O meu eléctrico era o 3, o melhor de todos! Era lindo, rápido e amarelo. Tão amarelo como os outros, mas mais bonito.
Havia o 3 com traço e o 3 sem traço. Ou o 3 branco e o 3 vermelho, para quem não fosse daltónico. Os dois corriam um contra o outro para se cruzarem, quer em Celas quer no Penedo. Quem chegasse em último era coxo! A viagem custava oito tostões da Baixa à Alta e sete tostões em sentido inverso, numa altura em que um papo-seco (um bico, como então se dizia) custava quatro, um postal dos correios cinco e um selo de carta dez tostões.
O 3 percorria toda a Cumeada, do Botânico até aos Olivais, constituindo os próprios carris a linha de fronteira entre a Alta e a Baixa, para efeitos do exercício da praxe, o mesmo acontecendo, aliás, no troço que descia dos Olivais até à Cruz de Celas.



Aliás, o 3 tinha com os putos uma relação especial. Estoirava-nos debaixo das rodas os montinhos de pólvora das bombas de carnaval, imitando o matraquear das metralhadoras – tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá… – e assustando as damas – aiii!!! – que se preparavam para sair na paragem. Mas, melhor do que tudo o mais, o 3 era o campo de treinos dos desportos radicais da malta urbana: saltar do eléctrico em andamento e brincar ao gato e ao rato com o cobrador.
Aquilo é que era adrenalina! Faziam-se apostas, saltava-se com o eléctrico a várias velocidades, a cinco, a seis e, até, a sete! Alguém sabe aqui o que é saltar de um eléctrico lançado a sete, avenida abaixo, entre o Café Madeira e a paragem dos Lóios, ali mesmo nas barbas da sentinela da Guarda Republicana, ainda para mais com o guarda-freio apostado em dar cabo dos joelhos aos putos que faziam a corrida de borla, iludindo o cobrador, escondidos na plataforma de trás ou pendurados ao vento no estribo? Alguém sabe aqui o que isso é?
Como em qualquer desporto, aquele também tinha a sua técnica. A maioria atirava-se para a frente, tentando acompanhar o movimento do monstro de ferro. Mas havia os que saltavam do estribo para o chão com um só pé e amorteciam a energia da queda rodopiando com a perna livre levantada, enquanto uma mão largava o corrimão e a outra segurava a capa esvoaçante. Bonito!
Como em qualquer desporto, uma tal performance não estava ao alcance de todos. Havia os iniciados e havia os craques, mais velhos, mais rodados. Um havia, até, que se dizia que já tinha ido às p… !
Tive o meu baptismo de voo numa manhã de Inverno. Não que estivesse preparado. Até aí limitara-me a fazer uma ou duas corridas no estribo, cosido às paredes do bicho, não fosse o guarda-freio topar-me pelo espelho. Naquele tempo, os eléctricos só eram fechados na zona dos bancos. O guarda-freio rapava um frio dos diabos; e a nós, na plataforma de trás, acontecia-nos o mesmo, enquanto o lorde do cobrador (já nem falo do revisor... – Foge, que ele vem lá! –) se passeava portas adentro, controlando-nos pelo rabo do olho.
Foi numa manhã de Inverno, dizia eu, faltariam dez para as nove. Daí a pouco tocaria a sineta o primeiro toque. O eléctrico vinha a descer a Dias da Silva, rumo ao D. João III. Parou na “casa verde”, de onde eu saía ainda a comer o pão. A partir daí era só uma paragem. A plataforma de trás vinha apinhada de malta do 1.º B: – Sobe, 24, que está quase a tocar e o gajo anda lá dentro entretido. 24 era o meu número! Seria o meu dia de glória...
Salto para o estribo, já o eléctrico embalava a caminho do Madeira. Agarro o corrimão, o pão na boca, a pasta na outra mão, o olho no trica-bilhetes… e a malta a bater palmas. Eis se não quando, ouve-se um grito: – Salta que o gajo vem a correr! E o gajo corria, de facto, atropelando tudo e todos dentro do eléctrico. E o guarda-freio, de conluio, mete a sete: – Agora é que vais pagar, meu grande sacana! E a malta: – Salta, 24, que o gajo apanha-te!
Nem deu para pensar. Larguei-me, simplesmente. Dei de joelhos nos paralelos da calçada – Ai as minhas calças à golfe, quase novas! – mas não me lembro se doeu. Doeu, sim, a malta a rir-se lá de cima, enquanto o trinca-bilhetes lambia os beiços. Pelo chão ficou espalhada a pasta aberta, os cadernos diários, a caixa de madeira onde guardava os lápis e a borracha, um transferidor, um duplo-decímetro e meia folha de “papel Cavalinho”. Nesse dia havia aula de Desenho.
Zé Veloso