06 março 2021

CARTA PARA JORGE CONDORCET

 

Caro Jorge, deixa-me reviver,

Primavera de 1964, Férias da Páscoa. O Coro Misto (ou Místaro, como dizia o Sô Chico) vai em digressão pelo Norte do país. A cena passa-se em Lamego. Mas repetir-se-á na noite seguinte em Vila Real e depois em Chaves e Póvoa do Varzim.

O cine-teatro está apinhado. Depois de o Coro ter interpretado o seu alinhamento e antes que a jornada acabe com os Fados e Guitarradas, estamos a meio das Variedades.

É a vez d’Os Álamos. E é de cima do palco que observo o que se passa à minha frente. De súbito, em vez de sair mais uma música yé-yé, como seria de esperar de uma formação tipo Les Chats Sauvages, arrancamos com o Nivram, o único tema jazzístico dos Shadows. O público surpreende-se… e mais intrigado fica quando, do fundo da plateia, começa a vir um “bruá” de risos que cresce a pouco e pouco e cuja causa ninguém entende nas filas cá mais para a frente, por muito que estendam os pescoços na nossa direcção, pois que é no palco que é suposto acontecerem as coisas. Que se passa?

És tu, Jorge Condorcet, que, imponente na tua casaca branca, cheia de caricas ao peito a simular medalhas, e trazendo uma vistosa flor na mão, vens descendo lentamente pelo corredor central da plateia em direcção ao palco.

Mas antes de cá chegares, há que fazer o primeiro número. Tu sabes que na primeira fila está a gente importante da terra. E que num dos lugares centrais deverá sentar-se a filha, ou talvez a jovem esposa, do Presidente da Câmara ou do Governador Civil. É para ela que te diriges, cortês, fazendo menção de lhe entregar a flor, que a jovem aceita, levantando-se da cadeira, confiante. Mas a mão que tu estendes à moça esconde um caule partido, de tal forma que, no instante seguinte, a pobre rapariga fica literalmente agarrada ao pau, enquanto tu segues impassível, de flor na mão, a caminho do palco, sob o riso e o aplauso da plateia. Ainda a actuação não começou e já tu, Jorge Condorcet, tens o público agarrado!

Presenciei esta cena dezenas de vezes e nunca me cansei de a ver. Dezenas de vezes estive atrás de ti, Jorge, em digressões do Coro Misto e do Orfeon (Angola e Açores), já que Os Álamos actuaram durante alguns anos nas Variedades daqueles organismos. E nunca nos cansávamos de te ver, apesar de já conhecermos de cor o teu repertório, porque tu nos davas a ilusão de que nos ensinavas a fazer os truques – o que nunca acontecia – e porque nos encantava ver a maneira como embarrilavas o público com a tua simplicidade e um humor muito fino, onde não havia espaço para o azedume. Um “ilusionista humorístico”, não um “ilusionista cómico”, como fizeste questão de me emendar, quando te dei a corrigir o texto que sobre os Condorcet escrevi em Os Lysíadas [1]. E tu fazias as coisas de uma forma tão elegante, que apenas uma vez vi um gesto de despeito nas moças que eram desfeiteadas no “truque” da flor; ao invés, terminado o efeito surpresa, também elas recebiam com alegria o seu aplauso, como qualquer partenaire.

Diz a tua biografia que frequentaste «em Coimbra as Faculdades de Medicina, de Farmácia, de Letras e de Ciências e Tecnologia desde 1950 a 1980, tendo completado o Curso Profissional de Farmácia, o Bacharelato e a Licenciatura (antes de Bolonha) em Biologia no ramo científico» [2] e que actuaste «mais de 1000 vezes em perto de 150 estados da Europa, África, América, Ásia e Oceânia» [2]. Mas o que aqui gostaria de destacar é a transversalidade e a consensualidade da tua pessoa dentro da Academia de Coimbra. Entre outras coisas que nem vou referir, actuaste com o Orfeon Misto (mais tarde, Coro Misto), o Orfeon, a Tuna, os Antigos Orfeonistas e os Antigos Tunos – sempre pro bono –, e foste até hoje o único sócio da Académica a quem foi dado o emblema de platina (75 anos de filiação ininterrupta)!

Mas tu, Jorge, tu tiveste a quem sair! Antes de ti existiu teu pai, Júlio, cuja história me apetece relembrar.

Júlio Condorcet, médico radiologista nascido em 1903, que cursou em Coimbra nas décadas de 20 e 30 do século passado, era uma pessoa extremamente criativa e divertida cujas façanhas e partidas nos são contadas em vários livros de memórias, quer de antigos colegas de curso, quer de outros compagnhons de route dos tempos em que, continuando a viver em Coimbra, se cruzou com muitas outras gerações de académicos nas quais fez amigos. Para se ter uma ideia do seu espírito irrequieto, deixo-vos aqui o que sobre ele escreveu Camilo de Araújo Correia [3]:

Condorcet foi um aluno de medicina com tanto de estudioso como de pândego. Não sei se por necessidade, se para arranjar mais uns cobres para a estroinice, foi também sebenteiro. Noites e noites a passar à máquina os apontamentos colhidos nas aulas, ditados por um condiscípulo, seu colaborador na preparação das sebentas.

