30 março 2012

VISITA GUIADA À ARQUITECTURA DO FERRO – 1.º dia

    A arquitectura do ferro, uma arquitectura tipicamente funcional, feita por engenheiros que, a partir de finais do século XVIII, começaram a utilizar plenamente o ferro como elemento resistente das construções, chegou a Coimbra na segunda metade do século XIX.

    Coimbra não tem nenhuma obra com a assinatura de Gustave Eiffel, como acontece com o Porto e Viana do Castelo, mas não deixa de ter, ainda hoje, alguns interessantes exemplares daquela arquitectura, apesar de outros terem desaparecido há já alguns anos.

    Começamos aqui a visita, no início da rua Figueira da Foz, neste local ermo e desinteressante, onde uma tabuleta anuncia PARQUE PRIVATIVO e onde, durante o dia, estacionam carros, supostamente a gasolina ou gasoil. Curiosamente, de 1929 a 1973 era este o local onde, durante a noite, estacionavam os carros eléctricos. Já poucos indícios restam da denominada Recolha do Gaz, a não ser nos degradados edifícios da portaria, onde tanto a cor como a cancela de ferro como ainda um emblema dos Serviços Municipalizados nos remetem para a anterior utilização deste espaço.

    Mas os eléctricos não ficavam ao relento, como hoje ficam aqui os automóveis. Cobriam-nos os telhados de duas naves que suponho que fossem de estrutura metálica, as quais terão substituído outras existentes no mesmo local ou, quem sabe, terão sido reconstruídas a partir delas. Em relação às mais antigas, construídas há quase 160 anos, sabe-se que eram metálicas e tenho para mim que terão sido um dos primeiros exemplares (se, não mesmo, o primeiro) da arquitectura do ferro em Coimbra. Contemos a sua história:

    Até 27 de Novembro de 1836, Coimbra não tinha iluminação pública e cada um que tratasse de se alumiar, se quisesse andar de noite na rua. A partir daquela data, Coimbra passou a ser alumiada a candeeiros de azeite, que consumiam o azeite de pior qualidade e, também, óleo de peixe. Até que apareceu um súbdito inglês – Hardy Hislop de seu nome – que, sendo já concessionário de uma instalação idêntica no Porto, se propôs construir em Coimbra uma Fábrica de Gás (ou gasómetro, como aparece referido em várias actas da Câmara) e uma rede de iluminação pública. A fábrica produziria o gás a partir do carvão, o qual, aquecido a 1000 ºC numa retorta fechada, se decomporia numa mistura combustível de monóxido de carbono e metano [1]. Vide a chaminé da fábrica e os pavilhões que a ladeavam – as tais naves do tempo da arquitectura do ferro – neste interessante postal de Coimbra, cujo ângulo de visão não é nada frequente.

    Depois de vários atrasos nas obras (ontem como hoje…) a iluminação foi inaugurada a 1 de Outubro de 1856, ficando a exploração sob a responsabilidade da, entretanto formada, Companhia Conimbricense de iluminação a gaz. Nada sabemos da qualidade que a iluminação teria nessa altura mas, 50 anos mais tarde, já com a rede completa, conta-nos António José Soares [2] que Coimbra tinha a melhor iluminação pública do país, chegando a recear-se que tanta luz pudesse afectar o romantismo das serenatas e, até, vir a acabar com elas...

    Como mergulhámos já no séc. XIX, sugiro que nos situemos agora em 1875, sigamos a pé até à Casa do Sal e nos dirijamos depois para o Mondego, onde encontraremos algumas barcas serranas na faina de descarregar o sal vindo da Figueira da Foz. Será uma dessas barcas que nos vai levar aos outros locais que, ainda hoje, iremos visitar.

        Entrados que estamos na barca, sigamos pelo rio para junto da mais antiga das pontes de ferro de Coimbra – a ponte ferroviária da linha do Norte sobre o Mondego – que foi construída em 1864. Esta ponte há-de durar, pelo menos, até ao século XXI, ainda que tenha de vir a ser reforçada quando aumentarem a velocidade da linha do Norte e lhe começarem a passar por cima os comboios do futuro – os Alfa pendulares…

    É em cima desta ponte que os viajantes costumam captar a primeira imagem de Coimbra ao chegar do Sul, já com o comboio muito perto da estação. Será recordando esta visão que Francisco de Ataíde Machado de Faria e Maia, vindo dos Açores em 1896 estudar para Coimbra, escreverá nas suas memórias [3]: Numa nêsga do rio Mondego, entre choupos e salgueiros no primeiro plano, abria-se límpida e fresca aguarela: – a água transparente, serpenteando em regatos nos meandros da areia fina; silhuetas fugitivas de lavadeiras, batendo roupa; um barco subindo à sirga, retesando-se os membros dos condutores no esforço da tracção violenta, e, ao fundo, num monte, a cidade, Coimbra, branca, lavada, banhada de sol matutino, subindo em socalcos para a Universidade que sobre ela levantava a sua Torre quadrada, numa atitude dominadora de Castelo feudal, sobre o burgo vassalo e submisso.
Momentos depois o comboio entrava na estação.

