25 março 2015

COIMBRA, P’RA SER COIMBRA…


Coimbra, p’ra ser Coimbra
Três coisas há-de contar
Guitarras, tricanas lindas
Capas negras a adejar.

Esta é a quadra mais cantada e mais conhecida do chamado Vira de Coimbra, uma canção de raiz popular – mais tarde apropriada pelos estudantes – cujas origens são anteriores ao século XVIII [1]. A sua música, para além de ser dançada como vira que é, servia igualmente para cantares ao desafio entre as gentes da cidade, fossem eles estudantes, futricas ou tricanas, como acontecia nas tabernas e bordéis ou por altura das antigas fogueiras. Por tal razão, o Vira de Coimbra é hoje cantado com uma panóplia de quadras soltas diversas, provenientes de várias épocas, por vezes improvisadas no calor do descante e contradizendo-se, até, entre si, como acontece com as que caracterizam de forma tão díspar o “amor do estudante”. Veja-se que, para o futrica intriguista, «dizem que amor de estudante não dura mais que uma hora» enquanto, para a tricana apaixonada, «só o meu é tão velhinho qu’inda se não foi embora».

Mas voltemos à quadra «Coimbra p’ra ser Coimbra…» que evoca uma certa Coimbra Académica de antanho, boémia, apaixonada e vibrante, que se foi perpetuando ao longo de muitas gerações universitárias e que ainda não morreu de todo, seja porque ainda hoje anda pela cidade seja porque continua viva na memória de muitos que por lá andaram no passado.

«Coimbra p’ra ser Coimbra…» tem tudo o que uma quadra precisa para resultar bem:
  • Desde logo e a abrir, um número cabalístico – «três coisas»!
  • A seguir, as «guitarras» – românticas, vibrantes, pungentes, nas mãos jovens e apaixonadas de um estudante – com o único senão de, como regra, os grandes guitarristas de Coimbra não terem sido os estudantes, mas sim, futricas ou antigos estudantes!
  • Depois, as «tricanas lindas», essa estirpe de mulher onde nunca foi descrito um só exemplar que não fosse belo!
  • E, por fim, as «capas negras», essas capas da cor da morte e da tristeza que, paradoxalmente, quando postas «a adejar», irradiam a alegria da juventude, da nossa Coimbra académica de sempre!

Porém, estas «três coisas» – guitarras, tricanas lindas e capas negras – nem sempre coexistiram ao longo dos 530 anos de permanência da universidade em Coimbra e não terão convivido em conjunto por mais de algumas décadas, não chegando, porventura, a meio século, como veremos adiante.

Das guitarras…

Comecemos pelas guitarras. É sabido que desde muito cedo os estudantes cantaram pelas ruas de Coimbra, sozinhos ou acompanhando os seus habitantes. Eram cantos de saudade e de amor, bem como cantigas populares. É também sabido que, nesses cantares, normalmente nocturnos, os estudantes se faziam acompanhar por instrumentos vários, entre os quais cordofones, mas não necessariamente por guitarras, já que estas só viriam a aparecer em Coimbra pelo século XIX, seja na sequência da entrada em Portugal da guitarra inglesa, como têm afirmado vários autores, seja através da evolução da cítara portuguesa, a guitarra-cítara, como mais recentemente se tem vindo a admitir [2]. Mas tanto no séc. XIX como no início do séc. XX, «a guitarra portuguesa não era o instrumento predilecto, entre a comunidade estudantil ou popular. Na verdade, os instrumentos de corda mais tocados seriam a viola toeira, o violão, o cavaquinho, o bandolim entre outros» [2]. E foi o malogrado Augusto Hilário, que estudou em Coimbra entre 1889 e 1896, vindo a falecer de tuberculose antes ainda de terminar o curso de Medicina, a primeira grande referência de estudante de Coimbra cantor e tocador de guitarra. Ainda que celebrizado pela sua voz, o seu nome ficaria para sempre ligado ao seu instrumento de eleição: «Eu quero que o meu caixão tenha uma forma bizarra… a forma de um coração, a forma de uma guitarra!...»

