Estou mesmo aperreado! Há 3 dias que procuro a chave por
todo o lado e não há meio de a encontrar!
Não que a casa seja muito grande, que o não é. Só que
começa a estar um pouco cheia com o que se acumula em quase setenta anos de vida.
Com o passar do tempo vamos guardando um pouco de tudo, de papéis importantes a
ninharias sem valor algum. De coisas antigas que herdámos até maquinetas
obsoletas que talvez um dia venham a ser antiguidades. E, no meio disto tudo… a
chave que não aparece!
Há caixotes de livros, gavetas com cassetes e bobinas de
fita, máquinas de calcular, a minha régua de cálculo, pesetas e escudos que não
foram trocados a tempo, cacos de louça para colar um dia, películas e slides
para organizar “quando me reformar”, fotografias em barda, em álbuns e em
envelopes de carta, mapas, cartões-de-visita, um santinho da comunhão solene,
convites de casamento, óculos de sol e de sombra, relógios e rádios sem pilha,
restos de tudo e de nada, uma botijinha a álcool para aquecer as mãos nas noites
frias do Porto, papéis e mais papéis, moedas, ferragens, chaves… mas não a chave
que eu procuro.
Eu sei que não anda longe! Ainda há uns dez ou doze anos
me lembro de a ter visto no meio desta confusão a que a minha mulher chama lixo
mas que eu espero que, um dia, se tiver a sorte de morrer famoso, lhe venham a
chamar “o espólio do Zé Veloso”.
Já corri todas as cómodas, estantes e escrivaninhas, as
gavetas das mesinhas de cabeceira e do toucador. Nem esqueci o velho camiseiro
que veio de Ançã! Abri caixas e caixinhas, encontrei mil recordações que já
tinha varrido da memória. Espetei, até, um alfinete num dedo. Mas, da chave…
nada!
Não que com ela abrisse hoje grande coisa! A porta que
ela abria já foi feita em pedaços. A casa que ela franqueava já só existe em
fotografias ou na nossa imaginação. Por isso esta chave é tão importante para mim. Ela é o
último vestígio físico, palpável, que possuo do 333 da Avenida da Boavista!
Ela é a chave que todos nós levávamos no bolso na hora da
saída. Para voltar a entrar na nossa casa – a República – sempre que necessário,
sem ter de bater à porta. Porque a figura de ex-repúblico não existe. Quem um
dia foi repúblico, repúblico fica para toda a vida.
Zé Veloso
Nota 1: Quase um ano depois de ter suspendido
a escrita no blogue, escrita que só deverei retomar com regularidade lá para o início
de 2014, resolvi trazer aqui um texto que publiquei no Kápranós, jornal da Real República dos Lysos – a minha República – aquando do seu último Centenário.
Faço-o em homenagem às Repúblicas de Coimbra, cuja tradição os Lysos
perpetuaram no Porto, numa altura em que a sobrevivência de algumas delas poderá
estar ameaçada pelo aumento das rendas de casa.
Nota
2: A Real República dos Lysos – a última república sobrevivente do Porto – vive hoje na sua quarta morada. Aquela chave esquisita, que acabaria por encontrar dias mais tarde, abria a porta do 333 da Avenida da Boavista, morada da República no final da década de 60.