    Deixemos agora o romantismo do Choupal e subamos o rio até perto da zona [4] onde sempre ele foi atravessado, desde que há registos de pontes na cidade.

    8 de Maio de 1875! O alvoroço é grande. Pudera! Estamos no dia em que se procede à inauguração de mais uma ponte metálica, a qual veio substituir a Ponte do O, que, devido ao assoreamento do rio,  já mal permitia a passagem das barcas debaixo dos seus arcos. É a esta ponte que os vindouros hão-de chamar a velha Ponte de Santa Clara. Os carros passam na zona central entre as vigas reticuladas, como se circulassem dentro de uma gaiola, enquanto os peões se deslocam em corredores situados do lado de fora da estrutura principal. O seu custo total, ainda não calculado a esta data, será de 101:730$695, incluindo o custo de demolição da Ponte do O e a construção dos acessos do lado de santa Clara.

    A ponte ficou barata – por isso mesmo se recorreu à arquitectura do ferro – mas muitos a achavam feia e pouco digna para aquele local [5]: Contudo, o Mondego e Coimbra mereciam de certo mais e melhor do que se fez. Embora houvesse de dobrar-se a despesa, uma ponte de pedra elegante e de  estylo romano, como aquella que ha poucos annos se concluiu sobre o rio Cavado, perto de Braga, ou uma ponte de estylo gothico florido, como a de Rialto em Veneza, era o que mais conviria ao sitio afamado do Mondego em frente a Coimbra.
    Aproveitemos agora para sair da barca e matar a fome numa qualquer casa de pasto ali para os lados da praça velha, onde as regateiras já não mercadeiam desde que, há oito anos, passaram para a nova praça – o mercado D. Pedro V, que visitaremos no próximo dia.

    Terminado o repasto, voltemos ao largo da Portagem, subamos um pouco a Couraça da Estrela e viajemos no tempo até aos inícios do século XX, para assistirmos à construção do novo paredão que, roubando terreno ao rio, criará condições para a passagem do caminho-de-ferro e para a construção do Parque da Cidade. Fácil será perceber que irá sobrar um tramo da ponte, por sinal, o mais comprido [6]... Irá ele para a sucata? Será reaproveitado? Vamos encontrá-lo no fim da visita. Mas a parte que agora ficar de pé não durará mais que meio século. Será desmantelada em 1954 para dar lugar à nova Ponte de Santa Clara, que durará, pelo menos, até ao século XXI.

    Seguimos agora rio acima, afastando-nos cada vez mais dos limites da cidade, que há muito ficou para trás. O vento está de feição e em breve chegamos à Portela, junto à foz do Ceira. Acostamos a barca e acenamos às lavadeiras que aqui vêm lavar e corar a roupa, aproveitando o branco areal desta zona do rio. Alguma dessa roupa regressará a Coimbra numa barca serrana igual à nossa.

    Mas é hora de voltar ao século XXI, é hora de voltar a 2012!

    Entremos agora na segunda ponte metálica mais antiga de Coimbra – a ponte rodoviária da Portela, a qual podemos visitar a pé, pois que, ainda que abandonada à sua sorte, não aparenta ruína. Inaugurada em 13 de Julho de 1873, foi há poucos anos fechada ao trânsito. Nesse intervalo de tempo, assegurou a ligação entre Coimbra e o interior, através da estrada da Beira, uma estrada que, de acordo com o Guia de Portugal, ostentava em 1940 o n.º 9, o que atesta bem a sua antiguidade. Está hoje à espera que apodreça e caia de vez ao rio. Uma ponte centenária, que nem é feia, a merecer melhor sorte num Portugal que pouca liga aos mais velhos!...

    Olhando para montante do rio, vemos lá no alto a ponte ferroviária do ramal da Lousã – ponte das Carvalhosas – que tem a idade daquele ramal, o qual foi inaugurado a 16 de Dezembro de 1906. Está hoje de cara bem lavada, quase pronta a receber os comboios que se diz que hão-de voltar a passar… só não se sabe quando! Quase pronta, escrevi eu. É que as travessas e os carris já se foram embora e ninguém os substituiu! Não recomendo que vão lá acima ver (é perigoso!). A fotografia diz tudo.

