21 outubro 2021

REVISITANDO A ORIGEM DAS CARTOLAS E BENGALAS NA QUEIMA (PARTE III)

Este post é a continuação de REVISITANDO A ORIGEM DAS CARTOLAS E BENGALAS NA QUEIMA (PARTE II)

As minhas desculpas por só hoje vir dar continuidade a um assunto que deixei em suspenso há quase 22 meses.

Uma “primeira reunião de curso” muito especial

Chegou a altura de vos contar o que foi a dita “primeira reunião de curso” do V Ano Médico de 1931-32, evento que nem sempre tem sido relatado com o detalhe que merece e cuja data exacta tem ficado na sombra.

Faço-vos tal relato a partir das notícias que saíram no Diário de Coimbra [1], Gazeta de Coimbra [2] e O Ponney [3], notícias razoavelmente pormenorizadas, bem demonstrativas do prestígio que aquele curso granjeava na cidade, um curso que, liderado pelo “Pantaleão” (Henrique Pereira da Mota), tinha acabado de introduzir a Venda da Pasta na Queima das Fitas.

O evento teve lugar em 5 de Junho de 1932, domingo, nove dias depois do cortejo da Queima em que pela primeira vez desfilaram os cocos e cartolas (conforme testemunho de Maria José Carmona da Mota [4]). Eis como decorreu o encontro:

A seguir ao almoço, levando gaiteiros à frente, rumaram os futuros médicos (55 maduros) ao pátio da Universidade dispostos a representar a rábula de que se tratava de uma reunião de curso de antigos estudantes já bem instalados na vida. Para tanto, vestiram-se à futrica com os seus melhores fatos, cobriram-se com chapéus de coco ou de revirão e muniram-se de bengala.

Tirada a fotografia da praxe nas escadas da Capela da Universidade, ei-los que descem triunfantes e ruidosos até à Baixa, seguindo o mesmo percurso dos cortejos da Queima, para poderem receber os aplausos de quem estivesse na rua ou às janelas.

Uma vez na Baixa, o programa incluiu uma muito oportuna visita ao Laboratório Matos Beja. E digo “muito oportuna” porque logo se lhe seguiu uma sessão de comes e bebes – a que os vários jornais dão nomes diferentes, mas O Ponney apelida de “Xarope Peitoral ó clock Five” –, durante a qual os futuros médicos e alguns dos seus Professores e Assistentes confraternizaram e trocaram discursos e se nomeou uma comissão para organizar a reunião de curso de daí a 5 anos.

Imagino que, já bem-dispostos, lhes deve ter sabido bem sair para o ar puro e caminhar até ao Choupal, seriam umas seis da tarde, para cumprir a última parte do anunciado programa – afixar numa árvore uma lápide de papelão (ou cartolina, consoante a fonte) com duas quadras do seu colega e poeta Vasco de Campos, já que ir fazê-lo no Penedo da Saudade seria levar longe de mais (digo eu) a rábula da reunião de curso de antigos estudantes: 

«Adeus, Coimbra! Em teu seio
Vivemos a mocidade,
E desse encanto nos veio
A mais profunda saudade!

Se cá voltarmos, um dia,
Já velhinhos, alquebrados,
Dá-nos de novo alegria,
Lembra-nos tempos passados!...»

Escreveu ainda o Diário de Coimbra que «a lápide de cartolina será substituída por outra de mármore, brevemente» e que, durante a cerimónia, o curso ainda teve oportunidade de exercitar as suas artes médicas ao reanimar – «ministrando-lhe imediatamente vida artificial e injectando-a» (sic)  uma rapariga que acabava de ser salva de morrer afogada no Mondego.

Uma fotografia para a História

 

A fotografia da reunião de curso foi obtida da Revista Rua Larga [5], local de onde a consegui reproduzir em melhor estado. Porém, a foto foi publicada no mesmo número de O Ponney [3] que deu a notícia do encontro, legendada como segue: «Último curso de Urologia, clinicamente vestido, na sua despedida ou por outra, na sua primeira reunião». “Curso de Urologia” porque este número do jornal era dedicado ao Congresso Hispano-Português de Urologia que nesse dia se iniciava em Coimbra; “clinicamente vestido” por os seus membros se encontrarem já vestidos como médicos e não como alunos.

Como convidada especial do grupo vemos a Maria Marrafa, antiga distribuidora de sebentas, que viria a falecer três anos mais tarde (13/12/1935). Logo atrás da Maria Marrafa está Henrique Pereira da Mota, o irrequieto “Pantaleão”, que, a adivinhar pelo seu currículo, só pode ter estado na organização desta jornada.

