No rodar para o Séc. XX, no conturbado período que antecedeu o final da Monarquia, a capa e batina tinha entrado definitivamente em perda. O seu uso mantinha-se obrigatório dentro do perímetro da Universidade mas era um traje mal-amado por muitos estudantes, pese embora a substituição da “loba” por uma batina de inspiração menos eclesiástica. Em 15 de Outubro de 1898, O Conimbricense informava que a calça nem sempre é preta. A gravata, umas vezes encarnada outras branca, e, só por esquecimento, é que ela é preta… A capa é usada com frequência dobrada e deitada sobre um dos ombros, trazendo-a muitas vezes na mão. E aqueles que querem usar bengala fazem-no…
O relaxar dos costumes era tal que, em 1 de Março de 1907, em pleno eclodir da greve académica que viria a alastrar a todo o país, um lente propôs, no Conselho de Decanos, que se tratasse de obter, no mais curto prazo possível, a abolição da capa e batina, visto ser esse trajo uma das causas das irregularidades dos estudantes, havendo tanto mais razão para a abolir, quanto já não é usada a rigor. E a República fez-lhe a vontade: a 24 de Outubro de 1910, decorridos apenas 19 dias sobre a sua implantação, tornou a capa e batina de uso facultativo… e por pouco não decretava a sua proibição.
Os excessos e o clima de distensão que caracterizaram o advento da República poderiam ter acabado de vez com a capa e batina, a qual era vista como uma herança dum passado de ultramontanismo. Tanto mais que, numa primeira fase, todas as praxes foram postas em causa, tendo a própria cabra, que regulou a vida universitária durante séculos, ficado muda durante 9 anos. Escreveu António José Soares que, em 1913, continuam a aparecer alguns académicos ostentando trajos bizarros em que se mistura a tradicional capa e batina com gravatas, botas, coletes e até calças de cor.
Mas a capa e batina, que provara ter força para resistir ao possante Marquês de Pombal, continuou a ser usada, agora em regime de voluntariado, por muitos estudantes. E, para grande espanto dos de Coimbra, há outros estabelecimentos de ensino, sedentos de uma tradição que não tinham, que resolvem adoptá-la. Voltemos a António José Soares e às Saudades de Coimbra, de cujo livro extraí estas três interessantes notas:
- Março de 1916: Sem prévia consulta à Academia de Coimbra (vide Nota 1 abaixo), os estudantes universitários do Porto resolveram, por maioria, usar capa e batina e uma fita na lapela, da cor da respectiva faculdade.
- Outubro de 1924: Por ter sido proibido, pelo Reitor de um Liceu de Lisboa, que uma aluna usasse capa e batina, os seus colegas decretaram uma greve em sinal de protesto.
- Novembro de 1924: O Governo decretou a permissão do uso de capa e batina aos estudantes de ambos os sexos das Universidades, Liceus e Escolas Superiores.
Voltando às irregularidades no uso do traje – o melhor talvez seja chamar-lhe abandalhamento – elas mantinham-se ainda em meados da década de trinta. Mas há um tempo de viragem, que é bem perceptível na Coimbra, Boémia da Saudade de Reis Torgal. Diz o autor que fotos que tenho do meu Pai, mostram-no, estudante dos anos vinte, usando polainitos castanhos claros, colete de cor e outras formas de vestir a capa e batina que no meu tempo, duas décadas depois, dariam razão às mais ríspidas sanções praxistas.
Ou seja, passados os tempos do fervor republicano, decantados que foram os excessos, a Academia de Coimbra voltou às suas praxes e a capa e batina ressurgiu revigorada. Só que, agora, em autogestão estudantil:
- o tipo de colarinho ou o formato da batina deixaram de ser estabelecidos em edital aprovado pelo Reitor e afixado à Porta Férrea, para serem consignados no Código da Praxe, aprovado por decreto do Conselho de Veteranos, afixado à porta da A.A.C.;
- a fiscalização dos costumes deixou de estar a cargo da polícia académica – os archeiros da Universidade – e passou a ser da competência do Conselho de Veteranos;
- as sanções deixaram de ser a prisão académica ou o “riscar da Universidade” para serem umas colheradas nas unhas e outros mimos do mesmo género.
E a provar que o traje evoluiu, não sendo mais confundível com as vestes clericais, tão do desagrado de Antero de Quental e de outros que se bateram contra o reitor Basílio, estão dois pequenos detalhes:
- os sucessivos Códigos da Praxe (1957; 1993; 2007) determinam que a batina não seja de modelo eclesiástico...