Para o comum dos mortais, a guitarra que por aquele tempo se tocava em Coimbra, bem como no resto do país, pouco diferiria das de hoje. Mas, para os mais conhecedores, as diferenças existem e são bem grandes. Foi nas décadas de 20 e 30 do século passado que Artur Paredes, um guitarrista exímio, futrica como o eram os melhores guitarristas de Coimbra daquela época, revolucionou o instrumento, alterando-lhe significativamente a fisionomia (e, também, a afinação e a forma de o tocar). Primeiro, com a ajuda da pequena oficina de Raul Simões, guitarreiro de Coimbra; depois, em parceria com os guitarreiros de Lisboa Kim Grácio e João Pedro Grácio, Artur Paredes faria surgir, por volta de 1940, um modelo de guitarra com uma nova sonoridade, que, aos poucos, ganharia o seu espaço e que é hoje adoptada pela quase totalidade dos grandes guitarristas portugueses, independentemente da sua proveniência. Na prática, a guitarra de Coimbra tornou-se a guitarra portuguesa. E o ensino da guitarra em Coimbra que, no meu tempo de estudante, estava a cargo do barbeiro da AAC, tem hoje escolas e professores com fartura… e até as estudantes já aprendem a tocar tal instrumento.

Das tricanas lindas….

Quando o valor da nova guitarra de Artur Paredes foi finalmente reconhecido em Coimbra, na sequência da sua aparição numa serenata na Sé Velha em 1945 (embora futrica, Paredes tocava igualmente no meio académico sendo aceite como um dos seus), já as tricanas tinham deixado de ocupar, na vida dos estudantes, o espaço que tão bem tinham sabido reservar para si durante quatro séculos.

Mas quem eram elas, afinal? De uma forma geral, eram as mulheres da classe baixa da terra: mulheres do campo, lavadeiras, engomadeiras, criadas de servir. Não só em Coimbra se chamavam assim. Também em Ílhavo, Aveiro ou Ovar havia tricanas. Curiosamente, tricana era também o nome dado à saia que usavam e ao pano de que era feita essa saia.

Entre as tricanas havia muita rapariga nova e bonita. À falta de raparigas, numa terra onde havia uma população flutuante de milhares de rapazes solteiros que estavam fora de casa meses e meses a fio, fácil é de perceber que nenhuma delas chegasse a ser feia. O cortejar dos rapazes era constante, «namoriscando as moças com parolas latinas» [3]; moças simples, à procura de sonhos e melhores condições. Com o tempo, as tricanas foram realçando os seus encantos naturais; de geração em geração, o contacto com gente mais culta permitiu-lhes algum refinamento e sofisticação. Algumas tornaram-se verdadeiras cortesãs. Outras acreditaram, simplesmente, que um amor verdadeiro e um futuro melhor as esperaria no final de anos de promessas doces e carícias ardentes. Terminados os cursos, ficavam por vezes os “rebentos”, cuja paternidade faziam questão de não esconder. Li algures que futrica – um nome que fede à distância – seria uma corruptela de fitrica, sendo fitrica uma abreviatura de filho de tricana. E mais não digo. Quereis saber o porquê dessa animosidade ancestral entre estudantes e futricas? Cherchez la femme!

Mas, um belo dia, algo começa a mudar: numa universidade onde nunca se formara uma só mulher, forma-se a primeira nos finais do séc. XIX; e se até 1912 o número máximo de alunas por ano era apenas de oito, a partir daí não pára de aumentar; e, no início da década de 40, rondava já os 20%. A pouco e pouco, as tricanas foram deixando de ser tão lindas… e, com o rodar do tempo, foram perdendo definitivamente a importância que tinham no coração dos estudantes, até se tornarem figuras de folclore do Rancho de Coimbra. Como dizia o poeta, «todo o mundo é composto de mudança».

Das capas negras a adejar…

Quando D. João III transferiu definitivamente a universidade para Coimbra, já as capas negras faziam parte da indumentária dos escolares, embora o traje fosse diferente do de hoje. As capas negras vêm, por isso mesmo, de tão longe quanto as tricanas mas, ao contrário destas últimas, conseguiram renascer das cinzas das duas vezes em que estiveram moribundas no passado século XX.

