22 março 2022

ESTUDANTES CLANDESTINAS NA UNIVERSIDADE. PARTE III: ANTÓNIA DA TRINDADE

 Este post é a continuação de:

ESTUDANTES CLANDESTINAS NA UNIVERSIDADE. PARTE I: EM MEMÓRIA DE TODAS ELAS e
ESTUDANTES CLANDESTINAS NA UNIVERSIDADE. PARTE II: AUTA DA MADRE DE DEUS

Antónia da Trindade terá sido a primeira mulher a estudar na Universidade de Coimbra, por onde passou, muito provavelmente, no final do reinado de D. João III, antes de se recolher ao Mosteiro de Nossa Senhora da Consolação de Figueiró dos Vinhos.

Não se conhece o nome suposto que usou para se fazer passar por rapaz na Universidade. E também não é seguro que Antónia da Trindade fosse o seu nome de baptismo, já que as suas biografias estão focadas no nome da religiosa em que mais tarde se tornou, independentemente de poder ter usado outro nome em fase anterior da sua vida.

A sua história vem descrita em quatro “enciclopédias biográficas” dos séculos xvii e xviii – vide [1] a [4] –, cujos verbetes não têm grandes contradições entre si, mas onde um deles se destaca pelo pormenor da narrativa – o da Historia Serafica Chronologica da Ordem de S. Francisco na Provincia de Portugal [2] –, facto que se compreende por Madre soror Antónia da Trindade ter chegado a «Mestra da Ordem» naquele Mosteiro e ter morrido com fama de santidade.

Façamos uma leitura comentada e abreviada do muito que esta última fonte nos conta. Para tornar mais fácil a leitura, fiz a actualização da ortografia e da pontuação das passagens transcritas.

Antónia da Trindade era natural de Cantanhede. Por lá terá aprendido alguma coisa, mas queria aprender mais. «Favorecia sua mãe estes intentos; mas, posto que era pessoa nobre, não tinha cabedais para sustentar um Mestre que ensinasse a filha e resolveram entre ambas que, com aparências e vestidos de moço, podia muito bem estudar em Coimbra».

E se assim o pensaram, melhor o fizeram: «Acompanhou-a a própria mãe, a título de ama, todo o tempo que cursou as escolas daquela Universidade; e a menina, vestida em trajes de estudante, se aplicou ao estudo com tanta curiosidade que, em pouco espaço, mostrou conhecidas vantagens a todos os seus condiscípulos».

Tudo corria de feição, não fora o gato estar escondido com o rabo de fora: «Porém, como o segredo com que intentou encobrir o sexo não foi totalmente bastante para desmentir as atenções da curiosidade, quiseram alguns escolásticos fazer maior exame; e, saindo com ela a passear até à ponte do Mondego, foram observando o modo com que andava e outros sinais que de todo lhes confirmaram a presunção; e parece que lhes deram a entender a sua suspeita, expondo com palavras equívocas que debaixo do vestido de estudante andava disfarçada outra pessoa a quem não convinha semelhante estado».

Imagine-se o embaraço da rapariga e de sua mãe, perante aquela corja de galfarros ressabiados pelo sucesso escolar de Antónia da Trindade, e louve-se o detalhe com que o cronista da Ordem de São Francisco conta o enxovalho sofrido pelas duas, cujo destino ficou logo ali traçado: «Vendo a Serva do Senhor que todas suas cautelas estavam desvanecidas e lhe era já impossível (sem ofensa de seu crédito) continuar nas Aulas, determinou seguir outra aplicação de estudo mais proveitoso, aprendendo a ser santa na escola de Deus».

E é assim que mãe e filha – sem quaisquer condições para continuarem a viver em Cantanhede depois destes incidentes, admito eu – decidem recolher-se ao Mosteiro de Figueiró dos Vinhos.

Dentro do Mosteiro, Madre soror Antónia da Trindade é-nos descrita como alguém que tinha uma aura de sabedoria, bondade e santidade e, também, grande capacidade de comunicação. Conta-se ainda que, ao morrer, «ficou o cadáver tão formoso, que não se podiam persuadir as religiosas que estivesse defunto: porque a cor do rosto estava viva e nas faces lhe apareciam duas rosas tão belas, que bem mostravam serem sinais dos dotes da Glória com que Deus teria enriquecido a sua alma. Cresceu nas religiosas, com estes e outros indícios, a grande opinião que tinham da sua santidade».

Sobre sua mãe, cujo nome nunca nos é revelado, contam-nos que conseguiu «que a admitissem por servente deste Mosteiro, em o número daquelas que andavam de porta em porta pedindo esmolas para o sustento das Freiras. Neste exercício elegeu o nome de Brites da Cruz».

DATAÇÃO DA PASSAGEM DE ANTÓNIA DA TRINDADE PELA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Segundo Sousa Lamy [6], Antónia da Trindade veio para Coimbra em 1549, data que, sendo embora possível, me deixa algumas dúvidas, pelas razões que a seguir explico:

Sousa Lamy transcreve esta informação da Miscellanea Historico-Biographica [7], um livro de biografias sintéticas, que não tem a credibilidade das outras obras que tenho vindo a referir e que, no caso vertente, me levanta interrogações. De facto,

- o texto não está isento de erros: lá se diz (e Sousa Lamy transcreve) que Antónia da Trindade professou «sob o nome de sóror Beatriz da Cruz». Ora, nas fontes com biografias circunstanciadas [1] a [4], Beatriz da Cruz nunca consta; consta, sim, Brites da Cruz, mas como tendo sido o nome adoptado pela mãe de Antónia da Trindade; 

- o ano de 1549, que não aparece nas fontes mais credíveis, pode resultar de uma leitura apressada da fonte principal, a Historia Serafica [2]. Isto porque, sendo neste ano que foi passado o Breve do Papa Paulo III a autorizar a edificação do Mosteiro de Nossa Senhora da Consolação de Figueiró dos Vinhos, todas as 35 páginas que aquela obra dedica ao dito Mosteiro e suas monjas, incluindo a página que descreve a passagem de Antónia da Trindade por Coimbra, são encimadas pela cota de referência "Anno 1549".