    Mas não vamos acabar a visita de hoje sem dar um salto ali ao lado, à estrada da Conraria, para ver um bom exemplo de reutilização, que me traz à memória o que dizia Lavoisier: na natureza nada se perde nem nada se cria… tudo se transforma. Aquela ponte metálica sobre o Ceira, pintadinha dum verde ecológico, com um gradeamento delicado que tão bem vai com o bucólico do rio… aquela ponte é, nem mais nem menos, o que sobrou da velha ponte de Santa Clara.



    Caros amigos, o dia foi muito longo e ainda temos mais arquitectura do ferro para visitar em Coimbra. Ficará o resto da visita para um segundo dia, em data a anunciar. Obrigado pela vossa atenção.

    Zé Veloso

Agradeço ao António Figueiredo, à Catarina Padez Duarte, ao João Baeta, ao Jorge Oliveira, ao Pedro Rodrigues Costa e ao Ricardo Figueiredo a disponibilização de elementos vários que permitiram compor este "post".

[1]  "Percursos Químicos - À procura da antiga Fábrica do Gás", http://percursosquimicos.blogspot.pt/2010/06/pq-cc-procura-da-antiga-fabrica-do-gas.html
[2]  "Saudades de Coimbra", Vol I, António José Soares, Edição Almedina, 1985
[3]  “A minha velha pasta: tempos de Coimbra e gente do meu tempo, 1896-1901”. Ponta Delgada: Tip. do "Diário dos Açores", 1937.
[4]  Todas a pontes vinham desembocar na portagem e todas foram construídas sobre os alicerces das anteriores. Apenas a actual ponte de Santa Clara (local assinalado no Google) foi construída ligeiramente a montante das anteriores.
[5]  "Escriptos Diversos", Augusto Filipe Simões, Imprensa da Universidade, 1888
[6]  Os tramos da ponte metálica eram desiguais por as fundações dos seus pilares terem aproveitado as fundações dos pilares da ponte de pedra anterior, sendo que cada tramo da ponte metálica correspondia a dois arcos da ponte de D. Manuel.  


7 comentários:

  1. Parabéns, Zé Veloso, por este excelente artigo!
    A ideia de permitir visualizar os vários pontos geográficos no Google Map é genial!
    Ainda não digeri esta minha primeira leitura porque foi rápida demais. Irei repetir esta viagem várias vezes, para saborear bem todas as informações e os pormenores.

    Um abraço,
    Marinela

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  2. Obrigado, Marinela.
    De facto este post tem muita informação... Foi daqueles que me pôs a cabeça à roda. Felizmente já não estou sozinho e há vários amigos a canalizar dados que depois eu vou aproveitando quando a ocasião se presta.
    A ideia de marcar os pontos no Google foi do meu genro que, quando me viu a preparar o texto, me lembrou que essa seria a forma de quem não conhece Coimbra poder acompanhar o texto e o ambiente que o rodeia.
    Um abraço,
    Zè Veloso

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  3. Excelente viagem. Parabéns. O texto está delicioso com muita e variada informação.
    Fico a aguardar pela continuação desta viagem tão interessante. Um abraço.

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  4. Ricardo Figueiredo01 abril, 2012 22:11

    Meu caro Veloso
    Outro, olhando a ponte, escreveu:
    “Perto de Coimbra fica a ponte da via férrea,que atravessa o rio tão acaçapadamente, que os barcos têem de arrear vela para lhe passar por debaixo. Esconde-se a mesquinha, como que envergonhada, para a não compararem com a antiga e majestosa ponte de pedra. Faz bem; que tal comparação não podia ser, por parte da esthetíca, senão desfavorável à arte moderna.”
    In-Escriptos diversos-Augusto Fillipe Simões Coimbra-1888
    Abraço

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  5. Decididamente, Augusto Filipe Simões (mas não seria só ele) não ia muito à bola com o novo conceito arquitectónico.
    Para a época, deveria ser tremendamente chocante...
    Zé Veloso

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  6. Sr.Ze Veloso, muitos parabens e obrigado pelo excelente trabalho que os meus olhos puderam ler e ver, podendo eu ter "viajado no tempo" da nossa querida e tao bonita Coimbra. Estou a alguns milhares de Kms dela, mas em pensamento estou mais ai do que aqui, porque seja onde estivermos Coimbra nos acompanha.
    Com os meus cumprimentos e felicidades para a continuacao de futuras "viagens".

    Odete Oliveira
    Norwalk - CT - USA

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    1. Obrigado pelo seu comentário, Odete Oliveira.
      A internet é uma ponte que nos mantém ligados a muitos kms de distância. Visitámos várias pontes da arquitectura do ferro e agora estamos utilizando uma outra, da arquitectura digital!
      Um abraço,
      Zé Veloso

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