10 maio 2014

A VENDA DA PASTA. MODELO ESGOTADO OU INICIATIVA A RELANÇAR?

Quis saber o que se passa hoje em dia com a Venda Pasta. Telefonei para Coimbra e falei com alguns fitados e cartolados recentes: – Venda da Pasta? Verbena? Que é isso? Nunca ouvi falar…
Fico preocupado! Será que a Venda da Pasta já foi vendida? Será que a culpa é do maldito memorando e andam a cortar nas gorduras da Queima?
Desconfiado, vou até à internet: Depois de desbravar caminho entre as semanas académicas (que se vão acotovelando umas às outras), um cartaz da Queima (onde uns quantos puxam pela corda uma torre que não sei se está a cair se a erguer-se) e o "verdadeiro cartaz" (aquele que faz correr a malta, com Daniela Mercury, Quim Barreiros, Xutos & Pontapés …), lá encontro, por fim, o tão desejado anúncio da Venda da Pasta, seguida da Verbena – Será a 13 de Maio, terça-feira, e o dinheiro angariado destina-se à Casa de Infância Elísio de Moura.
Afinal sempre há. A malta é que lhe deve ligar pouco… Vamos lá à história desde o princípio.
A Venda da Pasta é mais uma das iniciativas do famoso curso médico de 1931/32 (ano da formatura), de que fazia parte o não menos célebre Henrique Pereira da Mota (mais conhecido por “Pantaleão”), a quem se deve a ideia de tão meritória acção.
A sua origem é referida por vários autores. Mas pareceu-me interessante trazer aqui o testemunho da viúva do grande “Pantaleão” que, em 1997, editou um pequeno livro [ 1 ] de homenagem à memória do seu falecido marido:
«O asilo da Infância Desvalida que fora adoptado pelo Professor Doutor Elísio de Moura estava em dificuldades.
«Apesar da abnegação do Professor que a ele consagrava todos os seus haveres, o crescente número de órfãs fazia com que a administração fosse cheia de espinhos.
«Aproximava-se a “Queima das fitas” e então a ideia luminosa surgiu.
Pela mão dos quintanistas, as gentis pequeninas asiladas seguiam pela Baixa vendendo pastazinhas com fitas das cores das várias faculdades.
«Radiante, mais feliz do que elas – que gozavam o prazer da liberdade – lá ia o “Pantaleão” fazendo os impossíveis para angariar o máximo para a meritória obra de amor e benemerência que tantas meninas acarinhou e tornou aptas para serem úteis e felizes.»
Para além da grande admiração e carinho que a academia e a cidade sempre devotaram ao Professor Elísio de Moura, há um aspecto que será menos conhecido e que admito que tenha ajudado esta ligação entre a academia e uma obra assistencial específica. É que, segundo o Diário de Coimbra [ 2 ], a Casa da Infância Dr. Elísio de Moura (anteriormente Asilo da Infância Desvalida), «teve a sua origem na “Sociedade de Beneficência Protectora da Infância Desvalida”, fundada em 9 de Julho de 1835 pela Reitoria da Universidade de Coimbra, cabendo a presidência a um professor universitário. Tal cargo seria exercido por Elísio de Moura a partir de 1922». E, segundo se depreende das palavras acima de Maria José Carmona da Mota, entre 1922 e 1932, o asilo terá sido mesmo adoptado por Elísio de Moura.
Nos anos 50 e 60 a Venda da Pasta era o prato forte do Dia do Quintanista, uma segunda-feira calma, estrategicamente entalada entre a garraiada de domingo e o cortejo de terça, dia que os quintanistas aproveitavam para usar as suas fitas uma última vez, já que no dia seguinte desfilariam de cartola e só poderiam voltar a usá-las no dia da formatura. [ 3 ]
E, pela manhã, lá iam os quintanistas buscar as “meninas do Dr. Elísio de Moura” para vender as pastas. Para as miúdas – «princesas por um dia», nas palavras do filho do “Pantaleão” [ 4 ] – era uma jornada inesquecível mas, também, fatigante. Sempre aos pares e acompanhadas por um quintanista (às vezes por um casalinho de quintanistas), percorriam as ruas da cidade, almoçavam num restaurante, lanchavam numa pastelaria e, ao final da tarde, ainda era vê-las na Verbena do Jardim Botânico [ 5 ], ora gingando ao som da música do baile ora brincando ou dormindo já nos braços dos quintanistas a quem tinham sido confiadas.
Veio a crise académica de 69, o luto académico e o consequente cancelamento de todo o programa da Queima das Fitas. Foi então que o Professor Elísio de Moura foi ter com a Comissão da Queima (ou da Verbena, não sei ao certo) e mostrou a sua preocupação pela falta que a receita da venda das pastinhas faria à sua obra de beneficência. Poderia não haver Queima mas a instituição e as suas meninas não deveriam sair prejudicadas. E a excepção foi aberta. E as "meninas do Dr. Elísio de Moura" saíram à rua na segunda feira que deveria ter sido o dia do quintanista. Nos seus uniformes domingueiros - saia azul de pregas, blusa cor-de-rosa, soquete branco e sapatinho preto – foram levadas pelas mãos dos quintanistas, percorreram a cidade, venderam as pastinhas, almoçaram e lancharam nos restaurantes e pastelarias… e só não terminaram o dia ao som da música porque nesse fim de dia já não houve baile! E os quintanistas que as foram buscar de manhã e as levaram de volta ao orfanato tinham a batina fechada e a capa pelos ombros, em sinal de luto, e as fitas iam recolhidas dentro das suas pastas.
Hoje, a Venda da Pasta e a Verbena, ainda que fazendo parte do programa, estão esquecidas. Só consegui saber no que consistem através de um interessante trabalho de mestrado de uma ex-aluna da U.C. [ 6 ], onde se explica que «a Verbena consiste num lanche organizado pela Queima das Fitas destinado inicialmente às crianças da Casa da Infância Doutor Elysio de Moura que participam na Venda da Pasta»; mais se refere que «actualmente, é aberta a todas as crianças das casas de solidariedade social de Coimbra» e que, «para além do lanche, é oferecido, às crianças, um pequeno espectáculo».
Aparentemente, evoluímos no bom sentido, estendendo o lanche e o espectáculo – que agora são no Parque Verde – a uma comunidade mais vasta de crianças e adolescentes. Mas o que se ganhou em quantidade parece ter-se perdido em humanidade, em carinho, em proximidade entre os estudantes e as crianças ou os jovens daquelas casas. É que o número de estudantes que se apresentam para acompanhar as crianças na Venda da Pasta tem vindo a decrescer todos os anos e de tal sorte que, em 2013, apenas 20 (vinte) se voluntariaram para tal, numa universidade que nesse ano andou pelos 22.000 alunos e onde, seguramente, mais de 1.000 serão quintanistas, ou melhor, bolognezes ou marquezes, segundo as denominações do actual Código da Praxe.
Diz o Diário de Coimbra [ 7 ] que não só a Casa da Infância como também a Comissão da Queima das Fitas ficaram surpreendidas com a baixa adesão em 2013. De facto, é caso para pensar e tirar daí algumas conclusões.
Serão os estudantes de hoje menos solidários e menos generosos que os de ontem? Será falta de informação ou de mediatização? Será que a atenção se dispersa no meio de tanta festa, tanta algazarra, tanta publicidade? Será que o evento é hoje um fardo de baixo retorno e se mantém no programa da Queima por pura inércia, apenas porque veio no pacote que em 1980 foi herdado das gerações anteriores?
Ou será que os estudantes de hoje são igualmente solidários e generosos e que é tempo de estender a Venda da Pasta às outras instituições que já são chamadas a participar na Verbena, de acreditar no potencial de mobilização que uma tal acção teria junto da comunidade universitária, e de relançar – à dimensão da Queima de hoje – a iniciativa que “Pantaleão” e os seus pares lançaram há 82 anos atrás?
Fica a sugestão.
Zé Veloso
Nota: As pastinhas da foto são de 1966. A foto foi obtida, com a devida licença, do blogue “O  cão que fuma”, http://www.caoquefuma.com/2011/01/da-serie-vida-que-levei-17-capitulo.html
[ 1 ] Maria José de Figueiredo Carmona da Mota, “Testemunhos”, 1997, distribuição restrita a familiares e amigos
[ 2 ] “Estudantes vendem hoje pastas a favor da Casa de Infância Elísio de Moura”, in Diário de Coimbra de 7/5/2013.
[ 3 ] Hoje, claro está, com o cortejo ao domingo, estas e outras lógicas foram alteradas, a demonstrar os perigos de efectuar mudanças bruscas num sistema que levou dezenas de anos a sedimentar.
[ 4 ] Eng.º Augusto Carmona da Mota, estudante de Coimbra e primeiro Mor da Real República dos Ly-S.O.S. (Porto)
[ 5 ] A Verbena, que no meu tempo era no Jardim Botânico mas teve também lugar no Jardim da Sereia e, caso chovesse, no ginásio do D. João III, era um baile descontraído, ao final da tarde, que dava pelo nome completo de “Verbena e Pôr-do-Sol”. Verbena seria o baile e Pôr-do-Sol seria o lanche? Ou seria o contrário? Ou não se faria distinção alguma? Já não sei ao certo.
[ 6 ] Ana Rita Rigueira Montezuma da Sá Marta, “A Praxe Académica na Universidade de Coimbra”, Mestrado de Política Cultural Autárquica, Faculdade de Letras da UC, 2010/2011 (http://www.academia.edu/5176195/Patrimonio_Mundial_-_A_Praxe_Academica_da_Universidade_de_Coimbra#)

[ 7 ] “Venda da Pasta mobilizou (apenas) 20 estudantes”, in Diário de Coimbra de 8/5/2013.