Mas como encaixa esta data – 1549 – nas restantes informações recolhidas?

Diz-nos a Historia Serafica [2] e o Anno Historico [4] que Antónia da Trindade «faleceu pelos anos de mil quinhentos e setenta e cinco», acrescentando a Historia Serafica que «não morreu velha».

Fazendo fé nestas informações, considerando a juventude com que, na generalidade dos textos, se diz que a menina partiu para Coimbra, e atendendo à esperança de vida naquela época [5], será de admitir como cenário provável que Antónia da Trindade tenha nascido por volta de 1535-40 e tenha vindo para Coimbra (com cerca de 15 anos) pelos idos de 1550-55. Este cenário e a data acima acabam por não ser incompatíveis. (*)

Assim sendo, penso que se pode afirmar com bastante segurança que Antónia da Trindade estudou na Universidade de Coimbra nos últimos anos do reinado de D. João III. (**)

Zé Veloso

(*) Um parêntesis para registar a voz discordante do autor do Theatro Heroino [3], para quem Antónia da Trindade «nasceu pelos anos de Cristo de mil quinhentos e sessenta e nove», o que, a ser verdade, atiraria a sua entrada na Universidade para 30 a 35 anos depois daquilo que admitimos acima. Mas esta fonte parece-me ser menos credível que a Historia Serafica [2] e o Anno Historico [4], por o seu texto ser bastante vago.

(**) Como é sabido, D. João III, que transferiu definitivamente a Universidade de Lisboa para Coimbra em 1537, reinou de 1521 a 1557.

Segue-se o post:

- ESTUDANTES CLANDESTINAS NA UNIVERSIDADE. PARTE IV: PÚBLIA HORTÊNSIA DE CASTRO

que será publicado nas próximas semanas.

[1] CARDOSO, George. Agiologio Lvsitano dos Sanctos e Varoens Illvstres em Virtvde do Reino de Portvgal, e svas Conqvistas. Tomo I, Officina de Antonio Craesbeeck de Mello, 1652, p. 248.

[2] SOLEDADE, Fr. Fernando da. Historia Serafica Chronologica da Ordem de S. Francisco na Provincia de Portugal. Tomo IV, Officina de Manoel & Joseph Lopes Ferreyra, 1709, pp. 646-648.

[3] PERIM, Damiaõ de Froes. Theatro Heroino, Abcedario Historico, e Catalogo das Mulheres Illustres em Armas, Letras, Acçoens Heroicas, e Artes Liberaes. Tomo I, Officina da Musica de Theotonio Antunes Lima, Lisboa Occidental, 1736, p. 67.

[4] SANTA MARIA, P.e Francisco de. Anno Historico, Diario Portuguez: noticia abreviada de pessoas grandes, e cousas notaveis de Portugal…. Tomo Primeiro, Officina e à custa de Domingos Gonsalves, Lisboa, 1744, p.p. 151-152.

[5] RODRIGUES, Teresa. Portugal nos séculos XVI e XVII. Vicissitudes da dinâmica demográfica. CEPESE, Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade, https://www.cepese.pt/portal/pt/publicacoes/colecoes/working-papers/populacao-e-prospectiva/portugal-nos-seculos-xvi-e-xvii.-vicissitudes-da-dinamica-demografica.

[6] LAMY, Alberto Sousa. A Academia de Coimbra. 1537-1990. Rei dos Livros, Lisboa, 1990, p.25.

[7] SILVA, Theodoro José da. Miscellanea Historico-Biographifica. Editor-Proprietario Francisco Arthur da Silva, Lisboa, 1877, p. 62.

 

18 fevereiro 2022

ESTUDANTES CLANDESTINAS NA UNIVERSIDADE. PARTE II: AUTA DA MADRE DE DEUS

Este post é a continuação de ESTUDANTES CLANDESTINAS NA UNIVERSIDADE. PARTE I: EM MEMÓRIA DETODAS ELAS.

Daquilo que se conhece, Auta da Madre de Deus foi a aluna mais antiga da Universidade portuguesa, tendo-a frequentado ainda esta se encontrava em Lisboa, provavelmente ao tempo de D. João II ou D. Manuel I. O seu nome de baptismo, bem como o nome que terá usado enquanto frequentava a Universidade disfarçada de rapaz, não chegaram até nós. O nome que ficou registado para a posteridade é aquele que viria a adoptar mais tarde, ao professar como clarissa no Convento da Madre de Deus.

O QUE NOS CONTA O “ANNO HISTORICO,…”

Encontrei cinco obras enciclopédicas dos séculos xvii e xviii – vide [1] a [5] – onde a história de soror Auta da Madre de Deus nos é contada. Começo por referir o que vem na reedição de 1744 do Anno Historico, Diario Portuguez: noticia abreviada de pessoas grandes, e cousas notaveis de Portugal [4], um livro de efemérides onde a memória de Auta está assinalada no dia 26 de Maio. Transcrevo na íntegra a passagem que lhe é dedicada, limitando-me a actualizar a ortografia e a pontuação, procedimento que segui em todas as transcrições de textos antigos.

