A crónica de hoje tem a ver com um assunto sensível. Trata-se de uma
matéria politicamente incorrecta, cuja abordagem nesta altura poderá ser,
quiçá, pouco patriótica. Estamos em plena visita de avaliação dos da troika –
que tudo irão vasculhar nas próximas semanas – e receio bem que, quando chegar
a altura de lerem esta crónica, não levem a sério um país onde todos deveríamos
estar cabisbaixos e agradecidos em vez de andar por aí a escrever sobre temas fracturantes,
cujo odor lhes possa fazer chegar a mostarda ao nariz.
Mas há obrigações que não se podem adiar. E é já tempo de não deixar
cair no esquecimento essas relíquias que ainda havia na Coimbra do meu tempo –
os urinóis de ferro – espécie de biombos curvilíneos em cujo labirinto, em
forma de caracol, se entrava aflito e se saía aliviado, e onde ninguém tinha de
bater à porta pois que logo de fora se percebia se era a altura própria para
entrar, já que a sábia arquitectura dos ditos biombos deixava à vista a canela
dos utentes, por cujos movimentos ou quietude se avaliava o tempo sobrante para
o despacho.
Aqui deixo hoje exarada, até que o Google me
apague o blogue, a minha singela e grata homenagem a esses desaparecidos
espécimes de mobiliário urbano, que bem falta nos fazem em época de crise, já
que, em relação aos de hoje, tinham a vantagem de ser grátis, poupando-se o
consumo duma bica ou duma água sem gás, pois que é feio entrar e sair num
estabelecimento sem fazer despesa. Claro está que estas considerações se não
aplicam às senhoras, as quais poderiam sempre continuar a ir aos cafés e
restaurantes e assim haveria alguém para pagar o IVA a 23% na restauração, o
que deixaria a troika e o governo mais tranquilos e contribuiria para a redução
do défice.
Pena tenho eu de, no meu tempo de Coimbra, não ter sido informado de
tais obrigações que o Café de Santa Cruz contraiu para com a cidade, de papel
passado e tudo. Ter-me ia poupado o custo de algumas bicas ou uma subida em
passo apertado para tomar um banho junto à praça. É que, nas traseiras do
Mercado D. Pedro V, de frente para os antigos correios, à esquerda de quem saía
da praça e logo a seguir a um quiosque de jornais, estava um dos tais urinóis
de ferro. Mas a corrosão atingira já as canalizações da água de aspersão, de
tal forma que quem entrava para as verter se arriscava a sair de lá salpicado
da cabeça aos pés. Era um urinol para os dias quentes! O meu irmão contou-me que,
no seu interior, alguém bem-disposto escrevera a seguinte quadra:
Isto não é um urinol
É uma coisa indecente
Vem a gente mijar nele
E é ele quem mija na gente
Vem a gente mijar nele
E é ele quem mija na gente
Pobre urinol da praça... não te deram concerto, tiraram-te lá do canto e,
agora, os que por lá passam fazem o mesmo que faziam dantes mas vê-se-lhes o
corpo todo e ainda têm de o fazer ao relento!
Mas o mais afamado, aquele que, estou certo, resolveu as aflições de
meia Coimbra, a meia Coimbra que usava calças, situava-se ao cimo da Sá da
Bandeira. Prantado junto à Praça da República, estava bem enquadrado na
paisagem, adornado pela casota dos cisnes e meio disfarçado pelo quiosque dos
jornais (só ainda não entendi esta atracção entre os urinóis e os jornais.
Adiante…).
Um grande favor lhe fiquei a dever: um belo dia em que por ali rondava
uma trupe, era eu ainda bicho ou caloiro, logrei fintá-la entrando no
“labirinto”, onde, contendo a respiração, fui controlando os movimentos do
inimigo através do rendilhado dos painéis de ferro meio apodrecidos, escudado
no facto de a condição de futrica ou de estudante não ser facilmente avaliável pela
barriga da perna. O que mostra que nem sempre a corrosão é uma desvantagem...