16 abril 2014

“CAPAS NEGRAS”. UM RETRATO DESFOCADO DA REALIDADE

“Capas Negras”, uma fita de Armando Miranda, filmada em Coimbra (parte final no Porto) em 1946, foi estreada na cidade do Mondego em 19/05/1947 sob forte pateada dos estudantes. A contestação levou a que ministro da Educação Nacional proibisse a exibição da fita uma semana depois. O filme, que apesar de mal-amado em Coimbra viria a ser um êxito de bilheteira no país e no estrangeiro, seria passado 33 anos mais tarde no Teatro de Gil Vicente, por alturas da retoma das praxes académicas (1980) e pela mão da própria Direcção da AAC, gesto que, na prática, emprestou um aval de credibilidade a um retrato da academia de Coimbra de 1946/47 em que esta própria não se revira na altura.
A crónica anterior “CAPAS NEGRAS”. AS VOLTAS QUE O MUNDO DÁ! – recorda a cronologia dos acontecimentos. Na crónica de hoje procurarei analisar o grau de adesão do filme à realidade académica coimbrã daquela época e descortinar as razões do descontentamento e burburinho que se levantou.
E importa desde já referir que a acção do filme está bem datada, quer pela celebração dos 40 anos do curso jurídico de 1906 quer pela exibição do cartaz da Queima de 1946. E, assim sendo, não é desculpável a utilização de clichés e realidades que o argumento vai buscar, porventura, a velhos livros de memórias de estudantes mas que, naquela altura, não correspondiam já à realidade.
Quando vemos hoje o filme, descontraidamente sentados no sofá e com o distanciamento de quase 70 anos, não podemos deixar de sorrir com o argumento e de exultar, até, como aquele final “hollywoodesco”, delirantemente impossível. E a pergunta surge de imediato – Então onde é que está o mal? Mas, tal como o diabo, o mal está nos detalhes...
     Das minudências que não matam mas amolentam…
Ainda não tinham decorrido 5 minutos e já o argumento registava duas razoáveis calinadas, ao chamar “vicente” ao toucado da tricana – confundindo o toucado propriamente dito com a fitinha preta que o segurava – e ao dizer que a tricana Joaninha tinha «vivido e amado desde Santa Clara Nova a Santo António dos Olivais». Como escreveu o cronista do “Sempre Fixe”, talvez fosse «para evitar confusões com Santa Clara-a-Velha, que fica p’ró Alentejo» [A], pois que, em Coimbra, existia, apenas,… Santa Clara.
A crítica não deixou passar estes deslizes em claro. E a tricana que constitui a segunda mais importante figura feminina do filme foi apelidada de «tricana do “ancien regime”, amavelmente cedida pelo Rancho de Coimbra» [A] porque os trajes daquele cliché de tricana há muito não eram utilizados, tresandando a folclore. E a mostrar que não dá para inventar quando se faz um filme datado, ainda por cima relativo ao ano anterior à sua estreia, veja-se a crítica que foi feita à reunião dos 40 anos do curso jurídico: «…(o antigo estudante), quando volta, não vai confraternizar com os antigos colegas em tabernas sórdidas» [B]. A 70 anos de distância, ninguém ligaria a este pormenor e até acharia que era muito típico.
Tratando-se, embora, de pequenos descuidos – como trocar o “Portugal dos Pequeninos” pelo “Ninho dos Pequeninos” (existiam os dois mas em locais diferentes), dizer que os professores universitários também envergam capa e batina (envergavam toga e uma batina de modelo diferente) ou referir “vem aí o acto grande», (prova que nos remete para o séc. XIX) – estas incongruências revelaram um guião pouco cuidado, foram alvo de chacota e ajudaram a engrossar o coro de protestos que os verdadeiros erros de palmatória e as «ofensas ao brio e hombridade do estudante coimbrão» [B] haveriam de provocar.
     Dos fados e canções…
Como exemplo de tais erros de palmatória e desrespeito total pelas tradições coimbrãs, a cena da serenata é de arrepiar e não me admiraria se tivesse sido ela o alvo da primeira grande pateada na noite da estreia. Sigamos a cena: dentro da tasca da Ti Zefa, ouvem-se, vindos do exterior, os primeiros acordes do fado de Coimbra “Feiticeira”; Maria de Lisboa (Amália Rodrigues), a criada da tasca, abre a janela e apoia-se no parapeito, a escutar; do arvoredo surge o estudante José Duarte (Alberto Ribeiro), vestido de capa e batina e acompanhando-se a si mesmo à guitarra; terminado o fado, Maria de Lisboa dá-lhe réplica, cantando uma canção de Lisboa que José Duarte vai acompanhando, finda a qual, o estudante entende por bem dar-lhe tréplica, cantando a canção “Coimbra” de Raul Ferrão e José Galhardo, canção que, anos mais tarde, correria mundo como "Avril au Portugal"!
Dando de barato que nos anos 40 as serenatas tinham por alvo apenas as colegas ou as meninas da sociedade coimbrã, sobra ainda um chorrilho de contradições. Desde logo o facto de o cantor se acompanhar a si próprio, recuperando o cliché do Hilário (séc. XIX), quando nos anos 40 a segregação entre cantores e instrumentistas era sagrada, mesmo que o cantor soubesse também tocar guitarra ou viola. Depois, a exposição da mulher à janela, contrária à tradição vigente, que obrigava a uma dissimulação por detrás das cortinas, agradecendo apenas com o abrir e fechar de luzes. Por maioria de razão, o despautério de pôr a contemplada a dar réplica, tomando parte activa na serenata. E, finalmente, o facto nada menor de se simular uma serenata de Coimbra onde apenas existe um fado de Coimbra, num conjunto de três canções! Aliás, a este propósito, o filme é sintomático: apresentando-se como uma fita de homenagem a Coimbra e à sua academia, passa 13 canções em “voz on”, sendo que apenas 2 são de Coimbra! E ainda queriam que a malta não pateasse…
Um parêntesis para dizer que, se Amália Rodrigues tinha defensores e detractores, o mesmo se não passava com Alberto Ribeiro, verdadeiramente detestado entre os estudantes. O seu ar de “dandy” e a sua voz afectada não casavam com o “standard” do estudante coimbrão. E foi tomado de ponta. Por isso ou por ter tido a ousadia de cantar um fado de Coimbra, ou até pelas duas coisas. Mas dizia-se que não o cantava bem, sendo «acusado de não perceber nada do estilo de Coimbra» [C], «apesar de ensaiado directamente pela mão de Ângelo Vieira de Araújo» [C].
Querendo saber mais a respeito da voz de Alberto Ribeiro, pedi a opinião ao Dr. Augusto Camacho, contemporâneo do filme e actual decano dos cantores de fado de Coimbra, o qual fez questão de me dizer que não tinha concordado com a pateada. Na sua opinião, Alberto Ribeiro cantava muito bem mas… «para cantar é preciso haver expressão (sentimento, alma, entrega), interpretação (colocação de voz, volume, técnica de canto) e dicção». E, para ele, Alberto Ribeiro, sendo exímio na interpretação, pecava na expressão. Utilizando um dito lisboeta, eu diria que não é fadista quem quer mas sim quem nasceu fadista. E diria mais: em termos de dicção, com a ressalva de a péssima sonorização do filme me poder ter induzido em erro, pareceu-me ouvir trocas de vv pelos bb (eu daria a bida inteira) na interpretação da “Feiticeira”, o que, a confirmar-se, não teria deixado de ter irritado uma cidade que se gabava de ser onde melhor se falava o português, ou seja, o português sem sotaque algum.
Continuando no tema das canções, também nas fogueiras de São João o guião não escapou à repescagem de tradições do séc. XIX, entretanto caídas em desuso. Isto porque, em 1946, tricanas, estudantes e futricas já não cantavam mais ao desafio. Mas, mesmo querendo repescar uma tal tradição, bom seria que o tivessem feito com uma música popular da terra e não com mais uma modinha a lembrar o Santo António de Lisboa.
Quanto ao segundo fado de Coimbra – a balada “Vou partir”, interpretada por Domingos Marques – não sofreu contestação aparente. Porém, a ideia de colocar os quintanistas em cortejo pelas cercanias da cidade, a cantar a sua balada de despedida, é pura fantasia. Digamos que, neste caso, os guionistas foram precursores de algo que se tornou banal no meio académico pós 1980 – o inventar de tradições.
            Do viver numa República…
Várias vozes se levantaram – inclusive no comunicado da Rás-Teparta, república onde decorreu uma parte das filmagens – dizendo que aquilo não era uma verdadeira república, quer no cenário montado quer na forma de viver. De facto, fica muito a dever à realidade aquela sala que mais parece um albergue espanhol, onde quem quer estudar tem de gramar com os outros em cima (como se o quarto não fosse o local normal de estudo), onde, salvo o caloiro (!?), nunca se despe uma batina, seja para jogar à batota seja para estar ao cavaco (como se alguém andasse dentro de casa "com o seu único e melhor fato"), onde, no meio do barulho, um estudante alerta «Baixinho! Por causa da vizinhança…» (esquecendo que as Repúblicas estavam sempre instaladas em casas sem vizinhos quer por baixo quer por cima, e tal problema não se colocava)!
Quanto ao “prego”, descontando as trapacices do Manecas (Artur Agostinho) de que mais adiante falarei, ele era um recurso tradicional do estudante de Coimbra. Havia, porém, um último recurso que, infelizmente, o guião não se lembrou de incluir – o “andar á lebre”. Foi pena, já que “pregos” há em todo o lado, enquanto “andar à lebre” só em Coimbra o conheci.
            Das tradições académicas e da praxe…
Na cena da trupe, a imobilização do caloiro, de tesoura e varapau (?) em riste, bem à mostra para a câmara, lembra-me aqueles postais ilustrados antigos. Mas nem a tesoura se exibia nessa fase anterior ao rapanço propriamente dito nem o varapau era usado em 1946. Seria uma moca invertida? Mas o que verdadeiramente pôs o filme a ridículo, enquanto suposto retrato das praxes, foi o veterano que, candidamente, «pede protecção para o caloiro»! Em Coimbra, a protecção nunca se pediu! Quem tinha direito a proteger, fosse veterano, quintanista, uma simples senhora ou uma irmã, dizia apenas “Está protegido!”. Se é um direito, não se pede. Exerce-se!
Ao contrário da cena da trupe, a do rasganço está bastante natural, a contrastar com a artificialidade de uma boa parte das cenas! Só lhe aponto um senão: é sabido que naquela época todos os formados eram de imediato rasgados, fosse qual fosse a nota obtida; porém, a sequência da cena (onde são anunciadas as notas de três alunos mas apenas José Duarte é rasgado) permite a conclusão apressada de que o rasganço acontece como sinal de júbilo pela mais alta classificação obtida (15 valores).
Em termos de tradições a académicas, outra coisa que não caiu bem foi o estender das capas para serem pisadas pelo juiz, já que era uma distinção raríssima, só concedida a figuras de muito elevado prestígio. Admito que os tempos tenham banalizado este procedimento que, quando visionei o filme, nada me espantou, num contexto irreal de um juiz que julga não de acordo com a lei mas de acordo com o seu sentimento coimbrão.
Finalmente, a filmagem do cortejo da Queima de 46, do Largo da Feira ao Largo da Portagem, é um documento cheio de interesse, que me lembra em muita coisa a Queima do meu ano (1966). Destaco alguns pormenores: (i) um grupo – que penso dever ser de quintanistas – que prescinde da cartola, “fraque” e bengala (fantasia criada depois de 1932) e se apresenta de borla e capelo (!); (ii) o elevado número de estudantes de capa e batina que se apresentam de laço (cheira a festa!) e sem colete (cheira a Verão!); (iii) as estudantes fitadas que, nesta altura, iam nos carros com seus vaporosos vestidos. E dá para ver uma parte do Largo da Feira ainda intacta, o Arco da Traição ainda não demolido e a pala de entrada do Teatro Avenida ainda de pé.
            Questões comportamentais e de imagem…
Mas, a avaliar pelos escritos dos jornais, o que mais deixou a academia fula foi aparecerem, como elementos centrais do filme, comportamentos reprováveis em que a generalidade dos estudantes se não revia, afectando a imagem do académico de Coimbra que, graças «à inconsistência criminosa do argumento ( … ) aparece deturpado e amesquinhado» [D].
A gota de água que encheu o copo terá sido a figura do estudante Manecas (Artur Agostinho), o qual – à custa de espoliar as palonças (sic) da cidade, a quem, uma a uma, ia prometendo casamento – era a fonte de sustento da República nos dias de aperto. Tomando a parte pelo todo, o estudante de Coimbra sentia-se, assim, apelidado de “chulo” com todas as letras.
E também de “falhado”! Como escreveu Rui Vieira Miller [B], o filme resultou «(n)uma coisa mais falsa do que Judas que apenas serve para espalhar por essas terras que o estudante de Coimbra passa a vida entre mulheres e vinho, se sustenta com o produto de roubos e com o dinheiro de amantes, para acabar por tirar um 15 na Faculdade de Direito e ter depois o escritório às moscas»
E até o comportamento do juiz foi criticado, por ser indigno de um juiz formado em Coimbra – «… um juiz que abandona a sua integridade de julgador impoluto pela sentimentalidade dum faduncho com laivos de Coimbra e fortes odores de Mouraria, dum faduncho que substitui com vantagem o estafado peru de antanho…» [E]
            Uma academia atraiçoada…
Ao saber que estava sendo rodado um filme de nome “Capas Negras”, criou-se a expectativa de que ele respeitasse e desse o devido relevo às tradições da academia, exaltando os seus valores, que tanto prestígio e tanta saudade tinham trazido a Coimbra ao longo de séculos. E, afinal, o que se via agora? – Uma fita onde os interesses comerciais tinham ditado um argumento que amesquinhava os estudantes e as raparigas da cidade; um argumento cheio de erros, alguns deles grosseiros; e uma injecção de fados e canções de opereta a cheirar a Lisboa, logo ali, na terra onde Hilário, Menano, Bettencourt, Paradela de Oliveira, Goes e muitos mais tinham dado voz ao fado de Coimbra.
A academia fora usada! O seu nome e o peso das suas tradições, bem como o valor iconográfico das suas capas negras, tinham sido apenas um chamariz para que alguém ganhasse dinheiro à sua custa e, ainda por cima, maltratando-a.
«A academia sentiu-se revoltada com justa razão…» [D]. Mas no meio do torvelinho destas emoções, ainda que a generalidade das críticas fossem endereçadas a Armando Miranda e seus colaboradores directos, também a República Rás-Teparta não deixou de ser visada. Sendo uma República de formação ainda recente, no mínimo, terá sido ingénua ao aceitar que uma boa parte das filmagens decorresse no seu seio sem conhecer o argumento e confiando apenas em que, depois das filmagens concluídas, Armando Miranda cuidasse «de saber da (sua) opinião sobre a qualidade das cenas a apresentar» [F].Também terão concitado contra si algumas más vontades já que, tanto quanto me foi referido, coube-lhes a missão de escolher os estudantes que entraram como figurantes nas filmagens, havendo quem, gostando de entrar, tivesse ficado de fora.
            Uma academia que não quer ser objecto de feira…
Mas o que os estudantes da Rás-Teparta não saberiam (a República fora fundada apenas em 1942/43 por estudantes vindos do Norte), é que, ao abrirem as portas a Armando Miranda sem consultar o resto da academia, estavam a contrastar em absoluto com o que se passara em 1941 com António Lopes Ribeiro, o qual, querendo fazer um filme sobre os estudantes de Coimbra mas não dispensando a sua colaboração, apresentou e discutiu o argumento com os seus representantes, numa reunião a que assistiu, até, o vice-Reitor Dr. Maximino Correia [G]. Isso mesmo foi lembrado, três dias depois da exibição do “Capas Negras”, em carta publicada no Diário de Coimbra pelo estudante de Medicina João Belarmino Soares da Mota, carta da qual transcrevo a seguir um pequeno extracto [H]. 
«Há anos, António Lopes Ribeiro, quis fazer um filme sobre a história da Academia coimbrã. E no Salão Nobre da A. Académica falou do seu projecto aos estudantes.
«Respondeu-lhe, por estes, o então aluno da Faculdade de Medicina, Fernando Namora, chamando-lhe a atenção para certos pontos que o realizador cinematográfico deveria observar ao tratar de tal assunto.
«António Lopes Ribeiro tinha acentuado o condicionalismo a impor ao filme, por motivos de ordem comercial.
«Fernando Namora respondeu que a Academia de Coimbra não desejaria ser tratada como objecto de feira.
«E tudo ficou por aí.»
Este episódio passado em 1941 mostra bem o denodo com que os estudantes de Coimbra de então defendiam o legado que lhes fora deixado por séculos de história; e ajuda a compreender o calor posto na sua defesa em toda esta saga do “Capas Negras”.  