«Soror Auta da Madre de Deus, Religiosa do Mosteiro deste nome de Lisboa, foi dotada de génio sublime para estudar e compreender as maiores ciências. Seu pai, que era lente actual de Cânones na Universidade da mesma Cidade de Lisboa, por fazer-lhe o gosto e ver que aproveitava, a vestiu de estudante e em sua companhia a levava às aulas e actos literários da Sagrada Teologia e Direito Canónico. Em ambas estas Faculdades saiu doutíssima, principalmente na segunda, em que fez actos com grande esplendor e se adiantou tanto que queriam dar-lhe a Cadeira de Cânones, que vagara por morte de seu pai, se ela, com esta falta, não depusera, como logo fez, o disfarce de Varão, tornando ao traje e recolhimento, que, como mulher, lhe competia. Por ser sobredouta, nobre e muito virtuosa, a chamou a Rainha D. Leonor, mulher d’El-Rei D. João II, para a sua companhia e com ela se aconselhava e rezava o Ofício Divino e preferia nas estimações e agrados. Um dia, porém, acompanhando a mesma Rainha, entrou no Mosteiro da Madre de Deus, se agradou e edificou tanto a sua penitente e santa forma de vida, que se resolveu a segui-la e professá-la com grande alegria de saber deixar o mundo para se entregar continuamente só na ciência e consequência da morte. Assim estudou enquanto viveu e por isso morreu felizmente neste dia, ano de 1588, com assistência que naquela hora lhe fez Santa Auta, cujas relíquias se veneram no Santuário do mesmo Mosteiro; de quem era devotíssima e em seu obséquio compusera e ordenara o seu Ofício, que com aprovação da Sé Apostólica o reza, no dia da mesma ilustre Virgem e Mártir, aquela também ilustre e venerável Comunidade.»

O QUE NOS CONTA O “THEATRO HEROINO,…”

Ainda que o essencial das narrativas seja o mesmo nas diversas obras consultadas, há sempre entre elas detalhes que se alteram. Vejamos o que me salta à vista ao ler o Theatro Heroino, Abcedario Historico, e Catalogo das Mulheres Illustres [3], editado em 1736.

Sobre a forma de trajar, o currículo académico e a possibilidade de substituir seu pai, as versões são semelhantes: «Em companhia de seu pai continuou por alguns anos a Universidade nos estudos da Filosofia, Teologia e Direito Canónico, em que fez muitos e luzidos actos com tanto aplauso que se referia por cousa certa ser tão douta como ele, julgando que lhe sucederia na Cadeira, crédulos na ficção com que desmentia a natureza, sendo que esta questão de “desmentir a natureza” se referia ao facto de a rapariga frequentar a Universidade «desmentindo o sexo com os hábitos de varão.»

Sobre a naturalidade de Auta, diz-nos que «Lisboa […] foi sua pátria».

Quanto aos pormenores da sua vida no Convento da Madre de Deus, convento que foi fundado pela própria rainha D. Leonor (esposa de D. João II), rainha de quem Auta foi aia e protegida antes de professar no dito convento, informa-nos que:

- «foi tão devota de uma das onze mil Virgens, cujas relíquias sagradas enriquecem aquele santuário, que na profissão trocou o nome de baptismo pelo de Auta»;

- «era tão douta, que os mais dos dias era consultada na Teologia Moral, especulativa dos maiores letrados da Universidade; e, não menos, na Teologia Mística, muitas religiosas e pessoas de espírito, cujas resoluções se ouviram como de oráculo.»

E afirma, sem ambiguidade, que foi no reinado de D. João II que Auta frequentou a Universidade – «chegaram os seus elogios com o apreço daquela novidade à presença das Majestades reinantes Dom João segundo e Dona Leonor»

OBRAS PUBLICADAS

Auta da Madre de Deus, Soror, tem o seu nome inscrito como autora no site Escritoras em Português (1500 – 1900) [6], onde consta a obra manuscrita Calenda da Festa de Santa Auta e a obra impressa Officium S. Auctae V. & M., Ulissipone, Petrum Crasbeeck, 1621.

DÚVIDAS E INCONSISTÊNCIAS

Terá Auta chegado a obter um grau académico na Universidade?

Qual será exactamente o significado da expressão «saiu doutíssima na Sagrada Teologia e Direito Canónico», expressão que é utilizada tanto no Anno Histórico como na Historia Serafica Chronologica da Ordem de S. Francisco [2]? Será ela indicativa de que Auta obteve algum grau académico enquanto estudou na Universidade? E seria tal grau possível de obter com uma identidade falsa?

A verdade é que a generalidade das obras consultadas referem que Auta fez diversos actos na Universidade e todas elas registam que, à morte de seu pai, os poderes universitários queriam que ela o substituísse na Cadeira que ele leccionava.

Datação da passagem de Auta pela Universidade

A data de nascimento de Auta da Madre de Deus não é conhecida. O dia em que morreu é quase unanimemente apontado como tendo sido 26 de Maio. Mas quanto ao ano da sua morte, apenas temos a informação do Anno Historico, o qual refere 1588. Este dado parece não bater certo com o resto da informação obtida.

Isto porque, estando D. João II (que faleceu em 1495) ainda vivo à morte do pai de Auta, e admitindo como melhor hipótese que ela tivesse nessa altura não mais de 20 anos, para ter vivido até 1588 teria de ter morrido com, no mínimo, 113 anos! Tal longevidade, para além de altamente improvável, deveria vir devidamente assinalada na sua biografia.

Será que Auta foi mesmo um caso de excepcional longevidade? Será que o ano apontado para a sua morte é pouco credível e, por essa razão, as restantes obras o não referem? Ou será que Auta morreu de facto em 1588 e o erro está no Theatro Heroino, quando diz que a sua fama chegou «à presença das Majestades reinantes Dom João segundo e Dona Leonor»?

E será que, quando na generalidade das obras se diz que Auta foi chamada pela «Rainha D. Leonor, mulher d’El-Rei D. João II» tal não poderá ser interpretado no sentido de “Rainha D. Leonor, que foi mulher d’El-Rei D. João II”? Até para a distinguir da outra rainha D. Leonor, mulher de D. Manuel I, que foi sua contemporânea?

