Há muito que ando para escrever sobre a origem das
cartolas e das bengalas na Queima das Fitas, mas o tempo não tem dado para
tudo. Agora, porém, passado que foi o pré-lançamento do primeiro volume d’Os
Lysíadas [1], no VI Milenário da Real República dos LyS.O.S., é altura de
voltar a animar o Penedo d@ Saudade e o tema parece-me interessante para
a rentrée.
Para os estudiosos das tradições académicas é natural que
este preâmbulo faça levantar o sobrolho: – Mas a origem das cartolas e das
bengalas não está já devidamente estabelecida? Retomando uma frase que ficou
célebre nos anos 70, talvez vos possa dizer: – Olhe que não, olhe que não!...
Vamos
aos factos!
O
que até há pouco se sabia
Do que até há pouco tinha vindo ao conhecimento do grande
público [2], as cartolas e as bengalas teriam aparecido na Queima pela primeira vez
em 1932 – não no cortejo, mas cerca de uma semana depois dele –, numa reunião
de curso dos finalistas de Medicina desse ano, curso a que pertencia o Dr.
Henrique Pereira da Mota, que ficou conhecido pela alcunha de Pantaleão.
Sobre o que em concreto se terá
passado, vejamos o que escreveu em 1985 António José Soares [3] – que julgo ter
sido o primeiro a colocar em livro o que os jornais noticiaram à época –, sendo
esta a versão dos factos que tem vindo a ser sucessivamente repetida, ainda que nem sempre havendo o cuidado de indicar a fonte:
Poucos
dias depois de largarem as suas fitas amarelas, os quintanistas de Medicina
tiveram a sua primeira reunião de curso…
Apresentaram-se
de chapéu de côco, ou de chapéu alto, de bengala e fumando charuto…
[…]
Descerraram
uma lápide no Choupal (…de papelão, é certo), confraternizaram num lauto
banquete, e tiraram uma fotografia nas escadas da capela da Universidade,
envergando trajes respeitáveis, com chapéu alto, coco, chapéus de revirão,
bengalas e outros acessórios de vestuário, a lembrar individualidades
prestigiadas e respeitáveis que se tivessem formado ainda no séc. XIX.
O que há de novo
Acontece, porém, que enquanto esgravatava
à procura de informação para escrever Os Lysíadas, tive acesso a um
pequeno livro de memórias [4] escrito por Maria José de Figueiredo Carmona da
Mota, então viúva do Pantaleão, onde a autora dá o seu testemunho sobre
uma série de episódios da vida de seu falecido marido. E logo no primeiro
testemunho, que a seguir reproduzo na íntegra, se afirma que as cartolas
(aliás, os cocos) desfilaram mesmo no cortejo de 1932.
–
TESTEMUNHO 1 – A Queima das Fitas
aproximava-se. Os Grelados trabalhavam activamente ultimando a
ornamentação dos carros alegóricos, organizando os festejos, angariando donativos.
Deslocavam-se à Figueira da Foz por causa da garraiada, enfeitavam o salão do
Baile de Gala, contratavam artistas para abrilhantar, no Parque, as noites das
várias Faculdades.
Por
toda a parte havia agitação, alegria; todas as conversas da malta acabavam no
assunto do dia: a Queima.
Tudo
isto causava uma sensação estranha misto de saudade e inveja nos finalistas da Academia.
Sentiam-se
ainda estudantes. Ostentavam com orgulho as suas largas fitas mas sofriam com a
marginalização a que eram votados. Os reis da festa eram os outros, a quem
talvez, em tempos, tivessem feito sentir os rigores da Praxe e que agora
se erguiam vitoriosos conquistando os loiros, pondo-os a eles na “prateleira”.
Mas
alguns não se conformavam, eram ainda estudantes, estes dias também lhes
pertenciam. Não tinham ainda abdicado. A capa e batina continuava a cobri-los e
faziam parte integrante da velha Briosa.
Era
preciso prová-lo e não se esconderem na sombra.
Então
o Pantaleão lançou a ideia apoiada por unanimidade e assim um numeroso
grupo de estudantes finalistas primorosamente bem postos com fraques e chapéus
de côco ou sobrecasacas e cartolas, de bengala e charuto – símbolo da
prosperidade que os esperava no futuro – fechava o cortejo da Queima das
Fitas.
Grito
de saudade por deixarem Coimbra e a praxe! – Brado de esperança pelo futuro.
Tratando-se de uma edição familiar de distribuição muito
reduzida, a preciosa informação não circulou. Mas a sua lógica é cristalina!
Por um lado, dá-nos a conhecer a motivação para o acto –
o despeito dos finalistas por não poderem participar na festa.
Por outro, o precedente de ter havido cocos e cartolas no
próprio cortejo afigura-se mais plausível como detonador da tradição do que a
existência dessas mesmas vestimentas numa simples «primeira reunião de curso».
Uma fotografia e várias interrogações
A foto acima, pertencente ao acervo da família do Dr.
Henrique Pereira da Mota (Pantaleão), “cheira” inquestionavelmente a
Queima das Fitas. Inclino-me para que tenha sido tirada no dia do cortejo de
1932, embora nada o garanta.
Segundo fui informado, à nossa direita, de coco, está o Pantaleão.
Também de coco, mas à nossa esquerda, está o seu inseparável companheiro de
farras e de República, Castelão de Almeida. Os estudantes do meio não estão
identificados.
A fotografia levanta algumas interrogações que importa
discutir.