Zé Veloso
[A]“O filme negro da academia”, rubrica “Arrufadas de Coimbra”, in “Sempre Fixe” de 29/5/1947
[B] Rui Vieira Miller, “O escândalo de Capas Negras”, in “Via Latina” de 10/07/1947
[C] AMNunes, “Coimbra é uma lição” in “Guitarra de Coimbra (Parte I)”, http://guitarradecoimbra.blogspot.pt/2006/08/coimbra-uma-lio-rainha-incontestada-e.html
[D] “Crónica de Cinema. Capas Negras”, in Diário de Coimbra de 21/5/1947
[E] “Carta do Presidente da Direcção da Associação Académica de Coimbra ao Ministro da Educação Nacional, in Via Latina” de 10/6/1947
[F] Mário V. Trêpa, “Crónica dos Descobrimentos da Real República Rás-Teparta”, edição do autor, Santo Tirso, 2004
[G] António José Soares, “Saudade de Coimbra” 1934-1949”, Jul, Ago e Nov 1941 e Mar 1942, Almedina.
Nota: O tema é desenvolvido por AJS sob o item “República dos Pardais”, título previsto para o filme que António Lopes Ribeiro não conseguiria realizar.
[H] Carta de João Belarmino Soares da Mota, aluno da F. de Medicina, in Diário de Coimbra de 22/5/1947

Fotografia do cartaz do filme obtida do blogue "Restos de Colecção".
Nota adicionada em 03/12/2022: Na sua versão inicial, este post continha um link para o "YouTube" que permitia visualizar o filme na íntegra. Em data que não sei precisar, esse link foi bloqueado por questões relativas a direitos autorais. 