A datação da passagem de Auta pela Universidade é, pois, algo que me deixa dúvidas. Mas uma coisa é certa: a Universidade ainda estava em Lisboa, uma vez que D. Leonor (mulher de D. João II) faleceu em 1525 e a transferência da Universidade para Coimbra aconteceu apenas em 1537. Confrontando todas as datas, conclui-se que o mais provável é que Auta tenha frequentado aquela instituição no reinado de D. João II ou no de D. Manuel I, não sedo matematicamente impossível que o tenha feito no de D. João III.

Quanto à data em que professou nada nos é dito. Mas, atendendo ao nome que adoptou nessa altura, é bem provável que tivesse sido apenas depois de o Convento da Madre de Deus ter recebido as relíquias de Santa Auta (1517).

Corrigindo uma gralha de Lamy

Na pág. 25 de A Academia de Coimbra. 1537-1990 [7], o texto sobre Auta da Madre de Deus tem uma gralha que vem a talhe de foice corrigir, dado tratar-se de uma obra de referência para todos os que se interessam pela história da Academia de Coimbra.

Onde está que Auta «foi muito estimada da Rainha D. Leonor, mulher de D. João III» deveria estar «foi muito estimada da Rainha D. Leonor, mulher de D. João II», tal como consta da obra que Sousa Lamy transcreveu – Miscellanea Historico-Biographica [8]. Aliás, a mulher de D. João III não foi D. Leonor, mas sim, D. Catarina de Áustria.

Qual é a relação de Auta com Coimbra e a sua Universidade?

Em duas das cinco obras que tenho vindo a citar como fontes primárias da informação, aparecem duas referências a Coimbra. Trata-se, porém, de referências, porventura, menos credíveis, por serem dissonantes do tom geral dos restantes relatos:

- Na Historia Serafica, a vida académica de Auta é-nos relatada como tendo-se passado na Universidade de Coimbra, o que, como vimos acima, não bate certo com tudo o mais que se sabe. Aliás, o texto também é vago, já que refere que Auta «deixou os estudos e, a instâncias da Rainha, se recolheu no seu Palácio», sem especificar de que rainha se tratava.

- Na Bibliotheca Luzitana: hiftorica, critica e cronologica [5] diz-se que Auta era natural de Coimbra, contrariando a informação do Theatro Heroino.

Zé Veloso

Seguem-se os posts:

- ESTUDANTES CLANDESTINAS NA UNIVERSIDADE.PARTE III: ANTÓNIA DA TRINDADE

- ESTUDANTES CLANDESTINAS NA UNIVERSIDADE. PARTE IV: PÚBLIA HORTÊNSIA DE CASTRO

que serão publicados nas próximas semanas.

[1] CARDOSO, George. Agiologio Lvsitano dos Sanctos e Varoens Illvstres em Virtvde do Reino de Portvgal, e svas Conqvistas. Tomo III, Officina de Antonio Craesbeeck de Mello, 1666, p. 410.

[2] SOLEDADE, Fr. Fernando da. Historia Serafica Chronologica da Ordem de S. Francisco na Provincia de Portugal. Tomo IV, Officina de Manoel & Joseph Lopes Ferreyra, 1709, pp. 76-77.

[3] PERIM, Damiaõ de Froes. Theatro Heroino, Abcedario Historico, e Catalogo das Mulheres Illustres em Armas, Letras, Acçoens Heroicas, e Artes Liberaes. Tomo I, Officina da Musica de Theotonio Antunes Lima, Lisboa Occidental, 1736, p. 48.

[4] SANTA MARIA, P.e Francisco de. Anno Historico, Diario Portuguez: noticia abreviada de pessoas grandes, e cousas notaveis de Portugal…. Tomo Segundo, Officina e à custa de Domingos Gonsalves, Lisboa, 1744, p. 127.

[5] MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca Luzitana: hiftorica, critica e cronologica. Tomo I, Officina de Antonio Isidoro da Fonseca, Lisboa Occidental, 1791, p. 440.

[6] «Auta da Madre de Deus, Soror», in ESCRITORAS-EM-PORTUGUES.EU, http://www.escritoras-em-portugues.eu/1402845028-Cent.-XVI/2015-0328-Auta-da-Madre-de-Deus-Soror.

[7] LAMY, Alberto Sousa. A Academia de Coimbra. 1537-1990. Rei dos Livros, Lisboa, 1990, p.25.

[8] SILVA, Theodoro José da. Miscellanea Historico-Biographica. Editor-Proprietário Francisco Arthur da Silva, Lisboa, 1877, pp. 72-73. 

30 janeiro 2022

ESTUDANTES CLANDESTINAS NA UNIVERSIDADE. PARTE I: EM MEMÓRIA DE TODAS ELAS

É frequente afirmar-se que Domitila de Carvalho foi a primeira mulher que se inscreveu na Universidade de Coimbra (1891). Eu prefiro dizer que Domitila foi a primeira mulher que se licenciou na Universidade de Coimbra (1894 em Matemática, 1895 em Filosofia e 1904 em Medicina), sem colocar a tónica no acto administrativo da sua inscrição. E digo assim para que não fiquem implicitamente esquecidas aquelas que frequentaram a Universidade antes de Domitila, mas que nunca terão chegado a inscrever-se ou o fizeram sob um nome masculino, pelo simples facto de serem mulheres e tal inscrição lhes estar legalmente vedada na época em que viveram.

Foram mulheres que, apesar dessa proibição, conseguiram estudar na Universidade, vestindo-se de homem para disfarçar a sua condição feminina. Mulheres que sofreram o recalcamento de terem de aprender na clandestinidade e de não verem reconhecido publicamente o saber que adquiriram. Mulheres que, nos casos sobre os quais existe informação disponível, acabaram todas por recolher-se a um convento, não parecendo que fosse esse o seu plano inicial e vida.