Certa noite, a certa altura, saiu esta frase dos apontamentos:

– …”diz a mitologia que foram uns corvos que tiraram aos deuses o poder de curar e o deram aos homens”…

– Alto aí! – cortou o Condorcet.

– Que é?!

– Como se chamam esses corvos?

– Sei lá! Aqui não está nome nenhum…

– Mas devia estar! Uns corvos dessa importância não podem deixar de ter nome, caramba!... Ora deixa cá ver… deixa cá ver… Que dizes a “Giribites”? [4]

– Põe lá o nome que quiseres mas olha que pode dar mau resultado! – cortou o companheiro, morto por andar para a frente com os apontamentos.

Não deu mau resultado. O que deu foi um gozo medonho nos exames de “História da Medicina” desse ano.

Na primeira referência de um examinando aos “corvos Giribites” o lente deu um salto na cadeira e perguntou fora de si:

– Corvos quê?!!

– Giribites… – respondeu, a medo, o aluno?

– Giribites?!?!... Onde é que o senhor aprendeu isso?

Como, nesse tempo, os lentes não podiam ouvir falar em “sebentas”, o rapaz foi-se defendendo com a mentirazinha do costume.

– Foi num livro que me emprestaram… já bastante antigo…

– Hum… bem… bem…

Assim desarmado, o mestre continuou o exame sem mais incidentes. Incidentes houve, depois, com os alunos que não sabiam dizer o nome dos corvos!!!

– … foram uns corvos da mitologia… Ia dizendo o aluno.

– Como se chamavam esses corvos? Perguntava o mestre, atento à lengalenga.

– …… – Emudeciam os ignorantes.

– Giribites, senhor!... Giribites!... Vocês não estudam nada!... É tudo pela rama… tudo pela rama!...»

Júlio Condorcet, que era um animador de serões nato, quer nas tertúlias académicas quer fora delas, desde cedo se iniciou na arte do ilusionismo, adoptando como nome artístico Conde d’Orcet, the King of Embarrilation, inspirando-se para tal no seu próprio nome (Condorcet) e também na controversa figura do artista amador e nobre francês da primeira metade do séc. xix Comte d’Orsay. Aliás, disseste-me tu, Jorge, que em tempos tinhas visto cartões de visita do teu pai relativos à sua actividade artística, mas não te recordavas já se neles estaria Conde d’Orcet ou Conde d’Orsay.

Contrariamente ao que muitos pensam, Condorcet não é nome de família! É nome próprio!... como tu próprio me contaste:

Tudo começou na geração de teu pai, nado em Montemor-o-Velho, cujo nome completo era Júlio Condorcet de Carvalho Pais Mamede. Nessa altura era normal serem os padrinhos a escolher os nomes próprios dos afilhados; e o nome Júlio Condorcet foi “negociado” entre a família (a mãe do menino chamava-se Júlia) e o padrinho, que, vindo da zona de Abrantes, gostava do nome Condorcet, nome popular por ali.

E se o nome era popular por Abrantes, mais popular ficou depois por Coimbra, onde, mesmo na vida profissional, todos tratavam o Dr. Júlio Pais Mamede por Dr. Condorcet.

O Dr. Condorcet logo que teve um filho varão, ou seja, logo que tu nasceste, resolveu dar continuidade à dinastia com ele começada e chamou-te Jorge Condorcet (dos Reis Pais Mamede). E a partir daí foi-se consolidando a tradição de colocar o nome Condorcet como segundo nome próprio dos primogénitos varões da família Pais Mamede, que passou a ser conhecida por muitos como “Família Condorcet”.

Conheci a Família Condorcet na Praia de Mira das longínquas décadas de 40 e 50, quando as famílias de banhistas, que todas se conheciam, criavam as suas próprias diversões. O Dr. Condorcet, teu pai, estava ali como peixe na água, com a sua criatividade e irreverência, ajudado por meios que mais ninguém tinha na altura – gravador de fio, máquinas de filmar e projectar. De tarde reunia-se com o meu pai e mais dois comparsas e gravavam um “Jornal Sonoro” que via «a luz do dia todas as noites às 22 horas!» [5] a partir da varanda do café mais concorrido da Praia.  