Apesar de vir referido em Testemunhos [4] que os
estudantes finalistas desfilaram de fraque ou sobrecasaca, não me repugna que
os da foto estejam, ao que me parece, de batina, pois admito que nem todos
tenham conseguido mobilizar a tempo tais vestes, sendo obrigados a improvisar a
partir do que tinham mais à mão. Ressalvo, no entanto, que só o Pantaleão
está identificado como aluno de Medicina.
Já a presença de Castelão de Almeida é intrigante, uma vez que era aluno de Direito
e nem sequer tinha ainda posto fitas, não fazendo sentido que desfilasse no
cortejo. Mas tal poderá ser explicado se a foto corresponder a
um momento de confraternização entre amigos, antes ou depois do cortejo,
porventura gente da Real República Ribatejana (como era o caso de Castelão e Pantaleão).
Igualmente intrigante é a espessa cobertura que os dois
estudantes de coco na cabeça me parece trazerem aos ombros. Será a capa dobrada?
Outra questão para a qual peço ajuda: que prédio(s)
aparece(m) ao fundo, na fotografia? Debalde tentei identificá-los em fotos da
Velha Alta, bem como no trajecto entre a Alta e a Portagem. Se a foto foi
tirada na zona da R.R.R., diz Lamy [5] que nessa data a República se encontrava
na Rua dos Militares.
Uma frase intrigante
É curioso notar que a forma como está escrito o penúltimo
parágrafo do TESTEMUNHO 1 acima – «um numeroso grupo de estudantes
finalistas […] fechava o cortejo» – nem nos diz se todos os finalistas de
Medicina aderiram à façanha, nem elimina a hipótese de estudantes de outros
cursos terem aderido à ideia do Pantaleão.
Entretanto, fico a aguardar os vossos comentários e
qualquer ajuda que possam dar-me.
Zé
Veloso
Aditamento feito em 22/10/2021
A foto acima foi amplamente discutida na página do Facebook “Penedo
d@ Saudade – TERTÚLIA” em que divulguei este post pela primeira vez (12/12/2019). Eis o mais relevante:
- não se conseguiu identificar o local onde a fotografia foi
tirada, o que aponta para que se situasse, efectivamente, na velha Alta já destruída.
- admitiu-se que o segundo aluno a contar da esquerda fosse Herculano
Gonçalves, de Medicina, Pandeireta da TAUC em 1928-29, o que veio posteriormente
a ser confirmado na Fotobiografeta
de “Pantaleão”;
- aventou-se a hipótese de os alunos dos extremos terem pelo
ombros um capote ou mesmo um gabão.
- O cocos não aparecem visíveis nas fotos conhecidas da
Queima de 32 (este assunto está desenvolvido no final do post REVISITANDO
A ORIGEM DAS CARTOLAS E BENGALAS NA QUEIMA (PARTE III).
Foto inicial: Cartolas
deixadas no corredor de entrada da Real República dos LyS.O.S. (Porto) por
antigos repúblicos (foto Zé Veloso)
Última foto: descrita
no texto (foto do acervo da família de Henrique Pereira da Mota – Pantaleão)
[1] VELOSO, Zé. Os Lysíadas. Vol. I, De
Coimbra ao Porto. Edição Especial Comemorativa do VI Milenário da Real República
dos LyS.O.S., MinervaCoimbra, Coimbra, Novembro 2019.
[3] SOARES, António José. Saudades
de Coimbra. 1917-1933.
Almedina, 1985.
[4] CARMONA DA MOTA, Maria
José de Figueiredo. Testemunhos.
Edição do autor, 2.ª ed. rev. e aum. Coimbra, 1997.
[5] LAMY, Alberto Sousa. A Academia de Coimbra. 1537–1990. Rei dos Livros, Lisboa, 1990.
Por ser didáctico, transcrevo para aqui o essencial de um comentário que recebi (e da resposta que lhe dei) quando coloquei este post na página do Facebook “Penedo d@ Saudade – TERTÚLIA”.
ResponderEliminarCOMENTÁRIO:
Curiosa inversão: hoje os finalistas abrem o Cortejo, sendo a Queima entendida como a festa dos finalistas por excelência, quando não o era.
Deu-me e vai dar-me ainda muito em que pensar – nomeadamente a razão de ser de incumbir aos grelados a organização da queima e quanto à origem de certos costumes e ao momento do ano em que ocorrem, pelo menos no Porto.
RESPOSTA:
Ao que julgo saber, a razão de ser de incumbir aos grelados a organização da queima tem a ver com o cerne da festa, que cada vez mais se vai perdendo – a Queima do grelo, cuja origem está na queima das fitinhas das pastas em que se guardavam as sebentas que, já nos finais do séc. XIX, era feita pelos Bacharéis no dia do ponto, não esquecendo que, para muitos deles, a obtenção do grau de Bacharel (ao fim de quatro anos, quartanistas) correspondia mesmo à saída de Coimbra (e aí a lógica... era o final de qualquer coisa!)
Mas quando no início do séc. XX se acabou com o grau de Bacharel, os alunos passaram todos a ficar obrigatoriamente mais um ano (quintanistas) em Coimbra; e aí a queima das fitinhas – que viria anos mais tarde a desaguar na grande festa da Queima das Fitas – continuou a ser feita pelos quartanistas, talvez por ter havido um longo período de transição de 5 anos entre a velha e a nova reforma.
No meu tempo de Coimbra – anos 60 – os cartolados seguiam no cortejo em grupos de dez a quinze atrás, de cada um dos carros dos respectivos cursos.