- no caso das raparigas, os Códigos impedem que a saia seja rodada,…
... não viesse daí outra vez a velha "loba"! Curioso!…
Mas mais curioso é notar como a capa e batina voltou a “morrer” em 1969 – conjuntamente com a Queima, as latadas, as praxes académicas – para renascer das cinzas, uma vez mais, qual Fénix, em 79/80! Ainda que a história nunca se repita, os alcatruzes da nora voltam sempre. Experimentem colocar:
- no lugar da crise e das greves académicas de 1907… a crise e as greves académicas de 1969;
- no lugar do 5 de Outubro de 1910 e da implantação da República… o 25 de Abril de 1974 e a restauração da Democracia;
- no lugar dos excessos republicanos… os excessos do PREC…
É bom que a capa e batina – que não é monárquica nem republicana, nem de direita nem de esquerda, nem revolucionária nem reaccionária – tenha voltado ao seu lugar, conjuntamente com outras tradições académicas. Tradições que já não são a mesma coisa, dir-me-ão… mas todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades. Importante é que as tradições se mantenham vivas e, para isso, é inevitável que se vão transformando. Mas há adulterações do traje académico que, se porventura toleráveis noutras paragens, muito me custa que sejam toleradas em Coimbra. Coimbra tem para com a capa e batina responsabilidades acrescidas, que decorrem do facto de, durante quatro séculos, tal traje ter sido um exclusivo da sua Academia.
Da Queima das Fitas do ano passado chegaram-me notícias de excessos que caíram mal na cidade. E eu próprio assisti já a situações caricatas e totalmente proibidas pelo Código da Praxe. Contra tais excessos se levantou a petição pública que referi na primeira crónica desta série (Nota 3) que dediquei à capa e batina. Recentemente, o Conselho de Veteranos promoveu diversas reuniões de esclarecimento sobre a Praxe Académica Coimbrã, que vi noticiadas no Facebook. Faço votos para que a Queima das Fitas que esta semana começa seja uma afirmação de vigor e alegria mas também de respeito por tradições que têm vários séculos atrás de si.
Zé Veloso
Nota 1: Esta frase (recriminatória? exclamatória?) diz muito sobre as responsabilidades que cabem (ou deveriam caber) à Academia de Coimbra.
Nota 2: A ilustração da Fénix é da autoria de Rita Madalena Cabrita (12ºL – 2010/2011) e foi realizada no contexto do projecto “Plano de Voo: Arte,Ciência e Movimento” da E.S. Maria Amália Vaz de Carvalho. Curiosamente, Domitíliade Carvalho, a primeira mulher a formar-se na Universidade de Coimbra, foi Reitora do Liceu D. Maria Pia, mais tarde Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, hoje Escola Secundária.
Nata 3: A CAPA E BATINA VOLTA À RIBALTA, AS ORIGENS DA CAPA E BATINA, CAPA E BATINA. DA "LOBA" ECLESIÁSTICA À BATINA LAICA, CAPA E BATINA. A FÉNIX RENASCE DAS CINZAS.
Nota 2: A ilustração da Fénix é da autoria de Rita Madalena Cabrita (12ºL – 2010/2011) e foi realizada no contexto do projecto “Plano de Voo: Arte,Ciência e Movimento” da E.S. Maria Amália Vaz de Carvalho. Curiosamente, Domitíliade Carvalho, a primeira mulher a formar-se na Universidade de Coimbra, foi Reitora do Liceu D. Maria Pia, mais tarde Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, hoje Escola Secundária.
Nata 3: A CAPA E BATINA VOLTA À RIBALTA, AS ORIGENS DA CAPA E BATINA, CAPA E BATINA. DA "LOBA" ECLESIÁSTICA À BATINA LAICA, CAPA E BATINA. A FÉNIX RENASCE DAS CINZAS.
Boa noite, meu caro Zé Veloso
ResponderEliminarRelendo,encontrei esta passagem que se refere ao trajo nos anos 1900-1904, que dá continuidade ao que o Conimbricense anota em 1898
“……..e em Outubro, de passagem por Lisboa, encontrei-me com o José Aires (*), que logo me expôs o plano desse ano em Coimbra.Resolvera revestir a máxima insolência perante a Academia, em atitudes e em palavras, e para começar já adquirira um colete que havia de fazer sucesso…
Esse colete estreou-o logo na abertura das aulas –e o efeito foi formidável!Era vermelho, dum vermelho provocador e berrante, debruado a cadarço de cor, com grandes botões de metal!No intervalo das aulas trocavam-se com interesse perguntas sobre o colete… E o José Aires, na Via Latina, com a batina desabotoada toda, muito sério, fazia esforços enormes para não largar à gargalhada,….”
(*) José Vaz de Carvalho Aires de Magalhães, quintanista em 1904.
In Uma véspera de feriado-Peça de Costumes de Coimbra-José Bruno-Coimbra Editora-1929-pag.219
O meu abraço
Fantástico, Ricardo!
ResponderEliminarBate certo com tudo o mais que está escrito sobre essa época de rebeldia contra a batina eclesiástica e o traje académico, em geral.
É interessante que a única coisa que parece não ter nunca sofrido contestação foi a capa.
Um abraço e obrigado.