Como o dia estava frio e tinha chovido pela manhã [6], muitos levaram consigo sobretudo ou gabardina e houve quem substituísse a bengala pelo guarda-chuva.

De entre os 55 quintanistas que se contam na fotografia – qual deles o de aspecto mais respeitável – , cerca de 50% estão de chapéu de coco; mais ou menos 30% usam chapéu de revirão; oito estão em cabelo; e um só (!) usa cartola, que acabou por ser a forma que a tradição fez chegar até aos meus dias (anos 60) e até aos dias de hoje; afinal, a forma mais fácil de ser fabricada artesanalmente.

A foto acima pode ser observada com mais qualidade na pág. 73 da Fotobiografeta de “Pantaleão” [7]. 

Um curso que deixou marcas

Desde sempre os cursos de Medicina foram cursos prestigiados… e amados. A cidade ainda recordava os tempos em que o resultado dos exames de formatura dos médicos eram anunciados numa Congregação final e se todos fossem aprovados nemine discrepante – mas só nessas condições – estralejariam girândolas de foguetes lançados da Torre da Universidade e da Alameda de Camões e ouvir-se-ia o Hino Académico a anunciar a boa nova; e a cidade seguia ansiosa a espera daquele resultado, em comunhão com os estudantes.

O curso de Henrique Pereira da Mota (Pantaleão), Albino Gonçalves Dias (Topsius), Hugo de Moura Eloy, Justiniano d’Oliveira, Luís Olayo e tantos outros não era já desse tempo, mas estaria decidido a não deixar Coimbra sem que nela ficasse a sua marca e sem que dela tivesse uma despedida à altura dos seus pergaminhos.

A Venda Pasta tinha sido um sucesso, com uma visibilidade enorme. Toda a cidade teve a oportunidade de assistir e aplaudir da primeira fila, e os jornais não se cansaram de louvar a benemérita iniciativa. A sua continuidade estaria, portanto, assegurada. Já a ideia de levar os quintanistas a participar no cortejo da Queima, fazendo-os desfilar de fraque e chapéu de coco – uma ideia genial e revolucionária! – não terá tido a visibilidade esperada, o que facilmente se comprova pela total ausência de notícias nos periódicos de Coimbra.

O curso não podia despedir-se da cidade de uma forma tão pífia! Tenho para mim – especular um bocadinho não será crime... – que o pouco impacto do desfile de fraque e chapéu de coco no final do cortejo poderá ter espicaçado o curso e tê-lo-á levado a desencadear a insólita “primeira reunião de curso” em termos capazes de atrair os jornais e a população, deixando ao mesmo tempo uma imagem icónica para as gerações vindouras – os quintanistas de chapéu com suas bengalas em riste!

Será altura de dizer que o evento foi previamente publicitado, através de pequenos artigos que saíram de véspera e no próprio dia (Gazeta de Coimbra [8] e Diário de Coimbra [9] e [10]), onde se anunciava, inclusivamente, a presença do Reitor, Dr. Manuel Braga, e de outras individualidades que acabaram por não comparecer. Como se diria hoje, o curso “tinha boa imprensa” e “meteu a carne toda no assador”.

Bem hajam!, pela vossa iniciativa… e atrevimento.

Notícia da Gazeta de Coimbra de 4/6/1932

 

 








Notícia do Diário de Coimbra de 4/6/1932

 

 









Notícia do Diário de Coimbra de 5/6/1932

 






Zé Veloso

 

[1]     «Novos doutores, em medicina. A sua depedida a Coimbra», in Diário de Coimbra, 6-06-1932.

[2]     «Uma curiosa festa dos quintanistas de Medicina», in Gazeta de Coimbra, 7-06-1932.

[3]     «Reunião do Curso Médico 31-32», in O Ponney, 4-07-1932.

[4]     CARMONA DA MOTA, Maria José de Figueiredo. Testemunhos. Edição do autor, 2.ª ed. rev. e aum. Coimbra, 1997.

[5]     «Para o estudo das praxes coimbrãs», in Rua Larga, 1-08-1959.

[6]     Observações Meteorológicas, Magnéticas e Sismológicas Feitas no Instituto Geofísico no ano de 1932. 1ª Parte - Observações Meteorológicas, Vol. LXXI. Coimbra, Tipografia Atlântida, 1937.

[7]     Fotobiografeta de “Pantaleão”, https://tunauc.files.wordpress.com/2020/12/henrique_pereira_da_mota_pantaleao_2020.pdf.

[8]     «Uma Festa Académica», in Gazeta de Coimbra, 4-06-1932.

[9]     «Quartanistas de Medicina», in Diário de Coimbra, 4-06-1932.

[10]   «Quintanistas de Medicina», in Diário de Coimbra, 5-06-1932. 

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