30 março 2014

“CAPAS NEGRAS”. AS VOLTAS QUE O MUNDO DÁ!

CAPAS NEGRAS foi um filme controverso. Proibida a sua projecção em Coimbra pelo Ministro da Educação, a pedido da academia da cidade, viria a constituir o maior êxito de bilheteira de qualquer filme português do seu tempo. Rejeitado por aquela mesma academia nos anos 40, viria a ser apontado como “modelo de tradição” nos anos 80, aquando da retoma das praxes interrompidas depois da crise de 69.
Nunca tinha prestado atenção ao filme até me ter apercebido que ele está hoje presente em sites ligados à praxe e demais tradições académicas e que é visionado pelos actuais estudantes na procura de “testemunhos autênticos” das antigas tradições. Foi devido a esta constatação que resolvi procurar resposta para duas questões que me pareceu interessante trazer aqui – qual o grau de adesão do filme à realidade da Coimbra académica de 40; e que razões terão levado a academia da época a rejeitar o filme.
Vamos aos factos!
Por alturas de Abril de 1946, conforme viria a contar anos mais tarde Mário Trêpa (1), o produtor e realizador cinematográfico Armando Miranda chega uma bela noite à República do Rás-Teparta pela mão de Carminé Nobre, autor do célebre livro “Coimbra de Capa e Batina”. Explica que pretende «filmar uma história de figurino romântico, passada em Coimbra, tendo como esquema central a vida académica no seio de uma República Coimbrã»; revela quais serão os principais actores da fita, à cabeça dos quais Amália Rodrigues e Alberto Ribeiro; refere que «também os componentes da República e eventualmente mais alguns estudantes tomariam parte na cena do adeus a Coimbra»; e pede para que a Rás-Teparta seja palco da acção. Conta Mário Trêpa, que à época era o Rás-Mor, que «depois de algumas ponderações, decidiu-se aceder ao pedido formulado, com a condição de manifestarmos a nossa opinião na apreciação das cenas a apresentar».
As filmagens começaram pouco depois, incluindo cenas rodadas no interior da República e em exteriores da cidade, e uma reportagem sobre o cortejo da queima daquele ano, realizado a 27 de Maio. Há igualmente cenas filmadas na cidade do Porto, onde decorre a última parte do filme.
Conclui-se da leitura dos jornais da época que as filmagens decorriam ainda depois da Queima, em plena época de exames. Porém, nem tudo iria bem, já que António José Soares (2) alerta para o facto de que, em Julho desse mesmo ano, «começaram a aparecer sinais de desconfiança acerca da fita que Armando Miranda estava a filmar sobre a vida académica de Coimbra e algumas pessoas da cidade vieram afirmar, publicamente, que não intervieram na sua realização».
A confirmar este facto, o Diário de Coimbra (DC) de 22 de Julho noticia: «Ao contrário do que foi anunciado nos jornais, informa-nos o jornalista Carminé Nobre, de que não tem qualquer interferência no filme “Capas negras”, de Armando Miranda. Este nosso camarada, simplesmente, se limitou, a pedido dum amigo residente em Lisboa, a apresentar aquele realizador a algumas entidades desta cidade.»
Passa-se o tempo e, um mês antes da estreia do filme, outro sinal de mal-estar aparece na imprensa coimbrã: num artigo do DC de 20/04/1947, com um título bem provocador – “Amália, porque não cantas o fado de Coimbra? – é dito que Alberto Ribeiro a cantar o fado de Coimbra «não se pode ouvir, tão mal o canta…»
Finalmente, em 19/05/1947, nas vésperas do início da Queima, o DC anuncia a estreia do filme para as 21:45 desse dia no Cinema Tivoli, «com a assistência das Ex.mas Entidades Oficiais». Amália é a cabeça de cartaz, com direito a foto. Anuncia-se uma "Soirée Elegante"...
Mas a estreia foi um fiasco! António José Soares (2) refere «como era de calcular, a estreia da fita “Capas Negras” produziu grandes manifestações de protesto no Cinema Tivoli e, também, nos cafés e jornais». Mas Mário Trêpa (1) é mais detalhado: «Infelizmente, Armando Miranda não cumpriu a sua promessa e não cuidou de saber da nossa opinião sobre a qualidade das cenas a apresentar. Tal procedimento, como seria fácil de prever, resultou num verdadeiro desastre na sua estreia em Coimbra, no Cinema Tivoli. Foi uma pateada memorável».
Dois dias depois, a crónica de cinema do DC, não só racha o filme de alto a baixo como termina com a opinião de que «não deve a academia de Coimbra consentir pelo menos sem o seu protesto que tal filme continue a exibir-se e sobretudo que ultrapasse as nossas fronteiras, pois que falseia e amesquinha a verdade».
No dia seguinte, o mesmo DC publica uma carta do estudante de Medicina João Belarmino Soares da Mota, o qual, a terminar, endereça «uma boa parte das pateadas do Tivoli» aos colaboradores (estudantes) de Armando Miranda, que apelida de ignorantes e de «“técnicos” da praxe».
Passado um dia, a R. R. Rás-Teparta defende-se dos ataques de que é alvo, através de uma carta publicada no DC. Nesta missiva a República afirma a sua boa-fé na colaboração que deu ao filme, sente o maior desgosto por tudo ter sido mal interpretado, afirma que o estudante da Rás-Teparta não têm as características psicológicas nem a degradação de carácter com que o filme apresenta o estudante de Coimbra, e aproveita para informar que «sob o pretexto de hipotéticos efeitos de ordem técnica, os interiores da nossa República apresentam-se modificados de maneira irreconhecível, em nada correspondendo à verdade».
Por estes dias, a Direcção da AAC envia ao ministro da Educação Nacional uma carta onde, «exprimindo o sentir da Academia, solicita que seja proibida, como se impõe, a exibição do filme “Capas Negras”, tal como se apresenta, em todo o País, Colónias e Estrangeiro».  Entre outros argumentos, a AAC considera que o filme é «atentatório da dignidade, brio e reputação da Academia de Coimbra, trazendo para ela a repulsa de todos quantos, desconhecedores do ambiente coimbrão, possam ver o filme em Portugal e sobretudo no estrangeiro»; e que é «prejudicial à Universidade de Coimbra, por poder levar ao afastamento de futuros alunos pela falsa visão dada da vida académica».
Dia 27, dia do cortejo da Queima, a primeira página do DC noticia que «o sr. Ministro da Educação Nacional, proibiu a exibição do filme “Capas Negras” que ontem saiu das telas de vários cinemas». E, nessa noite, o Tivoli passou a exibir um filme de Humphrey Bogart…
Na sequência destes eventos, aparecem na imprensa mais artigos de opinião contra o filme, cuja ferocidade facilmente se depreende pelos títulos – «O Filme negro da Academia»(3) e  «O Escândalo de Capas Negras» (4).
Entretanto, em Junho, há notícia de que o filme enchia salas no Porto e em Lisboa. Mas a Coimbra só voltaria em Setembro, providencialmente… num mês de férias.
Armando Miranda, definitivamente queimado em Coimbra mas ciente do filão comercial que a vida académica poderia proporcionar, ainda tentou repetir a façanha em 1949, com a fita “Hilário”. Porém, «a novidade foi acolhida nos meios estudantis como se tratasse de mais um negócio daquele cineasta à custa das tradições e vultos académicos» (2) e a ideia abortou depois de vários organismos académicos, incluindo o T.E.U.C., se terem mostrado contrários à realização da fita.
Mas o mundo dá muita volta! E 33 anos mais tarde, mais precisamente a 21 de Janeiro de 1980, “Capas Negras” seria novamente exibido em Coimbra mas, agora, com aplausos em lugar da pateada! E não no pequeno Tivoli mas no Teatro Académico de Gil Vicente e com a bênção da Direcção Geral da AAC! Foi durante a Semana de Recepção ao Caloiro (uma novidade na praxe coimbrã), à guisa de demonstração de como eram as praxes interrompidas onze anos antes. Como escreveu António Manuel Nunes (5), «o filme era recuperado como "documento histórico", apto a ensinar aos estudantes as tradições perdidas».
– Volta, Armando, que estás perdoado!
Feita a cronologia dos factos, falta encontrar resposta para as duas perguntas a que me propus responder – qual o grau de adesão do filme à realidade da Coimbra académica de 40; e que razões, em concreto, terão levado a academia da época a rejeitar o filme.
Fica para o próximo post  “CAPAS NEGRAS”. UM RETRATO DESFOCADO DA REALIDADE – que isto hoje já vai longo.
Zé Veloso
-------------
(1) Mário V. Trêpa, “Crónica dos Descobrimentos da Real República Rás-Teparta”, edição do autor, Santo Tirso, 2004.
(2) António José Soares, “Saudade de Coimbra”, Almedina.
(3) Semanário “Sempre Fixe”, rubrica “Arrufadas de Coimbra” de 29/5/1947
(4) “Via Latina” de 10/6/1947
(5) AMNunes, “Coimbra é uma lição” in “Guitarra de Coimbra (Parte I)”, http://guitarradecoimbra.blogspot.pt/2006/08/coimbra-uma-lio-rainha-incontestada-

17 março 2014

IN ILLO TEMPORE – SEMPRE JOVEM, 112 ANOS DEPOIS!

