.html, correspondente ao post inicial. Este post foi cancelado em Março 2015 para dar lugar ao post revisto.
[B] Ainda que Agostinho Antunes seja menos conhecido do que os restantes, ele não deixa de ser referido por Carminé Nobre no seu Coimbra de Capa e Batina.
[C] Duarte, Madalena (2000), A taberna e a boémia coimbrã – Práticas de lazer dos estudantes de Coimbra. Coimbra: FEUC (diss. de licenciatura).
[D] Em Jovens, estudantes e ‘repúblicos’: Culturas estudantis e crise de associativismo em Coimbra, publicado na Revista Crítica de Ciências Sociais em Junho 2008, e em Juventude, boemia e movimentos sociais: culturas e lutas estudantis na universidade de Coimbra, publicado na Política & Sociedade em Abril 2010, EE refere «Algumas figuras populares de épocas distintas – como o Agostinho Antunes, o Pantaleão, o Pad Zé, o Castelão de Almeida, o Taxeira, entre outros – tornaram-se lendárias precisamente devido à sua proximidade com o meio estudantil, sendo de certo modo apropriados e erigidos em ícones dessa “academia paralela” que animava os ambientes boémios e contestatários de Coimbra (Duarte, 2000)».
[E] Em 15/11 pp enviei uma mensagem privada ao autor do livro, via Facebook, depois de me certificar de que EE era assíduo utilizador desta ferramenta. Idêntica mensagem foi enviada ao autor e ao editor em 18/11 pp, via Google Books, na página onde o livro se encontra à venda.
[F] Nenhum dos diversos blogues citados no livro (excepção feita ao Guitarra de Coimbra) constam da lista de BIBLIOGRAFIA apresentada nas págs. 227 a 231. Não crendo que se trate de defeito, admito que seja apenas uma questão de feitio.

24 fevereiro 2016

O PENEDO NÃO ACABOU!

Caros amigos,
Há quase um ano que o Penedo d@ Saudade não apresenta nenhuma nova crónica, o que pode, até, ter criado a convicção de que o blogue acabou.
Porém, não é esse o caso. O problema é que tenho há vários anos entre mãos a escrita de uma obra dedicada à minha República e decidi que deveria terminá-la até ao final do corrente ano de 2016.
O cumprimento deste objectivo, simultaneamente com outros projectos que tenho entre mãos, obrigou a que o blogue “Penedo d@ Saudade” tivesse de ficar congelado até 2017, ano em que voltará à actividade que teve desde a sua criação em Fevereiro de 2010.
A página “Penedo d@ saudade – TERTÚLIA” no facebook mantém-se activa.

Zé Veloso

Em tempo:
O retomar da velocidade de cruzeiro do blogue está a demorar mais tempo do que aquele que eu tinha previsto. Veremos se as coisas se compõem em 2018.
Zé Veloso
08/07/2017

Em tempo:
Escreveu o Poeta: «Todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades».
Eu limito-me a ter de concluir que: «Toda a obra é mais complexa do que parece e os prazos estão sempre a derrapar.»
Só agora a famosa obra dedicada à minha República está em condições de ser editada.
Quando aos posts no Penedo voltarão... mas já não fixo nova data.
Zé Veloso
15/05/2019

Em tempo:
Felizmente, os posts voltaram, e já há muito tempo.
Quanto à anunciada obra dedicada à minha República, pf consultar o post abaixo:

“OS LYSÍADAS”, DE ZÉ VELOSO

Zé Veloso
23/11/2021

25 março 2015

COIMBRA, P’RA SER COIMBRA…


Coimbra, p’ra ser Coimbra
Três coisas há-de contar
Guitarras, tricanas lindas
Capas negras a adejar.