A última vez em que tal aconteceu já pouco interessa para estas contas, pois que também as tricanas já por cá não andavam. Foi ao longo de toda a década de 70, durante o luto que se seguiu à crise académica de 1969. Com luto não há praxe nem festas e sem elas ninguém gasta dinheiro na compra dum traje que tem dificuldade em competir com a moda dos blue jeans e que, ainda por cima, foi conotado com a reacção por obra e graça dos movimentos revolucionários. Nesta década, a capa e batina haveria de sumir-se de todo, o que levou a Câmara Municipal, preocupada com a preservação dos ex-libris da cidade, a isentar de bilhetes nos eléctricos os estudantes que se apresentassem com ela vestida!

O outro período de rejeição das capas negras foi do final do séc. XIX até ao início dos anos 20 do século passado, quando a capa e batina, para além de ter sido muito contestada, foi igualmente aviltada, chegando a usar-se coletes, calças ou gravatas de outras cores que não a preta. Aliás, a contestação à obrigatoriedade do uso do traje dentro do perímetro universitário era de tal maneira forte, que o dito uso foi tornado facultativo apenas 19 dias depois de instaurada a República!

E, como corolário da baixa estima que então havia pelas capas negras, aqui fica o registo da primeira quadra do “Vira de Coimbra” gravado por Lucas Junot para a Columbia em Maio de 1927, onde «um estudante a cantar» aparece em lugar das «capas negras a adejar» [1].

Coimbra, p’ra ser Coimbra
Três coisas há-de contar
Guitarras, tricanas lindas
E um estudante a cantar.

Resumindo e concluindo…

Quanto à guitarra, apesar de se saber que por todo o século XIX ela já era tocada em Coimbra em salões de dança e teatros [2], não é possível apontar a data em que passou a ser utilizada pelos estudantes nas suas serenatas; mas é bem provável que tal tenha acontecido já no declinar do séc. XIX. Com alguma segurança, é Augusto Hilário a primeira figura de peso que associa a guitarra aos estudantes e à serenata de Coimbra, o que acontece na primeira metade da década de 1890. E, a partir daí, tal associação continua até aos dias de hoje, sem qualquer descontinuidade.

Quanto às tricanas, a sua origem é anterior à vinda dos estudantes para Coimbra. E é seguro que, no início dos anos 30, ainda tinham lugar central no imaginário romântico do estudante masculino, como bem o prova a capa do livro de curso ao cimo, datado de 1932. Porém, admito que esse papel se tenha diluído ao longo de toda a década de 40. Ficamos, assim, com cerca de meio século de coexistência das guitarras com as tricanas. Poderá, até, ter sido um pouco mais.

Mas, ao entrarmos com as capas negras, teremos de descontar a segunda década do século XX, que foi uma década madrasta para a capa e batina, em que muitos não a usaram e muitos outros a usaram mal. Como dizia o outro: «É só fazer as contas…».

Zé Veloso

[1] Conforme António Manuel Nunes, in Registos fonográficos de Lucas Rodrigues Junot (1902-1968), Guitarra de Coimbra (Parte I), http://guitarradecoimbra.blogspot.pt/2005/05/registos-fonogrficos-de-lucas.html.

[2] Conforme Luis Pedro Ribeiro Castela, in A Guitarra Portuguesa e a Canção de Coimbra. Subsídios para o seu estudo e contextualização, Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras, 2011.

[3] Segundo a Eufrósina, peça teatral escrita à volta de 1542, cinco anos depois de D. João III ter transferido de novo a universidade para Coimbra.

- A primeira foto, cedida pela Dra. Ana Maria Barros, é da capa do Livro do Curso de Medicina de 1927-33, a que pertenceu seu pai, o professor de Obstetrícia Dr. Albertino da Costa Barros. Pertenceram também a este curso outras conhecidas figuras de Coimbra, de que destaco o Dr. Adolfo Rocha (Miguel Torga) e o Dr. Júlio Pais Mamede (Condorcet).
- A foto do Hilário foi obtida pelo autor do blogue, a partir de um painel de uma exposição temporária sobre a guitarra de Coimbra, no Edifício Chiado.
- A foto da guitarra de Coimbra foi obtida da internet.
- A foto da estátua da tricana (que se encontra a meio do Quebra Costas) foi tirada pelo autor do blogue.
- A última foto foi obtida do livro Coimbra Vida Académica, de Cristina Henriques, …

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