Quantas terão tentado a sua sorte?

Sousa Lamy [1] nomeia apenas quatro almas que passaram por esse calvário. Sobre três delas – Auta da Madre de Deus, Antónia da Trindade e Públia Hortênsia de Castro, que frequentaram a Universidade nos séculos xv e xvi – existe alguma informação, que tratarei nos próximos posts. Mas sobre a quarta – Catarina Fernandes – apenas se sabe que estudou no séc. xvii. [1]

Entretanto, encontrei num almanaque antigo (1864)  [2] uma frase que nos sugere mais um nome – «Nem só Anna Sigêa, Publia Hortensia de Castro, e outras, de quem falla o sr. Castilho nas eruditissimas notas ao seu drama Camões, se tornaram notaveis por seus conhecimentos, e por haverem frequentado a Universidade com occultamento do seu sexo»

Temos, assim, cinco mulheres. Mas é bem provável que tenham sido mais, até porque aquilo que é proibido tende a ser abafado. E se andavam vestidas de homem, estudariam sob anonimato ou falso nome.

Ainda há alguns anos me escreveu um leitor deste blogue que procurava informações sobre uma sua antepassada que, de acordo com a tradição oral da família, teria andado na Universidade de Coimbra, onde, por ser mulher,  teve uma experiência difícil, que muito a marcou. A sua memória ficou num círculo restrito, os seus trajes de estudante andaram na família durante bastante tempo até se perderem, e eu próprio já esqueci também o seu nome.

Quantos nomes haverá mais? Quantas terão sido ao certo? Quantas mulheres – mulheres novas, raparigas – terão “morrido em combate”, lutando corajosamente para saber mais, tentando chegar ao fruto proibido de um diploma universitário?

Sejam quantas forem, conhecidas e desconhecidas, a todas presto aqui singela homenagem.

Este post foi escrito em memória de todas elas!

Zé Veloso

Seguem-se os posts:

- ESTUDANTES CLANDESTINAS NA UNIVERSIDADE.PARTE II: AUTA DA MADRE DE DEUS
- ESTUDANTES CLANDESTINAS NA UNIVERSIDADE. PARTE III: ANTÓNIA DA TRINDADE
- ESTUDANTES CLANDESTINAS NA UNIVERSIDADE. PARTE IV: PÚBLIA HORTÊNSIA DE CASTRO

que serão publicados nas próximas semanas.

[1] LAMY, Alberto Sous
a. A Academia de Coimbra. 1537-1990. Rei dos Livros, Lisboa, 1990.

[2] BARATA, António Francisco. «Antónia da Trindade», in Almanach de Lembranças Luso-Brazileiro para o Ano de 1865, elaborado por Alexandre Magno de Castilho e António Xavier Rodrigues Cordeiro, Lisboa, 1864, p. 300.


24 novembro 2021

O ESPÍRITO DA TOMADA DA BASTILHA


São quatro da tarde do dia 24 de Novembro de 2021. A esta hora, há 101 anos, os conjurados preparavam-se mentalmente para a última noite de ansiedade, desconhecendo se, daí a 24 horas, estariam vitoriosos ou, quem sabe, a caminho de serem expulsos da Universidade.

Presto-lhes aqui a minha homenagem, republicando a parte final do artigo que escrevi para o n.º 55 da revista “CAPA E BATINA” [1], aquando dos 100 ANOS DA TOMADA DA BASTILHA.

O 25 de Novembro de 1920 foi mais do que o simples assalto a um edifício que se quis tomar para alargar uma sede. Ele foi um grito de revolta que, ao libertar o prédio, arrastou consigo a libertação da própria Academia. Por isso a Tomada do Instituto foi depois, simbolicamente, apelidada Tomada da Bastilha – remetendo para o imaginário da Revolução Francesa –, já que, aos olhos dos estudantes, o Instituto corporizava o poder absolutista daqueles lentes iluminados, distantes e despóticos que não tinham acompanhado o evoluir dos tempos.

E arrombar a porta que separava os andares do prédio foi como que derrubar uma barricada que separava mestres e alunos, e partir para uma vida nova. E à irreverência dos alunos responderam os mestres com a melhor compreensão.

Estes factos, que chegaram até hoje com o seu quê de picaresco que nos faz sorrir, não devem esconder que a Tomada da Bastilha foi um acto de coragem de um grupo de estudantes que se arriscou a pesadas penas, tais como “ser riscado” da Universidade, para que a Academia de então tivesse uma sede decente para a sua Associação Académica, retomando o precedente de dignidade das suas instalações, que se perdera, e deixando um exemplo para as gerações vindouras.

Hoje parece que foi fácil… mas se parece é porque não estivemos lá! Os depoimentos de quem lá esteve, de quem correu os riscos, dizem-nos que houve «nervos crispados» em quem ficou na Bastilha «às escuras, estendido pelos bancos, sobre os bilhares, toda a comprida noite […] vibrando a todo o ruído que o silêncio mais avolumava»; e dizem-nos que alguns «se tornaram lívidos perante o cenário da “batalha” que se aproximava»; e que houve um profundo terror ao partir para a Torre em «quem sentiu, ao querer marchar, que os pés se lhe pregavam ao chão, ao mesmo tempo que um frio lhe inundava a fronte».

Houve medo, sim! Mas houve a coragem de o ultrapassar, porque havia uma causa que os ultrapassava a todos – a sua Associação Académica!

A nossa Associação Académica de Coimbra!

E Fernandes Martins, o principal obreiro da Tomada da Bastilha, viria a ser Presidente da Associação no ano a seguir ao golpe (levando consigo outros conjurados), como o Passarinho o fora já no ano anterior.