Boa noite
ResponderEliminarQuanto à capa
"Que tempos aqueles, de doce magia, quando, aos versos do Teatro Académico, se juntavam aos que ouvíamos cantar às tricaninhas airosas, lindas como os amores, feiticeiras de gentil sorriso e rosto encantador:
A capa dos estudantes
É como um jardim de flores,
Toda cheia de remendos,
Cada um de várias cores"
In-Tempos de Coimbra,António Cabral(*), pag.40
3ª.ed.1962
(*)Frequentou a UC nos anos 1873-78
Seriam só cantigas?
Abraço
Pois, meu caro Zé Veloso
ResponderEliminarAntónio Cabral, quando volta a Coimbra, cerca de 1919, o que vê?
"Vi alguns estudantes, de capa e batina, calçando botas amarelas, tão destoantes da negridão do trajo!E pensei,com intimo desgosto, que, não sendo eles obrigados, como nós éramos, a ir às aulas com os hábitos académicos, vestindo-os, agora, voluntàriamente, deviam usá-los a preceito e com rigor"
Tempos de Coimbra-Prefácio da 1ª. edição-1925
Grato, pois os teus escritos obrigam-me a reler..
Ricardo,
ResponderEliminarO teu comentário é muito bem observado.
A quadra que referes aparece também no “In Illo Tempore” de Trindade Coelho com pequenas variações: “A capa do estudante / É um jardim de flores / Toda cheia de remendos / Cada um de várias cores”.
Trindade Coelho cursou Direito entre 1880 e 1885. As datas colam. É de admitir que o abandalhamento do traje académico tivesse chegado também à capa... Boa malha!
Zé Veloso
Boa tarde
ResponderEliminarOutro depoimento pessoal(*),anos 1902-1903
”Era também este filho de Apolo(**)extremamente exigente em matéria de uniforme e disciplina.Aluno que se não apresentasse de batina correctamente abotoada até ao pescoço e capa caída a todo o comprimento, corria grave risco.Assim, uma vez, lembro-me também do que se passou com a minha “asa” esquerda, o 86,um estudante algarvio.Era rapaz excessivamente adamado, muito dado a mulheres, e usava, contra o foro, um bonito cachecol de seda branca, e trazia no pulso da mão direita, como fétiche uma pulseira de senhora com berloque.”
(*)Memórias ao longo de uma vida,1888-1974-Luis Cabral de Moncada
Pag.62
(**)Professor Calisto-Fac.Direito
Boa tarde
ResponderEliminarE já agora, espero aceites mais esta intromissão. Mas como sempre manifestas a vontade de bem esclareceres as situações “históricas”, mais um depoiemento de quem frequentou Coimbra (1893)
”Havia um grupo dentro de nós todos que era conhecido pela«Irmandade do Colete Branco».Deu origem a esta irmandade o facto de alguns de nós termos a fantasia, de vez em quando, de nos pormos janotas por baixo da capa rota, vestindo a batina rica e por baixo dela o colete branco”
In-Coimbra nos Noventa-Alfredo de Freitas Leal-pag.20-1932
http://www.facebook.com/photo.php?pid=315528&id=1209949407
ResponderEliminarOs links do facebook mudam quando se adicionam mais fotos...
ResponderEliminarCreio que este éo correcto:
http://a7.sphotos.ak.fbcdn.net/hphotos-ak-snc6/181517_1877061085484_1209949407_2245625_1219692_n.jpg
Reitor Guerra de seu nome, pulga de apelido, meia leca no tamanho, coadjuvado por Farinha Beirão.
ResponderEliminarNão era ruim... era mau como as cobras.
Quando um de nós era levado ao gabinete do reitor, que ficava no primeiro piso, perto da secretaria, já sabia a dose: um estalo na tromba para começar a conversa
Um dia um colega nosso foi ao gabinete. Pediu licença e logo à entrada levou os costumados tabefes.
Meio choroso disse ao que ia.... ia levar respeitosos cumprimentos dum tio, natural da Guarda e que in illo tempore tinha sido colega do "senhor reitor" .
-- Tá bem rapaz, dá lá um abraço ao teu rio e não te esqueças... quando alguma vez te trouxerem aqui, ao gabinete, avisa logo que já levaste a tua dose.
Como se ele desse tempo de avisar
Penso que o único elemento da comunidade que lhe fazia frente era o Dr. Ferreira da Costa, Prof. de Geografia.
O meia leca, nas suas rondas habituais, quando abria a porta de uma sala e via a figura do Dr. Ferreira da Costa fechava-a a toda a velocidade e penso que já nem ouvia o comentário do Dr. Ferreira da Costa, dito em voz alta:
-- O que é que este f.da p. quer?
Octávio
Caro Octávio,
EliminarAdmito que este comentário tenha sido aqui colocado por engano.
Vou copiá-lo para o post "O Liceu D. João III"
Abraço,
Zé Veloso