Nascidos em França, julga-se que no século XIX, não sei em que data
chegaram a Coimbra, onde, praticamente, não deixaram registo de imagem, talvez
por pudor dos retratistas. Mas existiam ainda na década de 60, sendo que pelos
anos 70 terão ido para a sucata, como normalmente acontece num país de
sucateiros.
Ao invés, em cidades europeias de países que presam o seu património, é possível ver, ainda hoje, em jardins e outros espaços públicos, devidamente
conservados, alguns exemplares de ferro fundido que são verdadeiras obras de
arte. Assim se pode comparar o ontem e o hoje. Assim se mostra aos mais novos que o conforto e a higiene de que hoje gozamos não nasceram de geração
espontânea.
Procurei, com afinco, uma fotografia dos urinóis de Coimbra, em pose
institucional, que pudesse ilustrar esta crónica. Gostaria de os ver retratados
na flor da idade, enquanto jovens bem-parecidos e não com o ar decrépito que
lhes conheci. Mas nada. Apenas encontrei no livro COIMBRA. IMAGENS DO PASSADO (2) , uma foto de 1953, tirada a partir da Estação Nova, onde apenas é visível
a cúpula de um deles, envergonhadamente escondido atrás de um parque de
camionetas de carreia, onde hoje está um quiosque de jornais (tinha que
ser!...)
Estive quase para não a colocar aqui. Um urinol só faz sentido… em sentido… e
de corpo inteiro!
Zé Veloso
PS: Já
depois de terminada e publicada a crónica, soube que em Lisboa ainda há urinóis
de ferro a funcionar, nomeadamente no Castelo de S. Jorge.
(1) SANTA CRUZ:
UM CAFÉ COM HISTÓRIA, António Inácio Correia Nogueira, Câmara Municipal de
Coimbra, 2007, pág. 106.
(2) COIMBRA. IMAGENS DO PASSADO. 1940-1960, Mário Nunes, Livraria Minerva1990, pág121.
(2) COIMBRA. IMAGENS DO PASSADO. 1940-1960, Mário Nunes, Livraria Minerva1990, pág121.
Caro Zé Veloso, parabéns por mais esta bela prosa!
ResponderEliminarContudo, tenho a informar-te que no Porto, muito próximo da nossa República, mais concretamente, em frente ao cemitério Prado do Repouso existente ao lado do Museu Militar, existe ainda um destes urinóis em ferro, que se encontra devidamente restaurado e funcional. E adivinha o que existe um pouco abaixo do mesmo? Lá está: um quiosque com jornais! Alguma relação deve haver entre a um local onde existe papel em abundância, com outro onde o papel por vezes faz falta!
Ah, Grande Porto! É assim mesmo! E logo ao pé da nossa Real República!
EliminarJá tive de colocar um post scriptum no post por causa de comentários que recebi no Facebook, dizendo que também havia urinóis de ferro activos em Lisboa.
Quando a poeira assentar - sei lá se os há ainda por outras terras portuguesas - vou mesmo ter de alterar o texto base e deixar Coimbra isolada na função de sucateira-mor do "património arqueológico sanitário".
Transcrevo para aqui comentários que chegaram à página “Zé Veloso” do facebook:
ResponderEliminarDe Sofia Pimentel:
Querido Primo, em Lisboa, ainda temos um belo exemplar a funcionar, junto ao Castelo de São Jorge. Para inveja das moças. http://4.bp.blogspot.com/-wHKGPQ05V6k/TjaxXbdGDrI/AAAAAAAAKwk/6Lvy45hA4wo/s1600/Urinol_Castelo2.jpg
Resposta ZV: Querida prima, Julgo que em Lisboa até haverá mais do que um a funcionar. Andei a espreitar no arquivo fotográfico da CML mas não fiquei com certezas e preferi não arriscar. Falaram-me também em Olivais Velho. Tenho de ir "cheirar" essas coisas. E vou aproveitar a tua dica para dar um retoque no texto da crónica.
De José Amaral:
O seu Irmão, que refere no texto, é o meu Amigo Coronel Veloso, que até há pouco foi aqui Professor, na Escola das Mouriscas? Se é ele, e penso que será, imagino quem lá terá escrito a quadra, bem ao jeito...