E outras Direcções com outros Presidentes se lhe seguiriam, irmanados no mesmo espírito de inconformismo, rebeldia, companheirismo, desapego, entrega e coragem, espírito com que foram levando a Academia de Coimbra, em cada época, a lutar pelos ideais e objectivos que na altura se lhes afiguraram como sendo justos e necessários.

Foi esse espírito que passou de geração em geração. O espírito da Tomada da Bastilha! É por ele que ainda hoje importa celebrá-la!

Zé Veloso

[1] Para ler o artigo completo carregue em cima.

21 novembro 2021

“OS LYSÍADAS”, DE ZÉ VELOSO

Fez ontem uma semana, tive o gosto de apresentar OS LYSÍADAS num almoço (seguido de sarau) da AAECL - Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra em Lisboa, iniciativa que congregou 125 convivas que já não se encontravam desde o início da pandemia. Foi a oportunidade que a Associação teve de voltar a juntar amigos e de dar continuidade a eventos que foram cancelados por causa do Covid 19, como foi o caso do primeiro lançamento daquele livro, que deveria ter acontecido na sede da AAECL em 17 de Março de 2020.

Mas o que são, afinal, OS LYSÍADAS, de seu nome completo, OS LYSÍADAS. A Epopeia dos LyS.O.S., uma República de Coimbra no Porto?

Se eu vos disser como o livro começa,

Os ursos e os calões esperançados,

Que da ocidental terra das tricanas,

Por mares nunca dantes navegados,

Passaram ainda além de Vale de Canas,

E em perigos e guerras esforçados

Mais do que prometia a força e o tanas,

E entre as gentes do Norte edificaram

República, que tanto sublimaram;

já poderão imaginar que se trata de um poema épico que relata a saga de um grupo de estudantes de Coimbra que em 1959 rumaram ao Porto, «numa mão a guitarra e noutra a pena», para aí terminarem os seus cursos de Engenharia e Farmácia; e que, não tendo onde se aboletar, lá fundaram a Real República dos LyS.O.S., que é presentemente a única República de estudantes que ainda resta no Porto, a qual, por coincidência, deverá estar ainda a dormir a esta hora, já que festejou ontem rijamente o seu LXII Centenário!

Segundo reza a synopsys do livro, o poema «segue uma linha paralela à narrativa de Camões, adaptando os episódios mais marcantes da obra do Poeta aos temas que trata e aos tempos que retrata, de forma criativa, irreverente e bem-humorada».

E os temas e tempos que trata e retrata são, para além do que aos LyS.O.S. diz respeito, a história e as histórias de Coimbra, da sua Universidade e da sua Academia e, ainda, das tradições académicas centenárias, que haveriam de estender-se ao Porto e, mais tarde, a outras academias.

Mal me ficaria se, ao apresentar-vos OS LYSÍADAS, vos não trouxesse aqui um pouquinho mais do seu conteúdo. Escolhi sete estrofes do Canto IV, que fazem parte de uma passagem que antecede o “Episódio do Velho da Estação Nova”, personagem que, à semelhança do Velho do Restelo, não entendia a vã glória de ir estudar para tão longe, sujeitando-se a perigos nunca vistos, quando, em Coimbra, havia cursos de sobra.

A cena passa-se no largo em frente da Estação Nova, enquanto os LyS.O.S. se preparavam para entrar no comboio que os levaria rumo ao Norte. Em itálico está o que pertence aos Lusíadas de Camões.

27

A gente da cidade, aquele dia,

(Uns por amigos, outros por parentes,

Outros por ver somente) concorria,

Para olhar mais de perto as nossas gentes.

E junto co’a virtuosa companhia

Do povo humilde, gestos diligentes,

Estavam as forças vivas da cidade,

Que assim se despediam com saudade.

 

28

Logo à frente dos mais vinha o Teixeira,

Engraxador de toda a Academia,

Que um dia, no Casino da Figueira,

De fraque preto e calça fantasia,

Foi beber pirolito e bagaceira,

Dando o braço, cortês, à fidalguia.

Representava ali todos os mais

Das profissões chamadas liberais.

 

29

Representando o Grémio dos Logistas,

Negócio de Adeleiro, Roupa & Trapo,

O Pícalo, que nos trocava as vistas

Na prova da batina e do casaco

(E, de caminho, armava aos pugilistas,

Que ser forte, afinal, era o seu fraco),

Um precursor da moda do futuro:

Um só tamanho, em vez de furo a furo!

 

30

Um pouco mais atrás vinha o Pirata,

Onde tanto estudante, sem pagar,

Comeu, bebeu e só bateu a chapa

Um dia, quando já a trabalhar!

Representava ali todo o magnata

Que tem dinheiro seu para emprestar:

Casas de prego, bancas de mercado

E as lojas que vendem a fiado.

 

31

De boné preto e farda azul escura,

Bigode, perna curta, ar de Charlot,

’Tava o Sô Chico, em plena formatura

(Que nesse dia a Associação fechou),

Co’a rezinguice própria e a candura

De um porteiro que era já avô.

Representava as profissões fardadas:

Contínuos, cobradores, Forças Armadas.

 

32

Mas eis que também chega o Formidável,

Cauteleiro e fotógrafo amador.

Vinha de trás, com seu discurso afável,

Talvez pra consolar algum doutor,

Assim como, de forma memorável,

Quando Eusébio chorou a sua dor.

Representava as artes de olhar

E os jogos de fortuna e de azar.

 

33

Sua eminência o bispo é que faltava!

Nem cónego, prior, ou mais quem seja,

Nem freira ou sacristão se apresentava,

Representando a Santa Madre Igreja.

Mas lá de Santa Clara nos olhava

Com seu manto de seda, cor cereja

Aquela que p’los pobres sempre olhou

E o pão em rosas brancas transformou. 