In illo Tempore – no seu título original, In illo Tempore. Estudantes, Lentes e Futricas – é, porventura, o mais reeditado e mais lido livro de memórias de um estudante de Coimbra. A primeira edição, da Livraria Aillaud & C.ia Paris-Lisboa, data de 1902 e é listrada com fotografias várias de desenhos de António Augusto Gonçalves
O seu autor, José Francisco Trindade Coelho, nasceu a 18 de Junho de 1861 no Mogadouro e frequentou a Faculdade de Direito da U. C. de 1880 a 1885. Naquele tempo, Trindade Coelho estudou praticamente à sua custa, já que o pai lhe cortou a mesada depois de um chumbo logo no 1.º ano. Para tanto, foi “sebenteiro”, deu explicações e trabalhou como jornalista.
O seu livro revela um apurado sentido de humor e uma extrema jovialidade, que não seriam de esperar na personalidade de alguém que teve de estudar a pulso e cuja vida profissional viria a ser bastante complicada. Dá ideia que, enquanto escreve as suas memórias, Trindade Coelho se vinga e liberta das injustiças de uma vida na qual já não se sentia bem e que cedo decidiria abandonar, suicidando-se em Lisboa, a 9 de Agosto de 1908, ou seja, 6 anos apenas depois de ter feito sair um dos livros mais bem-dispostos que me foi dado ler!
In illo Tempore foi ao longo de todo o último século um best-seller e é, ainda hoje, de leitura obrigatória para quem queira conhecer a vida académica de Coimbra dos finais do séc. XIX (e, até mesmo, do rodar para o séc. XX, já que Trindade Coelho nos relata também alguns factos ocorridos entre a sua saída da Universidade e a edição do livro).
Ali se evocam episódios da vida académica, das aulas, dos exames, das estúrdias, da praxe, das lutas políticas de então, da vida citadina, da vida universitária, dos estudantes, dos lentes, dos futricas, das tricanas, das brigas, dos amores e desamores, cuja leitura nos conduz até à maneira de viver da Academia, aos seus costumes, aos seus tiques e às suas gentes.
Ali se reproduz uma profusão de poemas e prosas satíricas, entre os quais A Niveleida – onde os “polainudos” arrasam a “briosa” – e o poema de resposta dos “briosos” aos “polainudos” – A Bolha – numa época em que a bola de futebol ainda não tinha chegado a Portugal mas onde em Coimbra já havia uma “Briosa”.
Ali, em cerca de 30 capítulos, de meia dúzia de páginas cada, se passam em revista temas como a Festa das Latas, o Saraiva das Forças, o Orfeon Académico, a vida nas Repúblicas, os cafés da Alta, o Centenário da Sebenta, as fogueiras de S. João, a cabra, as récitas dos quintanistas, tudo nos sendo contado em jeito de estória à hora do café, com graça, espírito crítico, algum veneno e bastante detalhe.
Para "cheirarmos" um pouco o estilo de escrita de Trindade Coelho, aqui fica uma passagem deliciosa do capítulo “ASebenta”:
«No tempo em que eu andava em Coimbra, ainda a boa e imortal sebenta reinava em todo o seu esplendor! Eu nem fazia sequer ideia, ao chegar a Coimbra, do que vinha a ser isso da sebenta; mas, industriado logo a tal respeito, vim a saber que era uma espécie de folhinha litografada, formato 8.º, que saía todos os dias compendiando a explicação do lente; que se chamava “sebenteiro” ao que a redigia; que custava sete tostões por mês cada uma; que eram três em cada ano, visto as cadeiras em cada ano serem três; e, finalmente, que, enquanto o lente explicava a lição para o dia seguinte, só o sebenteiro ouvia o lente, e que os mais, todos, e eu portanto, podiam muito bem ler o seu romance, fazer o seu bilhetinho e passá-lo ou comentar os que vinham dos outros – ou então, se preferíssemos, dormir ou fazer versos!
Não havia nada de melhor! Além disso, algumas metiam também as suas piadas; outras davam caricaturas – e sebenteiro havia que amenizava por tal forma aquela estopada, que até dava versos para o fado no fim de semana, e convocava os discípulos, em anúncios, para trupes aos caloiros, ou outras pândegas!»
Dada a sua avançada idade, In illo Tempore é hoje facilmente consultável na internet, podendo ser lido a custo zero. Mas, para mim, a obra vale bem o esforço de aquisição de um volume que ainda exista pelos alfarrabistas, se uma nova edição não aparecer, entretanto, no mercado.
Boa leitura… ou releitura!
Zé Veloso