Esta é a quadra mais cantada e mais conhecida do chamado Vira de Coimbra, uma canção de raiz popular – mais tarde apropriada pelos estudantes – cujas origens são anteriores ao século XVIII [1]. A sua música, para além de ser dançada como vira que é, servia igualmente para cantares ao desafio entre as gentes da cidade, fossem eles estudantes, futricas ou tricanas, como acontecia nas tabernas e bordéis ou por altura das antigas fogueiras. Por tal razão, o Vira de Coimbra é hoje cantado com uma panóplia de quadras soltas diversas, provenientes de várias épocas, por vezes improvisadas no calor do descante e contradizendo-se, até, entre si, como acontece com as que caracterizam de forma tão díspar o “amor do estudante”. Veja-se que, para o futrica intriguista, «dizem que amor de estudante não dura mais que uma hora» enquanto, para a tricana apaixonada, «só o meu é tão velhinho qu’inda se não foi embora».

Mas voltemos à quadra «Coimbra p’ra ser Coimbra…» que evoca uma certa Coimbra Académica de antanho, boémia, apaixonada e vibrante, que se foi perpetuando ao longo de muitas gerações universitárias e que ainda não morreu de todo, seja porque ainda hoje anda pela cidade seja porque continua viva na memória de muitos que por lá andaram no passado.

«Coimbra p’ra ser Coimbra…» tem tudo o que uma quadra precisa para resultar bem:
  • Desde logo e a abrir, um número cabalístico – «três coisas»!
  • A seguir, as «guitarras» – românticas, vibrantes, pungentes, nas mãos jovens e apaixonadas de um estudante – com o único senão de, como regra, os grandes guitarristas de Coimbra não terem sido os estudantes, mas sim, futricas ou antigos estudantes!
  • Depois, as «tricanas lindas», essa estirpe de mulher onde nunca foi descrito um só exemplar que não fosse belo!
  • E, por fim, as «capas negras», essas capas da cor da morte e da tristeza que, paradoxalmente, quando postas «a adejar», irradiam a alegria da juventude, da nossa Coimbra académica de sempre!

Porém, estas «três coisas» – guitarras, tricanas lindas e capas negras – nem sempre coexistiram ao longo dos 530 anos de permanência da universidade em Coimbra e não terão convivido em conjunto por mais de algumas décadas, não chegando, porventura, a meio século, como veremos adiante.

Das guitarras…

Comecemos pelas guitarras. É sabido que desde muito cedo os estudantes cantaram pelas ruas de Coimbra, sozinhos ou acompanhando os seus habitantes. Eram cantos de saudade e de amor, bem como cantigas populares. É também sabido que, nesses cantares, normalmente nocturnos, os estudantes se faziam acompanhar por instrumentos vários, entre os quais cordofones, mas não necessariamente por guitarras, já que estas só viriam a aparecer em Coimbra pelo século XIX, seja na sequência da entrada em Portugal da guitarra inglesa, como têm afirmado vários autores, seja através da evolução da cítara portuguesa, a guitarra-cítara, como mais recentemente se tem vindo a admitir [2]. Mas tanto no séc. XIX como no início do séc. XX, «a guitarra portuguesa não era o instrumento predilecto, entre a comunidade estudantil ou popular. Na verdade, os instrumentos de corda mais tocados seriam a viola toeira, o violão, o cavaquinho, o bandolim entre outros» [2]. E foi o malogrado Augusto Hilário, que estudou em Coimbra entre 1889 e 1896, vindo a falecer de tuberculose antes ainda de terminar o curso de Medicina, a primeira grande referência de estudante de Coimbra cantor e tocador de guitarra. Ainda que celebrizado pela sua voz, o seu nome ficaria para sempre ligado ao seu instrumento de eleição: «Eu quero que o meu caixão tenha uma forma bizarra… a forma de um coração, a forma de uma guitarra!...»

