A arquitectura do ferro, uma arquitectura tipicamente funcional, feita por engenheiros que, a partir de finais do século XVIII, começaram a utilizar plenamente o ferro como elemento resistente das construções, chegou a Coimbra na segunda metade do século XIX.
Começamos aqui a visita, no início da rua Figueira da Foz, neste local ermo e desinteressante, onde uma tabuleta anuncia PARQUE PRIVATIVO e onde, durante o dia, estacionam carros, supostamente a gasolina ou gasoil. Curiosamente, de 1929 a 1973 era este o local onde, durante a noite, estacionavam os carros eléctricos. Já poucos indícios restam da denominada Recolha do Gaz, a não ser nos degradados edifícios da portaria, onde tanto a cor como a cancela de ferro como ainda um emblema dos Serviços Municipalizados nos remetem para a anterior utilização deste espaço.

Até 27 de Novembro de 1836, Coimbra não tinha iluminação pública e cada um que tratasse de se alumiar, se quisesse andar de noite na rua. A partir daquela data, Coimbra passou a ser alumiada a candeeiros de azeite, que consumiam o azeite de pior qualidade e, também, óleo de peixe. Até que apareceu um súbdito inglês – Hardy Hislop de seu nome – que, sendo já concessionário de uma instalação idêntica no Porto, se propôs construir em Coimbra uma Fábrica de Gás (ou gasómetro, como aparece referido em várias actas da Câmara) e uma rede de iluminação pública. A fábrica produziria o gás a partir do carvão, o qual, aquecido a 1000 ºC numa retorta fechada, se decomporia numa mistura combustível de monóxido de carbono e metano [1]. Vide a chaminé da fábrica e os pavilhões que a ladeavam – as tais naves do tempo da arquitectura do ferro – neste interessante postal de Coimbra, cujo ângulo de visão não é nada frequente.
Depois de vários atrasos nas obras (ontem como hoje…) a iluminação foi inaugurada a 1 de Outubro de 1856, ficando a exploração sob a responsabilidade da, entretanto formada, Companhia Conimbricense de iluminação a gaz. Nada sabemos da qualidade que a iluminação teria nessa altura mas, 50 anos mais tarde, já com a rede completa, conta-nos António José Soares [2] que Coimbra tinha a melhor iluminação pública do país, chegando a recear-se que tanta luz pudesse afectar o romantismo das serenatas e, até, vir a acabar com elas...
Como mergulhámos já no séc. XIX, sugiro que nos situemos agora em 1875, sigamos a pé até à Casa do Sal e nos dirijamos depois para o Mondego, onde encontraremos algumas barcas serranas na faina de descarregar o sal vindo da Figueira da Foz. Será uma dessas barcas que nos vai levar aos outros locais que, ainda hoje, iremos visitar.
Entrados que estamos na barca, sigamos pelo rio para junto da mais antiga das pontes de ferro de Coimbra – a ponte ferroviária da linha do Norte sobre o Mondego – que foi construída em 1864. Esta ponte há-de durar, pelo menos, até ao século XXI, ainda que tenha de vir a ser reforçada quando aumentarem a velocidade da linha do Norte e lhe começarem a passar por cima os comboios do futuro – os Alfa pendulares…
É em cima desta ponte que os viajantes costumam captar a primeira imagem de Coimbra ao chegar do Sul, já com o comboio muito perto da estação. Será recordando esta visão que Francisco de Ataíde Machado de Faria e Maia, vindo dos Açores em 1896 estudar para Coimbra, escreverá nas suas memórias [3]: Numa nêsga do rio Mondego, entre choupos e salgueiros no primeiro plano, abria-se límpida e fresca aguarela: – a água transparente, serpenteando em regatos nos meandros da areia fina; silhuetas fugitivas de lavadeiras, batendo roupa; um barco subindo à sirga, retesando-se os membros dos condutores no esforço da tracção violenta, e, ao fundo, num monte, a cidade, Coimbra, branca, lavada, banhada de sol matutino, subindo em socalcos para a Universidade que sobre ela levantava a sua Torre quadrada, numa atitude dominadora de Castelo feudal, sobre o burgo vassalo e submisso.
Momentos depois o comboio entrava na estação.
Deixemos agora o romantismo do Choupal e subamos o rio até perto da zona [4] onde sempre ele foi atravessado, desde que há registos de pontes na cidade.