02 março 2014

A VIOLÊNCIA NA PRAXE

Está quase a fazer dois anos que esta foto apareceu no diário As Beiras online, a propósito de uma notícia relacionada com abusos da praxe em Coimbra. A foto diz tudo: a prepotência sobre o mais fraco e indefeso, a posição humilhante e degradante das caloiras, a presença sádica das praxistas de turno e, para que o quadro fique mais impressivo, a constatação de que a máxima o homem é o inimigo do homem resulta ainda mais chocante quando conjugada no feminino.
Por essa altura, entendendo eu que as praxes devem ser reguladas exclusivamente pelos estudantes, escrevi no Penedo d@ Saudade – TERTÚLIA: se os actuais estudantes universitários se não empenharem fortemente no reverter desta situação, alguém o irá fazer por eles. O tempo correu e, na sexta-feira passada, sob pressão da reacção da opinião pública aos acontecimentos do Meco, a Assembleia da República aprovou por unanimidade uma resolução contendo um conjunto de medidas visando acabar com as praxes violentas e abusivas, bem como com práticas degradantes e atentatórias da dignidade humana ligadas a essas mesmas praxes. E os estudantes deixaram passar uma bela oportunidade para afirmarem a sua tão apregoada responsabilidade e a sua tão desejada autonomia. Pior, viraram contra si o país!
Como foi possível chegar até este ponto?
Na minha Coimbra de 50 e de 60, a praxe estava profundamente enraizada na cidade, uma cidade pequena e fechada, onde ao longo de mais de quatro séculos as suas duas sociedades – a futrica e a académica – se tinham sabido acomodar uma à outra, numa relação de dependência recíproca que, pese embora as inúmeras escaramuças de percurso, fazia com que a cidade se revisse na sua academia e a academia se revisse na sua cidade.
Como bem explica António Rodrigues Lopes [1], a sociedade académica estruturava-se então – pelo menos, já desde o séc. XIX – de acordo com os cânones de uma sociedade tradicional, com um projecto socio-político, personalizado, isto é, dotado de identidade bem definida, não lhe faltando sequer os instrumentos para exercitar ou articular a sua sociedade política tendo por suporte uma classe hierárquica estruturada apenas em função do grau académico e não do nascimento ou do acaso.
Essa sociedade tinha, no meu tempo, um universo social (estudantes universitários, dos liceus e dos colégios particulares), um território de vigência (a cidade de Coimbra), um núcleo territorial de dominação (a Alta), santuários onde nem a polícia ousava entrar (da Porta Férrea para dentro e as Repúblicas) e uma lei – a Praxe – uma praxis consuetudinária, passada (e alterada) de geração a geração, cujo primeiro código digno desse nome surgiu apenas em 1957 mas era, dez anos mais tarde, à data da minha saída de Coimbra, totalmente desconhecido da larga maioria dos seus estudantes, entre os quais eu me incluía. Porque a força da praxe não estava no Código mas sim na tradição, que tal código se limitou a decantar e registar.
Mas a dita sociedade tradicional tinha também os seus meios de policiamento para que a sua lei – a praxe – fosse cumprida (as trupes e as revistas por parte dos mais graduados ), os seus tribunais (funcionavam nas Repúblicas), os seus órgãos de recurso e de interpretação da lei (o Conselho de Veteranos), o seu promulgador dos decretos, espécie de Presidente da República (o Dux Veteranorum), e o seu órgão máximo de decisão (as Assembleias Magnas), a quem cabia decidir nas grandes matérias, nomeadamente greves escolares e luto académico.
Analisando as coisas por outro prisma, pode dizer-se que havia, em simultâneo, vários poderes e realidades que contribuíam, cada um a seu modo, para a continuidade, a criatividade, a afirmação e o bem-estar da sociedade académica:
  • desde logo, a hierarquia individual dos seus membros perante a praxe, a qual reflectia a progressão académica dentro do curso, ou seja, a hierarquia do mérito;
  • os veteranos e o seu conselho, reflectindo o peso da antiguidade, o saber dos velhos, o “conselho dos anciãos”, essenciais a uma sociedade cuja lei foi não-escrita durante séculos;
  • a Associação Académica de Coimbra, reflectindo o poder eleito pelos estudantes, desde 1887;
  • as Repúblicas (e o Conselho de Repúblicas), as mais fiéis guardiãs do espírito da praxe (para além do exercício da autogestão e da iniciação política), já que a sua existência e a sua memória se mantinham vivas para além da passagem efémera de cada repúblico por Coimbra;
  • os organismos como a Tuna, o Orfeon, o TEUC e tantos outros que, nas suas digressões, levavam a chama da Academia de Coimbra aos quatro cantos do mundo;
  • as secções culturais e desportivas da AAC, onde era possível exercitar o espírito e o corpo;
  • a Sociedade Filantrópico-Académica, que teve um papel determinante no apoio aos estudantes mais carenciados no séc. XIX;
  • a Briosa – equipa de futebol da AAC – elemento agregador, uma causa domingo a domingo renovada, que ainda hoje "guarda para si" a denominação pela qual a Academia de Coimbra era conhecida muito antes ainda de haver futebol;
  • as festas académicas, com a sua "liturgia", à cabeça das quais a Queima das Fitas, onde (quase) todos subiam um escalão na hierarquia da praxe;
  • os antigos estudantes espalhados pelo país e pelo mundo, quer pelo testemunho individual, alguns através da escrita das suas memórias, quer através das costumadas visitas de curso por alturas da Queima quer, ainda, pela militância das várias Associações de Antigos Estudantes de Coimbra.
Costuma dizer-se que a história nunca se repete. E é fácil de compreender que – depois de a praxe ter sido suspensa em 1969 e retomada duas a três gerações de estudantes mais tarde, já em pleno período democrático pós-revolucionário e com alterações profundas na sociedade – seria impossível que renascesse nos mesmos moldes e que não se sentisse, até, órfã de referências importantes e fora de contexto, como uma flor guardada em estufa que perdeu de vista o seu jardim.
Mas as praxes (que não a praxe, que essa não se transplanta) pegaram de estaca, até noutras paragens, mesmo em sítios cuja terra não estava preparada para as acolher. Terá começado com as Queimas – festa rija é sempre de apoiar! – e com o uso da capa e batina, e vá de estender-se ao que em Coimbra estava já só em lume brando nos anos 60: a relação de poder dos doutores para com os caloiros, o “praxar”. À falta de tradições ou querendo ir, até, para além delas (onde é que eu já ouvi isto?), vá de escarafunchar no Palito Métrico e de imitar as praxes violentas de há séculos atrás, vá de procurar no YouTube a ver se ainda se podia ir mais fundo,… e o resto está à vista de todos e acabou por contaminar também Coimbra, o sítio onde até teria sido fácil resistir aos exageros que se tornaram virais!
Voltando à sociedade tradicional académica que vigorou até 1969, ela vivia, no meu tempo, em perfeito equilíbrio com a sociedade futrica, a qual contemporizava com os seus excessos (que sempre existiram) e compreendia a sua bizarria. Mas tal equilíbrio só foi possível, porque a praxe evoluiu ao longo dos séculos sempre no sentido civilizacional ou seja, acompanhando o evoluir da sociedade. Assim, as praxes bárbaras que nos são descritas no Palito Métrico de meados do séc. XVIII foram-se humanizando ao longo de todo o século XIX e, nomeadamente, depois da República (1910) e do interregno praxístico de uma década que se lhe seguiu. Como exemplos simbólicos desta evolução, lembro que o selvático Canelão é abolido no final do séc. XIX, restando dele os pontapés-da-praxe com que a equipa de futebol da Briosa passou a bridar os recém-chegados ao team; e lembro ainda que a mais violenta das insígnias da praxe – a moca – desapareceu por completo das mãos dos estudantes, determinando o Código da Praxe de 1957 que, em contexto de trupe, a moca possa ser «substituída por um pau de fósforo com a cabeça por queimar»
Quem for hoje ler o Código de 1957 de forma literal, sem qualquer contextualização na academia coimbrã de então e sem entender os simbolismos que estavam em jogo, verá ali horrores, como seja o bicho e o caloiro serem considerados animais, estando, até, o caloiro situado 2 furos abaixo de cão! Pois devo aqui dizer que, se assim era, os animais do meu tempo eram bem mais respeitados do que os de hoje, pois nunca na minha Coimbra vi caloiros postos de quatro, postura de humilhação efectiva – e não apenas figurada - que é hoje entendida nos meios académicos que discutem estas coisas na internet como perfeitamente normal para um caloiro, entendendo-se, apenas, como anormal e ofensiva, a sua aplicação a não-caloiros!
E este simples exemplo ilustra bem que o que está por detrás da violência que as praxes voltaram a ostentar é, também, um retrocesso civilizacional!
E eu, não desculpando, até entendo! É que, se a praxe académica sempre evoluiu no sentido civilizacional, como poderia ela ter evoluído agora no sentido da tolerância, da humanização e da cidadania, numa sociedade onde a violência gratuita é exibida diariamente até à náusea, onde o poder se confunde com pesporrência e se exerce com arrogância, onde os divertimentos mais bacocos e a humilhação consentida fazem parte dos reality shows em  prime time, onde a Casa dos Segredos obtém o máximo das audiências na televisão?
Mas, no entanto, a sociedade moveu-se, agitou-se, sentiu-se mal! O que quer dizer que as praxes foram longe de mais e o equilíbrio tácito se rompeu. E mesmo que as boas intenções legislativas da A. R. não dêem em nada, já nada voltará a ser como dantes, porque a sociedade acordou. Porque mesmo que a sanção legal não surja, haverá a sanção social. A sociedade, uma vez alertada, vai passar a estar atenta.
Resta aos estudantes moverem-se também, sob pena de o equilíbrio se romper mas, agora, em sentido contrário. E a Academia de Coimbra, por nela residir a raiz das tradições académicas, tem especiais responsabilidades no movimento que se impõe. Assim os seus estudantes e as suas lideranças estejam à altura do momento!
Zé Veloso
Nota 1: Esta análise não pretende branquear excessos e deturpações da praxe que também existiam nas décadas de 50 e 60 do séc. XX. Nem ignorar os diversos movimentos de opinião e rebeliões contra a praxe que existiram em diversas épocas, tão ou mais animados do que aqueles a que hoje assistimos.

Nota 2: Para quem iniciou o post afirmando que "as praxes devem ser reguladas exclusivamente pelos estudantes" poderá parecer estranho que o termine com uma exortação aos actuais estudantes e líderes da Academia de Coimbra. Acontece, porém, que a praxe, as tradições académicas de Coimbra, esse imenso património imaterial que é usufruído e gerido pelos actuais estudantes, não é apenas pertença sua. Ele pertence a todos os que em Coimbra estudaram, bem como à Universidade e à própria cidade de Coimbra.
[1] Lopes, António Rodrigues. A Sociedade Tradicional Académica Coimbrã. Introdução ao Estudo Etnoantropológico.Coimbra, 1982.

22 outubro 2013

À PROCURA DE UMA CHAVE

    Estou mesmo aperreado! Há 3 dias que procuro a chave por todo o lado e não há meio de a encontrar!
    Não que a casa seja muito grande, que o não é. Só que começa a estar um pouco cheia com o que se acumula em quase setenta anos de vida. Com o passar do tempo vamos guardando um pouco de tudo, de papéis importantes a ninharias sem valor algum. De coisas antigas que herdámos até maquinetas obsoletas que talvez um dia venham a ser antiguidades. E, no meio disto tudo… a chave que não aparece!
    Há caixotes de livros, gavetas com cassetes e bobinas de fita, máquinas de calcular, a minha régua de cálculo, pesetas e escudos que não foram trocados a tempo, cacos de louça para colar um dia, películas e slides para organizar “quando me reformar”, fotografias em barda, em álbuns e em envelopes de carta, mapas, cartões-de-visita, um santinho da comunhão solene, convites de casamento, óculos de sol e de sombra, relógios e rádios sem pilha, restos de tudo e de nada, uma botijinha a álcool para aquecer as mãos nas noites frias do Porto, papéis e mais papéis, moedas, ferragens, chaves… mas não a chave que eu procuro.
    Eu sei que não anda longe! Ainda há uns dez ou doze anos me lembro de a ter visto no meio desta confusão a que a minha mulher chama lixo mas que eu espero que, um dia, se tiver a sorte de morrer famoso, lhe venham a chamar “o espólio do Zé Veloso”.
    Já corri todas as cómodas, estantes e escrivaninhas, as gavetas das mesinhas de cabeceira e do toucador. Nem esqueci o velho camiseiro que veio de Ançã! Abri caixas e caixinhas, encontrei mil recordações que já tinha varrido da memória. Espetei, até, um alfinete num dedo. Mas, da chave… nada!
    Esta chave não é como as outras, embora faça a mesma coisa. Quem olhar para ela sem a conhecer, talvez não entenda mesmo que se trata de uma chave. É larga e curta, simétrica, e a pega circular tem no meio uns raios em X. É uma chave absolutamente única!
    Não que com ela abrisse hoje grande coisa! A porta que ela abria já foi feita em pedaços. A casa que ela franqueava já só existe em fotografias ou na nossa imaginação. Por isso esta chave é tão importante para mim. Ela é o último vestígio físico, palpável, que possuo do 333 da Avenida da Boavista!
    Ela é a chave que todos nós levávamos no bolso na hora da saída. Para voltar a entrar na nossa casa – a República – sempre que necessário, sem ter de bater à porta. Porque a figura de ex-repúblico não existe. Quem um dia foi repúblico, repúblico fica para toda a vida.
    Zé Veloso

Nota 1: Quase um ano depois de ter suspendido a escrita no blogue, escrita que só deverei retomar com regularidade lá para o início de 2014, resolvi trazer aqui um texto que publiquei no Kápranós, jornal da Real República dos Lysos – a minha República – aquando do seu último Centenário.