Para o comum dos mortais, a guitarra que por aquele tempo se tocava em Coimbra, bem como no resto do país, pouco diferiria das de hoje. Mas, para os mais conhecedores, as diferenças existem e são bem grandes. Foi nas décadas de 20 e 30 do século passado que Artur Paredes, um guitarrista exímio, futrica como o eram os melhores guitarristas de Coimbra daquela época, revolucionou o instrumento, alterando-lhe significativamente a fisionomia (e, também, a afinação e a forma de o tocar). Primeiro, com a ajuda da pequena oficina de Raul Simões, guitarreiro de Coimbra; depois, em parceria com os guitarreiros de Lisboa Kim Grácio e João Pedro Grácio, Artur Paredes faria surgir, por volta de 1940, um modelo de guitarra com uma nova sonoridade, que, aos poucos, ganharia o seu espaço e que é hoje adoptada pela quase totalidade dos grandes guitarristas portugueses, independentemente da sua proveniência. Na prática, a guitarra de Coimbra tornou-se a guitarra portuguesa. E o ensino da guitarra em Coimbra que, no meu tempo de estudante, estava a cargo do barbeiro da AAC, tem hoje escolas e professores com fartura… e até as estudantes já aprendem a tocar tal instrumento.

Das tricanas lindas….

Quando o valor da nova guitarra de Artur Paredes foi finalmente reconhecido em Coimbra, na sequência da sua aparição numa serenata na Sé Velha em 1945 (embora futrica, Paredes tocava igualmente no meio académico sendo aceite como um dos seus), já as tricanas tinham deixado de ocupar, na vida dos estudantes, o espaço que tão bem tinham sabido reservar para si durante quatro séculos.

Mas quem eram elas, afinal? De uma forma geral, eram as mulheres da classe baixa da terra: mulheres do campo, lavadeiras, engomadeiras, criadas de servir. Não só em Coimbra se chamavam assim. Também em Ílhavo, Aveiro ou Ovar havia tricanas. Curiosamente, tricana era também o nome dado à saia que usavam e ao pano de que era feita essa saia.

Entre as tricanas havia muita rapariga nova e bonita. À falta de raparigas, numa terra onde havia uma população flutuante de milhares de rapazes solteiros que estavam fora de casa meses e meses a fio, fácil é de perceber que nenhuma delas chegasse a ser feia. O cortejar dos rapazes era constante, «namoriscando as moças com parolas latinas» [3]; moças simples, à procura de sonhos e melhores condições. Com o tempo, as tricanas foram realçando os seus encantos naturais; de geração em geração, o contacto com gente mais culta permitiu-lhes algum refinamento e sofisticação. Algumas tornaram-se verdadeiras cortesãs. Outras acreditaram, simplesmente, que um amor verdadeiro e um futuro melhor as esperaria no final de anos de promessas doces e carícias ardentes. Terminados os cursos, ficavam por vezes os “rebentos”, cuja paternidade faziam questão de não esconder. Li algures que futrica – um nome que fede à distância – seria uma corruptela de fitrica, sendo fitrica uma abreviatura de filho de tricana. E mais não digo. Quereis saber o porquê dessa animosidade ancestral entre estudantes e futricas? Cherchez la femme!

Mas, um belo dia, algo começa a mudar: numa universidade onde nunca se formara uma só mulher, forma-se a primeira nos finais do séc. XIX; e se até 1912 o número máximo de alunas por ano era apenas de oito, a partir daí não pára de aumentar; e, no início da década de 40, rondava já os 20%. A pouco e pouco, as tricanas foram deixando de ser tão lindas… e, com o rodar do tempo, foram perdendo definitivamente a importância que tinham no coração dos estudantes, até se tornarem figuras de folclore do Rancho de Coimbra. Como dizia o poeta, «todo o mundo é composto de mudança».

Das capas negras a adejar…

Quando D. João III transferiu definitivamente a universidade para Coimbra, já as capas negras faziam parte da indumentária dos escolares, embora o traje fosse diferente do de hoje. As capas negras vêm, por isso mesmo, de tão longe quanto as tricanas mas, ao contrário destas últimas, conseguiram renascer das cinzas das duas vezes em que estiveram moribundas no passado século XX.

A última vez em que tal aconteceu já pouco interessa para estas contas, pois que também as tricanas já por cá não andavam. Foi ao longo de toda a década de 70, durante o luto que se seguiu à crise académica de 1969. Com luto não há praxe nem festas e sem elas ninguém gasta dinheiro na compra dum traje que tem dificuldade em competir com a moda dos blue jeans e que, ainda por cima, foi conotado com a reacção por obra e graça dos movimentos revolucionários. Nesta década, a capa e batina haveria de sumir-se de todo, o que levou a Câmara Municipal, preocupada com a preservação dos ex-libris da cidade, a isentar de bilhetes nos eléctricos os estudantes que se apresentassem com ela vestida!