A ponte ficou barata – por isso mesmo se recorreu à arquitectura do ferro – mas muitos a achavam feia e pouco digna para aquele local [5]: Contudo, o Mondego e Coimbra mereciam de certo mais e melhor do que se fez. Embora houvesse de dobrar-se a despesa, uma ponte de pedra elegante e de estylo romano, como aquella que ha poucos annos se concluiu sobre o rio Cavado, perto de Braga, ou uma ponte de estylo gothico florido, como a de Rialto em Veneza, era o que mais conviria ao sitio afamado do Mondego em frente a Coimbra.
Terminado o repasto, voltemos ao largo da Portagem, subamos um pouco a Couraça da Estrela e viajemos no tempo até aos inícios do século XX, para assistirmos à construção do novo paredão que, roubando terreno ao rio, criará condições para a passagem do caminho-de-ferro e para a construção do Parque da Cidade. Fácil será perceber que irá sobrar um tramo da ponte, por sinal, o mais comprido [6]... Irá ele para a sucata? Será reaproveitado? Vamos encontrá-lo no fim da visita. Mas a parte que agora ficar de pé não durará mais que meio século. Será desmantelada em 1954 para dar lugar à nova Ponte de Santa Clara, que durará, pelo menos, até ao século XXI.
Seguimos agora rio acima, afastando-nos cada vez mais dos limites da cidade, que há muito ficou para trás. O vento está de feição e em breve chegamos à Portela, junto à foz do Ceira. Acostamos a barca e acenamos às lavadeiras que aqui vêm lavar e corar a roupa, aproveitando o branco areal desta zona do rio. Alguma dessa roupa regressará a Coimbra numa barca serrana igual à nossa.
Mas é hora de voltar ao século XXI, é hora de voltar a 2012!

Mas não vamos acabar a visita de hoje sem dar um salto ali ao lado, à estrada da Conraria, para ver um bom exemplo de reutilização, que me traz à memória o que dizia Lavoisier: na natureza nada se perde nem nada se cria… tudo se transforma. Aquela ponte metálica sobre o Ceira, pintadinha dum verde ecológico, com um gradeamento delicado que tão bem vai com o bucólico do rio… aquela ponte é, nem mais nem menos, o que sobrou da velha ponte de Santa Clara.


Caros amigos, o dia foi muito longo e ainda temos mais arquitectura do ferro para visitar em Coimbra. Ficará o resto da visita para um segundo dia, em data a anunciar. Obrigado pela vossa atenção.
Zé Veloso
Agradeço ao António Figueiredo, à Catarina Padez Duarte, ao João Baeta, ao Jorge Oliveira, ao Pedro Rodrigues Costa e ao Ricardo Figueiredo a disponibilização de elementos vários que permitiram compor este "post".
[1] "Percursos Químicos - À procura da antiga Fábrica do Gás", http://percursosquimicos.blogspot.pt/2010/06/pq-cc-procura-da-antiga-fabrica-do-gas.html
[2] "Saudades de Coimbra", Vol I, António José Soares, Edição Almedina, 1985
[3] “A minha velha pasta: tempos de Coimbra e gente do meu tempo, 1896-1901”. Ponta Delgada: Tip. do "Diário dos Açores", 1937.
[4] Todas a pontes vinham desembocar na portagem e todas foram construídas sobre os alicerces das anteriores. Apenas a actual ponte de Santa Clara (local assinalado no Google) foi construída ligeiramente a montante das anteriores.
[5] "Escriptos Diversos", Augusto Filipe Simões, Imprensa da Universidade, 1888
[6] Os tramos da ponte metálica eram desiguais por as fundações dos seus pilares terem aproveitado as fundações dos pilares da ponte de pedra anterior, sendo que cada tramo da ponte metálica correspondia a dois arcos da ponte de D. Manuel.
Agradeço ao António Figueiredo, à Catarina Padez Duarte, ao João Baeta, ao Jorge Oliveira, ao Pedro Rodrigues Costa e ao Ricardo Figueiredo a disponibilização de elementos vários que permitiram compor este "post".
[1] "Percursos Químicos - À procura da antiga Fábrica do Gás", http://percursosquimicos.blogspot.pt/2010/06/pq-cc-procura-da-antiga-fabrica-do-gas.html
[2] "Saudades de Coimbra", Vol I, António José Soares, Edição Almedina, 1985
[3] “A minha velha pasta: tempos de Coimbra e gente do meu tempo, 1896-1901”. Ponta Delgada: Tip. do "Diário dos Açores", 1937.
[4] Todas a pontes vinham desembocar na portagem e todas foram construídas sobre os alicerces das anteriores. Apenas a actual ponte de Santa Clara (local assinalado no Google) foi construída ligeiramente a montante das anteriores.
[5] "Escriptos Diversos", Augusto Filipe Simões, Imprensa da Universidade, 1888
[6] Os tramos da ponte metálica eram desiguais por as fundações dos seus pilares terem aproveitado as fundações dos pilares da ponte de pedra anterior, sendo que cada tramo da ponte metálica correspondia a dois arcos da ponte de D. Manuel.