Faço-o em homenagem às Repúblicas de Coimbra, cuja tradição os Lysos perpetuaram no Porto, numa altura em que a sobrevivência de algumas delas poderá estar ameaçada pelo aumento das rendas de casa.
Nota 2: A Real República dos Lysos – a última república sobrevivente do Porto – vive hoje na sua quarta morada. Aquela chave esquisita, que acabaria por encontrar dias mais tarde, abria a porta do 333 da Avenida da Boavista, morada da República no final da década de 60.

31 dezembro 2012

DO ADEUS AO ESCUDO AO ADEUS AO EURO?


Pouco propenso a escrever neste final de ano, muito por culpa do desatino de uma crise que transformou dez milhões e meio de portugueses num bando de “troikados” a quem se vai retirando, pouco a pouco, a alegria e o futuro, lembrei-me de trazer até aqui, como crónica de passagem de ano, um texto escrito há precisamente 11 anos, numa época em que mantinha na mailing list da Briosa uma rubrica intitulada Penedo d@ Saudade, denominação que viria depois a adoptar para este blogue.
31 de Dezembro de 2001
Caros amigos,
De férias no centro do país, escrevo a crónica de hoje à mesa de um café de Aveiro, enquanto tomo uma bica e passo os olhos pela “Visão”. A capa da revista exibe um relógio-despertador, quase a disparar, com uma moeda de 1 euro no lugar do mostrador.
Os euros vêm aí! Daqui a 15 dias ninguém falará já de escudos. A malta irá trocá-los a correr, com a mesma velocidade com que substituiu as matrículas dos carros, inclusive aquelas que, pela idade do veículo, não eram obrigadas a seguir para o lixo. Mas a malta é assim. Gosta de virar depressa as páginas da integração europeia, como se tivesse medo de ficar à porta. Viva a CEE! Abaixo o Escudo!
Aliás, se virem bem, os escudos sempre foram mal-amados. Tal como os seus filhotes, os centavos. Escudos e centavos são palavras duras, sem musicalidade e, como tal, nunca entraram bem no nosso léxico do dia-a-dia. Ainda hoje, quando o escudo vai acabar, continuamos a dizer “vinte e cinco tostões”, “sete e quinhentos”, “dez mil reis”, “cem paus” e “cinco contos”. O escudo nunca conseguiu impor-se verdadeiramente ao “milrei”. Os centavos, mesmo às dezenas, nunca levaram de vencida os tostões. E os contos, talvez por serem contos de reis, sempre nos embalaram melhor que os milhares de escudos da República.
O escudo não me deixa saudades por aí além. Saudades tenho, isso sim, da moeda de 25 tostões, essa maravilha da técnica numismática que, paradoxalmente, conseguia tornar um preço de 7$50 mais redondo que um de 7$00 ou de 8$00!
A moeda mais pequena de que me lembro era a de 10 centavos, o tostão. O tal do vinho “em cima de melão”. A moeda, que era originalmente de cobre, teve de ser substituída por uma de outra liga – os “marcelinhos” – quando o valor do metal superava já o seu valor facial. Antes disso, havia já quem as fundisse para fazer pratos címbalos para baterias.
Com 1 tostão se compravam os chamados “rebuçados de tostão”, que vinham enrolados em jogadores de futebol que se trocavam ao “abafa”. Com 2 ou 3 tostões, já não me lembro ao certo, se comprava o alívio de tomar assento na sentina da Sereia, quando em prolongadas tardes de estudo ao ar livre nos dava a tremideira antecipada dos exames.
Com 4 tostões (um cruzado) se comprava, durante décadas a fio, um papo-seco; ou um bico, que queria dizer a mesma coisa. Com 5 (uma coroa) se mandava um postal e se fazia uma chamada local sem limite de tempo. Barato namoro...
Com 7 tostões se ia de eléctrico até à Baixa, sendo que para regressar à Alta eram precisos 8, o que era já muito dinheiro! Mas, felizmente, “aquele outeiro era mais fácil de descer que de subir” e, por via disso, os eléctricos para cima seguiam cheios; e a malta podia subir a Sá da Bandeira escondida no estribo, fazer de conta que entrava na Praça da República e poupar com isso 1 tostão, já que, da Praça da República para cima se viajava por 7 tostões apenas. Maravilha!...
Com 10 tostões se estampilhavam as cartas. E esse preço cristalizou-se de tal maneira que, ainda hoje, quando em casa pretendo selar um subscrito para o correio, tenho por hábito perguntar por onde andam os selos de 10 tostões (ou seja, os selos de cinquenta e tal escudos).
O papel selado, esse, custava 5 escudos (e nunca 5 mil reis, que com a República não se brinca!). E, a partir daí, resta lembrar que o Combinado N.º 1 ao balcão do “Mandarim” ou do “Casanova” andava pelos 9 escudos, no final dos anos 50, tendo subido ao longo da década de 60 até aos 12$50. A bica rondariam os 10 tostões e o fino talvez andasse pelos 15 ou 20. E quem preferisse comer na mesa, sempre poderia deixar uma “croa de gorja pò Sô Talina”.
Até aqui, todos os “Penedos” focaram sempre temas ligados à Académica, à cidade de Coimbra ou à sua Academia. O de hoje saiu ao lado. Mas, para que não fuja totalmente à regra, só preciso do vosso fio-de-beque. É que, por muito que puxasse pela memória, não me consigo recordar do preço das quotas de sócio da Briosa, nos idos anos de 50 e 60. Quem ajuda?
É hora de acabar a crónica. Peço para pagar a bica, ou melhor, o aluguer da mesa. Como estou num café fino, a conta reza assim: 1 café Esc. 120$00;  Euro 0,60.
120 escudos por 1 café? Bolas! Prefiro pagar em euros!
Um abraço e um bom ano a todos... com muitos euros.
Zé Veloso
…   …   …  
É estranho, não é? Que diferença entre o estado de espírito que existia no final de 2001 e aquele que hoje se respira! Em onze anos, apenas, passámos da euforia do euro – que tudo iria resolver – à descrença num euro que nos está a sufocar!
Deixando para trás o texto despreocupado de 2001 e voltando, preocupado, ao dia de hoje, aqui ficam os meus votos para que em 2013 o escudo continue morto e enterrado, por muitos e belos anos, mas se criem condições para que não esteja o euro a sufocar-nos a todos por muitos mais anos ainda.


Um abraço e um bom ano para os leitores do Penedo d@ Saudade.
Zé Veloso

05 novembro 2012

A SEBENTA – UMA INSTITUIÇÃO COM SETE VIDAS!...