Resposta ZV: Sim, o Manuel Veloso, que andava no D. João III dois anos à minha frente.
De: Luís Pinheiro de Almeida
Acho que há mais urinóis, além do Olivais Velho. No Beato.
Resposta ZV: Vou ter de apurar o olfato...
Transcrevo os comentários que chegaram à página “Penedo d@ Saudade – TERTÚLIA” do Facebook.
ResponderEliminarDe Luís Pinheiro de Almeida:
http://guedelhudos.blogspot.pt/2009/10/um-uronil-dos-antigos.html
Resposta ZV: É mais um que está bem conservado. Os de Coimbra eram mais rebuscados, pois que tinha tecto. Assemelhavam-se muito aos quiosques dos jornais.
SE colocares no Google (imagens) as palavras "urinol" e "pissoir" (o termo francês), ficarás admirado com a variedade...
Para os amantes da arqueologia sanitária!
De Cândido Pereira:
Mais uma interessante, elucidativa e bem-humorada crónica, desta vez sobre uns espaços bem necessários e que tão bons serviços prestaram anos a fio, às gentes de Coimbra. Bem podiam ainda hoje continuar a sua meritória função, já não digo em frente ao Santa Cruz, mas, porque não, cerca da Estação Nova(parece que inicialmente esteve na Portagem).
Resposta ZV: Há um site muito interessante (o link aparece no post mas pode não se notar). Lá se conta a história destes bichos e a sua evolução até aos dos dias de hoje, onde passaram a casotas que já podem ser utilizadas pelas senhoras (mais uma conquista feminina do pós guerra).
Aqui fica o link: http://obviousmag.org/archives/2009/01/urinois_publicos.html
Transcrevo comentário recebido via e-mail.
ResponderEliminarDe: Paixão Melo
Lembro-me muito bem desses utilíssimos móveis que as autarquias da época punham ao dispor dos fregueses. Não me esqueço do incomodativo cheiro amoniacal resultante das transformações da ureia contida no líquido que generosamente vertiamos com prazer e indisfarçável alívio. Não precisavam de ter letreiros indicando a sua presença, pois o seu característico odor denunciáva-os a uma razoável distância . Muitos deles eram autênticas obras de arte e de fecunda imaginação?!...
Quem quizer ver fotos de alguns exemplares, das mais diversas cidades da Europa, pode ir ao GOOGLE e procurar " Urinois publicos. uma arte em vias de extinsão".
Matem saudades dos vossos alívios.
Paixão Melo
Ainda não tive tempo de ir confirmar, mas penso que nos Olivais Velho (Lisboa) ainda lá está um, na Praça Viscondessa dos Olivais.
ResponderEliminarPelo street view parece lá estar
http://goo.gl/maps/oN7Ah
Quanto ao do Castelo de S. Jorge, passei por lá há pouco tempo.
Obrigado, Pedro.
EliminarHei-de passar por lá, já que nem estou longe.
A figura do Google não deixa dúvidas. É de modelo muito simples. Os de Coimbra eram mais imponentes e artísticos.
Abraço, Zé Veloso
Meu caro
ResponderEliminarEstas notas datam a preocupação e decisão camarária
1864-Reunião Câmara-27 de Outubro Deliberou-se construir urinóis e cloacas
1865-Reunião de Câmara -13 de Janeiro-É arrematado a Ladislau José dos Reis o trabalho de fazer quarenta urinóis, a distribuir pela cidade. Importaram em 5$800 reis cada.
In -Anais do Município de Coimbra 1840-1869 Armando Carneiro da Silva Coimbra 1972-1973
Obrigado, Ricardo. Bela achega!
Eliminar40 urinóis é obra!
Uma concorrência às tascas da cidade, pois suponho que o seu uso não obrigaria a "fazer despesa"...
Abraço, Zé Veloso
Boa noite
EliminarNaquele tempo e até no nosso, as tabernas não tinham urinol.Quintal, às vezes...Na velha Alta, o Cabaça, o Espanhol, não tinham esse anexo. Não havia ASAE
Abraço