Por essa altura tinhas mais dez anos do que eu, um puto de calções, pelo que pouco nos falávamos. Na década de 60, porém, fizemos uma boa amizade durante as digressões do Coro Misto e do Orfeon; a tua jovialidade quebrava barreiras! Depois disso estivemos meio século sem nos vermos, apenas tendo trocado alguns telefonemas. Finalmente, demos de caras um com outro no Palácio de S. Marcos, aquando das comemorações do 730.º aniversário da UC. Agora já éramos da mesma idade…

Foi a 1 de Março de 2020, precisamente um ano antes de nos deixares. A foto diz tudo sobre a alegria do reencontro! Não mais esquecerei este teu sorriso bom, Jorge.

Até sempre!

Zé Veloso

06/03/2021

PS: Três semanas depois de publicada esta carta, o Luís Filipe Colaço, meu colega d'Os Álamos,  editou e publicou no YouTube um “cover” do vídeo original “100 anos Ilusionismo Condorcet”, que apresenta a parte de ilusionismo do Espectáculo "Venham mais 30" Comemorativo dos 30 anos da Associação dos Antigos Tunos da Universidade de Coimbra (AATUC) e dos 100 anos de Ilusionismo da Família, “cover” esse que sonorizou com a música do “Nivram” em fundo, de forma a recriar o ambiente que descrevo mais acima. Carregue AQUI.
Obrigado, Colaço.


[1]  VELOSO, Zé. Os Lysíadas. Vol. I, De Coimbra ao Porto. 1.ª Edição, MinervaCoimbra, Coimbra, Fevereiro 2020.

[2]  «Jorge Condorcet», in Antigos Tunos da Universidade de Coimbra, https://www.uc.pt/aatuc/Colaboracoes/Condorcet.

[3]  CORREIA, Camilo de Araújo. Coimbra Minha. Almedina, Coimbra, 1989.

[4]  Fernando Rolin disse-me um dia que o nome dos corvos seria “Giribitsman” e não “Giribites”.

[5]  VELOSO, Maria Vitória Pinheiro das Neves Veloso de Carvalho Serra; colab. VELOSO, José Luís M. P. À Mesa Éramos Dez. Edição da autora, 2019.


12 comentários:

  1. Caro Zé, obrigada por este maravilhoso texto. Como neta do grande Jorge Condorcet é um prazer ler estas histórias e perceber a amizade e admiração que tantos tinham pelo meu avô.

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  2. Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

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    1. Tratava-se do mesmo comentário acima, o qual tinha dado entrada duas vezes.

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  3. 💖❤️💖Muito obrigado por esta partilha e pela Amizade e Carinho que são bem visíveis e,é óbvio que, o sentimento era recíproco.
    Um enorme Abraço

    Alexandre Condorcet Figueira Henriques Pais Mamede
    (o filho varão do Jorge Condorcet)

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    1. Fiz o que tinha que ser feito, Alexandre. O seu pai e o seu avô foram figuras ímpares na Academia de Coimbra nestes últimos 100 anos. Sou eu que vos agradeço.
      Um grande abraço,
      Zé Veloso

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  4. Linda carta para o Jorge Condorcet.
    O Jorge foi o meu Irmão mais velho. Era casado com a minha Irmã ErneLINDA.
    Também eu passei bons bocados com ele e em situações do arco da velha !
    Nunca perdeu a compostura em qualquer situação, por mais adversa que ela fosse !
    Foi uma das primeiras lições que me legou.
    Era uma pessoa generosa e Amiga dos seus verdadeiros Amigos.
    Foi um Marido exemplar e um Pai, Avô e bisavô extremoso !
    Foi um Genro que meus Pais idolatravam !
    Em palco e após passar pelo nervoso miudinho que era apanágio dele, abria o livro e transformava-se num excelente comunicador e num artista de excelência na sua arte - ilusionismo (cómico) académico como ele assim se definiu.
    Tal como ele dizia, eu "Dos 3 grandes" sou da Académica !
    Tenho e vou ter muitas saudades do meu Irmão, Amigo e Professor Jorge Condorcet!
    Tudo quanto eu possa dizer desta personagem, que tanto me influenciou na minha vida, fica muito aquém da realidade
    Grato por este seu carinhoso testemunho, resta-me desejar-lhe longa vida (votos estes extensivos aos seus Familiares) !
    Um abração.

    Carlos Albano Figueira Henriques - Facebook

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    1. Belo depoimento, Carlos Albano! "Excelente comunicador" são as palavras exactas.
      Um grande abraço,
      Zé Veloso

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  5. Obrigado.Gostei muito de ler.
    Tempos fantásticos.
    Homens que honra Coimbra

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    1. Obrigado, eu.
      Não podemos deixar cair no esquecimento.
      Zé Veloso

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  6. Obrigada por este excelente texto.Tive o privilégio de conviver com Jorge durante 67 anos, começando com um papel chato, (pau de cabeleira) em 12/02/1954, início do namoro.
    Foi um grande Amigo de quem já sinto muitas saudades.
    Anabela Figueira Henriques - cunhada

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