No meu tempo de Coimbra a Sebenta estava no auge. Rara era a cadeira que a não tinha, raros eram também os livros que consultávamos. E os sebenteiros tomavam assento na primeira fila das teóricas, munidos do último grito das novas tecnologias – um gravador de fita que ocupava todo o tampo da carteira!
As sebentas no prelo iam saindo em fascículos à medida que as aulas avançavam, editadas a mais das vezes pela Almedina, onde se vendiam também as sebentas de anos anteriores já devidamente encadernadas. Quanto às sebentas em segunda ou terceira mão, o seu valor dependia da quantidade e suposta qualidade dos apontamentos à margem, podendo a ex-sebenta de um urso ser transaccionada por valor superior ao de uma sebenta nova.
Poucas sebentas de Coimbra terei guardado comigo, pois cedo concluí que, enquanto futuro engenheiro, jamais voltaria a demonstrar o Teorema de Bolzano-Weierstrass ou a escrever aquelas Fórmulas de Poiseuille que ocupavam de ponta a ponta os dois quadros do anfiteatro das Físicas. Chegado ao Porto, a instituição Sebenta lá continuava imperturbável, escrita por sebenteiros ou pela mão dos próprios mestres. Mas era chique dizer que se estudava por reputados livros de Engenharia, o que só em parte era verdade. E pairava no ar a ideia de que a instituição teria os dias contados. Mas seria assim?
A verdade é que, passados mais de 40 anos sobre a minha formatura, a Sebenta continua vivinha da costa, não apenas em Coimbra mas também noutras universidades [1], elaborada por alunos ou por professores ou pelos primeiros com revisão dos segundos, policopiada ou – sinal dos tempos – distribuída online! O suporte tem vindo a mudar, podendo até os textos aparecer travestidos de apresentações powerpoint. Mas o conteúdo continua a ser o mesmo – os apontamentos da aula – e continua a chamar-se Sebenta!
Diz o povo que "nem rei nem papa à morte escapa". Mas a sebenta dá mostras de não querer morrer, apesar da má reputação pedagógica que muitos lhe atribuem e de outros tantos a terem já sentenciado de morte.
Os seus defensores apontam-lhe a virtude de ela constituir uma ferramenta fácil de utilizar pelos alunos, já que procura reproduzir fielmente o conteúdo das aulas. Os seus detractores vêm, nessa mesma virtude, o seu grande pecado – limitação do universo de consulta por parte dos alunos, cristalização da ideia de que existe uma só verdade, a que sai da boca do mestre.
Escreve Manuel Alberto Carvalho Prata [2] que a sebenta remontará à criação das próprias universidades, tendo como antecedentes as postillas ou apostillas, apontamentos tirados nas aulas pelos alunos, numa época em que raros eram os livros disponíveis e cabia aos lentes fazer para os alunos a leitura de alguns que houvesse; que o uso das postillas foi encorajado até à reforma pombalina da Universidade de Coimbra (1772), reforma que impôs aos lentes a escrita dos compêndios e proibiu o uso das postillas, «para não se consumir prejudicialmente em tão prolixas escrituras o tempo, que mais útil, e suavemente se deve empregar na explicação das lições» [3]; e que tal imposição não foi cumprida, apesar de vários avisos régios, o que levou o Principal da Universidade a determinar em 1786 «que de agora e para sempre se desterre e proscreva desta Universidade o pernicioso costume de escrever nas aulas» [4], determinação essa que era acompanhada de severas sanções para os prevaricadores.
Mas, chegados ao início do Século XIX e estando já inventado o processo litográfico de reprodução de textos, as postillas, que embora proibidas nunca tinham sido banidas, encontraram o seu processo natural de reprodução, dando lugar à Sebenta.
E Trindade Coelho, que entrou para Direito em 1880, publica em 1902 o seu In Illo Tempore, onde evoca a Sebenta em termos que permitem supor que a mesma pudesse ter já entrado em declínio no início do século XX. Puro engano!… Durou, pelo menos, mais 110 anos! E sabe-se lá quando acabará!...
Sigamos, então, Trindade Coelho, num texto que sempre me provoca o riso de cada vez que o leio:
«No tempo em que eu andava em Coimbra, ainda a boa e imortal sebenta reinava em todo o seu esplendor! Eu nem fazia sequer ideia, ao chegar a Coimbra, do que vinha a ser isso da sebenta; mas, industriado logo a tal respeito, vim a saber que era uma espécie de folhinha litografada, formato 8.º, que saía todos os dias compendiando a explicação do lente; que se chamava “sebenteiro” ao que a redigia; que custava sete tostões por mês cada uma; que eram três em cada ano, visto as cadeiras em cada ano serem três; e, finalmente, que, enquanto o lente explicava a lição para o dia seguinte, só o sebenteiro ouvia o lente, e que os mais, todos, e eu portanto, podiam muito bem ler o seu romance, fazer o seu bilhetinho e passá-lo ou comentar os que vinham dos outros – ou então, se preferíssemos, dormir ou fazer versos!
Não havia nada de melhor! Além disso, algumas metiam também as suas piadas; outras davam caricaturas – e sebenteiro havia que amenizava por tal forma aquela estopada, que até dava versos para o fado no fim de semana, e convocava os discípulos, em anúncios, para trupes aos caloiros, ou outras pândegas!
As sebentas tinham em geral oito páginas, e cada um ia pelas suas ao cair da noite, e eram duas por noite; mas, se o lente se tinha alargado na prelecção, ou o sebenteiro era maçador, às tais oito páginas acresciam outras – e a esse suplemento, que era sempre amaldiçoado, chamava-se o “resto”!»
E, mais à frente,
«Está pois a ver-se que a Sebenta era uma instituição universitária; mas ainda assim, coisa curiosa, cheirava sempre a contrabando.»
Apesar de não se conhecer a data do seu nascimento, os estudantes de 1899 decidiram celebrar-lhe o “Centenário” com uma festa de arromba, que incluiu o maior cortejo académico até então ocorrido em Coimbra, razão pela qual tais festejos têm sido erradamente apontados como os precursores da Queima das Fitas.
Desse tempo, está muito divulgada a figura da Maria Marrafa que, ao cair da noite, calcorreava a Alta, distribuindo os fascículos da sebenta casa a casa. Conta-se que não distribuía apenas a sebenta e que, de quando em vez, à mistura com a sebenta, ia deixando também as suas carícias. E até empréstimos em dinheiro para algum estudante em aperto.
Outra figura típica de então era o litógrafo Manuel das Barbas. Só há alguns dias lhe consegui ver a cara, que aqui deixo igualmente registada. Como a foto parece indiciar, deveria transpirar cebo por todo o lado, dado que o sebo era o lubrificante utilizado no processo litográfico, sendo essa uma das razões aventadas para a origem do nome "sebenta" [5]. O Fado da Sebenta, com letra de Afonso Lopes Vieira, fez-lhe a maldade de lhe escrever antecipadamente o epitáfio para a sepultura:
«Aqui jaz Manoel das Barbas;
Trabalhou muito, e bebeu…
Lithographava sebentas,
Mas foi feliz : - nunca as leu.»
Termino esta crónica com uma história muito bem contada por Camilo de Araújo Correia [6], história que não resisto a transcrever na íntegra, a qual envolve o sebenteiro Júlio Condorcet, de seu verdadeiro nome Júlio Pais Mamede, médico radiologista, que nas suas actividades de exímio prestidigitador se apresentava como Conde d'Orcet, the King of Embarrilation.
«Condorcet foi um aluno de medicina com tanto de estudioso como de pândego. Não sei se por necessidade, se para arranjar mais uns cobres para a estroinice, foi também sebenteiro. Noites e noites a passar à máquina os apontamentos colhidos nas aulas, ditados por um condiscípulo, seu colaborador na preparação das sebentas.
Certa noite, a certa altura, saiu esta frase dos apontamentos:
– …”diz a mitologia que foram uns corvos que tiraram aos deuses o poder de curar e o deram aos homens”…
– Alto aí! – cortou o Condorcet
– Que é?!
– Como se chamam esses corvos?
– Sei lá! Aqui não está nome nenhum…
– Mas devia estar! Uns corvos dessa importância não podem deixar de ter nome, caramba!... Ora deixa cá ver… deixa cá ver… Que dizes a “Giribites”?
– Põe lá o nome que quiseres mas olha que pode dar mau resultado! – cortou o companheiro, morto por andar para a frente com os apontamentos.
Não deu mau resultado. O que deu foi um gozo medonho nos exames de “História da Medicina” desse ano.
Na primeira referência de um examinando aos “corvos Giribites” o lente deu um salto na cadeira e perguntou fora de si:
– Corvos quê?!!
– Giribites… – respondeu, a medo, o aluno?
– Giribites?!?!... Onde é que o senhor aprendeu isso?
Como, nesse tempo, os lentes não podiam ouvir falar em “sebentas”, o rapaz foi-se defendendo com a mentirazinha do costume.
– Foi num livro que me emprestaram… já bastante antigo…
– Hum… bem… bem…
Assim desarmado, o mestre continuou o exame sem mais incidentes. Incidentes houve, depois, com os alunos que não sabiam dizer o nome dos corvos!!!
– … foram uns corvos da mitologia… Ia dizendo o aluno.
– Como se chamavam esses corvos? Perguntava o mestre, atento à lengalenga.
– …… – Emudeciam os ignorantes.
– Giribites, senhor!... Giribites!... Vocês não estudam nada!... É tudo pela rama… tudo pela rama!...»
Sabe-se que, neste caso, a marosca foi descoberta e os “corvos Giribites” não voaram por muito tempo. Mas quantos outros “corvos Giribites” [7] não terão passado já a verdades científicas irrecusáveis?
Zé Veloso

[1] Tendo questionado diversos alunos das universidades de Coimbra, Porto e Lisboa, apercebi-me de que a Sebenta ainda se mantém bastante activa nos dias de hoje, dependendo dos cursos e das Faculdades.
[2] Manuel Alberto Carvalho Prata, “Academia de Coimbra – (1880-1926) – Contributo para a sua História”, Imprensa da UC, 2002
[3] “Estatutos da Universidade de Coimbra”, 1772
[4] Teófilo Braga, “História da Universidade de Coimbra”, Tomo III, 1898
[5] Outras razões aventadas têm a ver com a fraca qualidade do papel, gorduroso, e com a sujidade de gordura acumulada nas páginas, depois de muito manuseadas.
[6] Camilo de Araújo Correia, “Coimbra Minha”, Almedina, 1989
[7] Fernando Rolin disse-me um dia que o nome dos corvos seria "Giribitsman" e não "Giribites". 

Fotografias:
- Sebentas de Direito Civil e Direito Penal (manuscritas e litografadas): Foto do autor obtida no Museu Académico da Universidade de Coimbra.
 
- Maria Marrafa: Foto obtida da internet.
- Manuel das Barbas: Foto obtida de uma versão digital do livro "Typos de Coimbra" de Mário Monteiro, Livraria Editora Guimarães, 1908.

- Fado da Sebenta: Foto (do autor) de um original do folheto com a música e letra do Fado e do Hino da Sebenta.