O outro período de rejeição das capas negras foi do final do séc. XIX até ao início dos anos 20 do século passado, quando a capa e batina, para além de ter sido muito contestada, foi igualmente aviltada, chegando a usar-se coletes, calças ou gravatas de outras cores que não a preta. Aliás, a contestação à obrigatoriedade do uso do traje dentro do perímetro universitário era de tal maneira forte, que o dito uso foi tornado facultativo apenas 19 dias depois de instaurada a República!

E, como corolário da baixa estima que então havia pelas capas negras, aqui fica o registo da primeira quadra do “Vira de Coimbra” gravado por Lucas Junot para a Columbia em Maio de 1927, onde «um estudante a cantar» aparece em lugar das «capas negras a adejar» [1].

Coimbra, p’ra ser Coimbra
Três coisas há-de contar
Guitarras, tricanas lindas
E um estudante a cantar.

Resumindo e concluindo…

Quanto à guitarra, apesar de se saber que por todo o século XIX ela já era tocada em Coimbra em salões de dança e teatros [2], não é possível apontar a data em que passou a ser utilizada pelos estudantes nas suas serenatas; mas é bem provável que tal tenha acontecido já no declinar do séc. XIX. Com alguma segurança, é Augusto Hilário a primeira figura de peso que associa a guitarra aos estudantes e à serenata de Coimbra, o que acontece na primeira metade da década de 1890. E, a partir daí, tal associação continua até aos dias de hoje, sem qualquer descontinuidade.

Quanto às tricanas, a sua origem é anterior à vinda dos estudantes para Coimbra. E é seguro que, no início dos anos 30, ainda tinham lugar central no imaginário romântico do estudante masculino, como bem o prova a capa do livro de curso ao cimo, datado de 1932. Porém, admito que esse papel se tenha diluído ao longo de toda a década de 40. Ficamos, assim, com cerca de meio século de coexistência das guitarras com as tricanas. Poderá, até, ter sido um pouco mais.

Mas, ao entrarmos com as capas negras, teremos de descontar a segunda década do século XX, que foi uma década madrasta para a capa e batina, em que muitos não a usaram e muitos outros a usaram mal. Como dizia o outro: «É só fazer as contas…».

Zé Veloso

[1] Conforme António Manuel Nunes, in Registos fonográficos de Lucas Rodrigues Junot (1902-1968), Guitarra de Coimbra (Parte I), http://guitarradecoimbra.blogspot.pt/2005/05/registos-fonogrficos-de-lucas.html.

[2] Conforme Luis Pedro Ribeiro Castela, in A Guitarra Portuguesa e a Canção de Coimbra. Subsídios para o seu estudo e contextualização, Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras, 2011.

[3] Segundo a Eufrósina, peça teatral escrita à volta de 1542, cinco anos depois de D. João III ter transferido de novo a universidade para Coimbra.

- A primeira foto, cedida pela Dra. Ana Maria Barros, é da capa do Livro do Curso de Medicina de 1927-33, a que pertenceu seu pai, o professor de Obstetrícia Dr. Albertino da Costa Barros. Pertenceram também a este curso outras conhecidas figuras de Coimbra, de que destaco o Dr. Adolfo Rocha (Miguel Torga) e o Dr. Júlio Pais Mamede (Condorcet).
- A foto do Hilário foi obtida pelo autor do blogue, a partir de um painel de uma exposição temporária sobre a guitarra de Coimbra, no Edifício Chiado.
- A foto da guitarra de Coimbra foi obtida da internet.
- A foto da estátua da tricana (que se encontra a meio do Quebra Costas) foi tirada pelo autor do blogue.
- A última foto foi obtida do livro Coimbra Vida Académica, de Cristina Henriques, …