E se bem tinha olhado pelos pobres, melhor a Rainha Santa olharia pelos LyS.O.S., já que ser-se lyso tinha não só a ver com a lisura e verticalidade de carácter, mas também com o ser-se teso, sem dinheiro, e ver-se forçado a enviar de vez em quando um S.O.S. à família.

Para além da parte poética – com dez cantos, tal como Os Lusíadas, mas com uma dimensão miniatura (30% das suas estrofes) – o livro contém ainda vasta informação em prosa, que complementa e contextualiza a narrativa épica, informação que acaba por constituir “um segundo livro".

Não me tendo sido possível fazer os lançamentos e apresentações que estavam programados, fiz chegar junto dos meus amigos, em Outubro de 2020, via e-mail e Facebook, um vídeo de apresentação do livro  obrigado ao meu amigo Valdemar Benavente pela edição do vídeo e ao Grupo Campa Rasa pela excelente banda sonora –, bem como um conjunto de depoimentos que pedi a quinze personalidades a quem também deixo aqui o meu agradecimento. Tanto o vídeo como os depoimentos podem ser visualizados abaixo.

VÍDEO DE APRESENTAÇÃO d’OS LYSÍADAS

DEPOIMENTOS SOBRE OS LYSÍADAS

O que está disponível neste momento é o “Volume I - De Coimbra ao Porto”, o qual termina com o Canto VI, ou seja, com a chegada dos LyS.O.S. à vista do Porto. É um volume centrado na vida académica coimbrã. Tem prefácios da autoria do Eng.º Augusto Carmona da Mota, primeiro Mor dos LyS.O.S., e da Dr.ª Fátima Lencastre, Presidente da AAECL.

Apesar de ser apenas a primeira parte de uma obra maior, este Volume I constitui um todo coerente, cuja compreensão não obriga à leitura do Volume II. O “Volume II - Já no Porto” sairá oportunamente. 

A forma mais rápida de adquirir o livro será, porventura, no site da MinervaCoimbra ou por e-mail para minervacoimbra@gmail.com.

Boas leituras!

Zé Veloso
Repúblico Lyso de 1966/67 a 1968/69


02 novembro 2021

PALMAS NAS SERENATAS. O CURIOSO EVOLUIR DAS TRADIÇÕES

Escrevo este post alguns dias depois de ter assistido pela internet à Serenata Monumental da Queima das Fitas de 2021 (adiada para Outubro). Uma vez mais pude ver aquele final em que, depois de se ouvirem os fados e as guitarradas em silêncio, se solta um F-R-A frenético que desencadeia uma erupção de capas, pastas e fitas no meio de palmas e gritos de júbilo, a lembrar um vulcão adormecido que entrou repentinamente em actividade. – Gostei!

No meu tempo de Coimbra (anos 60) era muito menos divertido. Depois de ouvida a serenata em religioso silêncio, havia, quando muito, uns foguetes… e estava feito. Nem palmas, nem fitas pelo ar, nem nada. Aliás, grelados e fitados tinham de levar as insígnias recolhidas dentro da pasta, uma vez que o “Decreto da Queima” anunciava que “a praxe só terminaria” horas depois, quando o Cabrão tocasse às sete da manhã. A minha Mulher ainda se lembra de ter sido ameaçada de levar nas unhas porque, como tinha um medo danado das canas dos foguetes, pôs a pasta na cabeça, a pasta abriu-se e as fitas ficaram à mostra. Como os tempos mudaram!…

Outra alteração significativa tem a ver com o bater palmas no final de cada fado ou guitarrada, no contexto de um espectáculo. Hoje isso é considerado normal e desejável por muita gente. Porém, na Coimbra dos anos 60 não era assim; palmas e serenatas eram líquidos totalmente imiscíveis, fossem quais fossem as circunstâncias.

Nas digressões que fiz com o Coro Misto e o Orfeon, recordo-me de que, durante os fados e guitarradas com que sempre acabavam os espectáculos, se alguém na plateia batesse palmas, logo a malta (que, depois de cantar, se tinha dispersado pelas cochias) começava a tossicar ou pigarrear – então a única forma de aplaudir – sussurrando também discretos “chiiiius”, dando indicação, a quem batia palmas, de que estas não eram bem-vindas ou, pelo menos, que não cabiam ali.

Tenho também na memória uma situação bizarra, que hoje seria impensável. Já a trabalhar em Lisboa, pelos anos 70 ou 80, fui a uma casa de fados, com um grupo de antigos colegas de Coimbra, onde, a determinada altura, se cantaram fados de Coimbra. Já me não recordo de quem cantava, talvez fosse o Machado Soares. Mas lembro-me bem do espanto da assistência ao reparar que o nosso grupo se mantinha mudo e quedo no final de cada fado. Que bárbaros, terão pensado!

O curioso, porém, é que este ortodoxismo da Coimbra dos anos 60 – “ao fado de Coimbra não se batem palmas”, sejam quais forem as circunstâncias – era uma tradição pouco antiga, que teve origem num facto absolutamente fortuito que me foi contado pelo saudoso cantor de fados Augusto Camacho Vieira, com quem criei uma grata amizade, apesar de só tardiamente nos termos conhecido.

A conversa começou no “Coimbra Taberna”, infelizmente também já de saudosa memória, durante uma sessão de fados de Coimbra que, alegremente, íamos aplaudindo um a um e onde eu lhe fiz notar que, no meu tempo, a tradição não era essa. Ao que ele me respondeu que, involuntariamente, tinha as suas culpas no cartório no tocante a tal tradição. E, a seguir, contou-me uma história curiosa, a que voltaria num longo almoço que com ele tive, em Abril de 2014, no Restaurante da Ordem dos Engenheiros.

Nesse almoço falámos do filme Capas Negras, sobre o qual eu andava a escrever um post, e sobre as tradições académicas no seu tempo. Quando chegámos às serenatas, de rua (as serenatas às raparigas) e das outras (as serenatas-espectáculo), eu voltei à carga, querendo saber se havia palmas. Reproduzo a sua resposta: «Na rua não, mas na Sé Velha sim. Só deixou de haver palmas na primeira Serenata de Coimbra com transmissão directa da Sé Velha, pela Emissora Nacional, através do Emissor Regional de Coimbra, em Dezembro de 1946. Eu cheguei-me à frente e mandei tapar um lampião com uma capa, só se via a luz da lua; e então pedi à malta que não batessem palmas para que parecesse mesmo uma serenata para quem estava a ouvir pela radiodifusão.»

E assim nasceu uma tradição! Como à primeira serenata radiodifundida outra se lhe seguiu – logo em Janeiro de 1947 [1] [2], também a partir da Sé Velha – e outras mais sobrevieram, mensalmente radiodifundidas de outros locais ao relento [3], tais como o Campo de Santa Cruz, o Jardim da Sereia e as Patelas / Ladeira da Conchada [2], fácil é admitir que a nova moda rapidamente tenha pegado.

“Todo o mundo é composto de mudança”… e as tradições também. Desde que estejam vivas, ou melhor, desde que sejam vividas, dificilmente se mantêm imutáveis. Umas vezes vão-se alterando de forma lógica, adaptando-se ao evoluir dos tempos. Outras vezes transformam-se de forma disruptiva, não raro por circunstâncias inesperadas, como acabámos de ver.

Zé Veloso

PS 1: O Augusto Camacho contou-me que na primeira serenata radiodifundida pela Emissora Nacional cantou também Jorge Gouveia e foram acompanhados por Carvalho Homem e Gabriel de Castro (1.ª e 2ª guitarras) e por Tavares de Melo e Aurélio Reis (violas). Camacho cantou "A água da fonte" e o "Fado das Águias". Jorge Gouveia cantou “Minho encantador” e outro fado de que não se recordava já.

Quanto ao “Fado das Águias”, sublinhou o Camacho que a primeira quadra é de Camilo Castelo Branco e que a segunda foi feita propositadamente para essa serenata por Fernando Quintela, poeta da sua República (Palácio da Loucura), a quem a pediu por ser um fado que tinha ouvido cantar lá na República apenas com a primeira quadra.

PS 2: Para falar das emissões radiofónicas da E.N., nada melhor do que o Coronel José Anjos de Carvalho, possuidor de um conhecimento enciclopédico sobre a temática da Canção de Coimbra, que, naquela altura, ainda era rapaz e estudava no Liceu de Évora. Contou-me que as serenatas eram transmitidas em directo às 11 horas da noite de domingo e repetidas na sexta-feira seguinte, antes do fecho da emissão da E.N., que acontecia às 14 horas. Ele e um seu colega ouviam-nas sempre e, enquanto ele apontava as letras dos fados, o seu amigo tirava os tons das músicas. Como curiosidade, a E.N. fechava todos os dias às 14 horas e só reabria por volta das 18:30, com música de dança a partir do Café Chave D’Ouro, no Rossio.

PS 3: O essencial da conversa que tive com Augusto Camacho Vieira vem confirmado num seu depoimento de 2005 no blogue Guitarra de Coimbra.

Nesse depoimento existe outra passagem em que Camacho se refere a aplausos em serenatas-espectáculo do seu tempo de estudante, mas, agora, aplausos numa serenata de salão: «Recordo dessa altura os futricas Fernando Rodrigues, tocador de viola, e seu irmão Flávio Rodrigues. Ouvia-os pela noite dentro e certa vez fomos ao Penedo e hoje ainda sinto a arte genial do Flávio, que me arrebatou a acompanhar-me no "Fado das Águias" assim como num sarau no Casino da Figueira em que me acompanhando com uma corda prima estalada no momento, talvez pela temperatura ambiente, fomos freneticamente aplaudidos». Sabendo-se a identidade que existia nessa altura entre as elites sociais e culturais de Coimbra e da Figueira da Foz (a Figueira era conhecida por "Coimbra-C"), não é difícil imaginar qual seria a praxis então seguida em Coimbra no que toca aos aplausos naquelas serenatas.

PS 4: Para afastar quaisquer dúvidas que possam ficar de uma leitura mais apressada, este post não se refere a aplausos nas serenatas de rua feitas às raparigas (as também designadas serenatas de cortejamento ou serenatas de galanteio) as quais se destinavam quase sempre às colegas e namoradas, quer dos cantores ou tocadores, quer de outros estudantes que, não tendo predicados musicais para tal, tinham de "encomendar" a serenata a quem soubesse fazê-la.

PS 5: Agradeço a dois amigos: ao Coronel José Anjos de Carvalho, por me ter aturado durante a preparação deste post; e ao Dr. Arménio Marques dos Santos, cantor de fados de Coimbra, a quem pedi que me revisse o texto e procurasse confirmar algumas informações.


Foto obtida do livro: ÍNÁCIO, Manuel Fernando Marques. O Canto e a Música de Coimbra – Fotobiografia de Augusto Camacho Vieira. Edições MinervaCoimbra, Coimbra, s. d.

[1]   CORREIA, Avelino Rodrigues. Do Choupal até à Lapa. Etnografia do Constructo da Canção de Coimbra. Tese de Doutoramento, Março 2014.

[2]   SOARES, António José; NUNES, António M. «Canções e Guitarras nas Décadas de 1930-1940», in Guitarra de Coimbra (Parte I), 2006, http://guitarradecoimbra.blogspot.com/2006/12/canes-e-guitarradas-nas-dcadas-de-1930.

[3]   Posteriormente, as serenatas radiodifundidas passaram a ser gravadas em estúdio.