24 novembro 2021

O ESPÍRITO DA TOMADA DA BASTILHA


São quatro da tarde do dia 24 de Novembro de 2021. A esta hora, há 101 anos, os conjurados preparavam-se mentalmente para a última noite de ansiedade, desconhecendo se, daí a 24 horas, estariam vitoriosos ou, quem sabe, a caminho de serem expulsos da Universidade.

Presto-lhes aqui a minha homenagem, republicando a parte final do artigo que escrevi para o n.º 55 da revista “CAPA E BATINA” [1], aquando dos 100 ANOS DA TOMADA DA BASTILHA.

O 25 de Novembro de 1920 foi mais do que o simples assalto a um edifício que se quis tomar para alargar uma sede. Ele foi um grito de revolta que, ao libertar o prédio, arrastou consigo a libertação da própria Academia. Por isso a Tomada do Instituto foi depois, simbolicamente, apelidada Tomada da Bastilha – remetendo para o imaginário da Revolução Francesa –, já que, aos olhos dos estudantes, o Instituto corporizava o poder absolutista daqueles lentes iluminados, distantes e despóticos que não tinham acompanhado o evoluir dos tempos.

E arrombar a porta que separava os andares do prédio foi como que derrubar uma barricada que separava mestres e alunos, e partir para uma vida nova. E à irreverência dos alunos responderam os mestres com a melhor compreensão.

Estes factos, que chegaram até hoje com o seu quê de picaresco que nos faz sorrir, não devem esconder que a Tomada da Bastilha foi um acto de coragem de um grupo de estudantes que se arriscou a pesadas penas, tais como “ser riscado” da Universidade, para que a Academia de então tivesse uma sede decente para a sua Associação Académica, retomando o precedente de dignidade das suas instalações, que se perdera, e deixando um exemplo para as gerações vindouras.

Hoje parece que foi fácil… mas se parece é porque não estivemos lá! Os depoimentos de quem lá esteve, de quem correu os riscos, dizem-nos que houve «nervos crispados» em quem ficou na Bastilha «às escuras, estendido pelos bancos, sobre os bilhares, toda a comprida noite […] vibrando a todo o ruído que o silêncio mais avolumava»; e dizem-nos que alguns «se tornaram lívidos perante o cenário da “batalha” que se aproximava»; e que houve um profundo terror ao partir para a Torre em «quem sentiu, ao querer marchar, que os pés se lhe pregavam ao chão, ao mesmo tempo que um frio lhe inundava a fronte».

Houve medo, sim! Mas houve a coragem de o ultrapassar, porque havia uma causa que os ultrapassava a todos – a sua Associação Académica!

A nossa Associação Académica de Coimbra!

E Fernandes Martins, o principal obreiro da Tomada da Bastilha, viria a ser Presidente da Associação no ano a seguir ao golpe (levando consigo outros conjurados), como o Passarinho o fora já no ano anterior.

E outras Direcções com outros Presidentes se lhe seguiriam, irmanados no mesmo espírito de inconformismo, rebeldia, companheirismo, desapego, entrega e coragem, espírito com que foram levando a Academia de Coimbra, em cada época, a lutar pelos ideais e objectivos que na altura se lhes afiguraram como sendo justos e necessários.

Foi esse espírito que passou de geração em geração. O espírito da Tomada da Bastilha! É por ele que ainda hoje importa celebrá-la!

Zé Veloso

[1] Para ler o artigo completo carregue em cima.

21 novembro 2021

“OS LYSÍADAS”, DE ZÉ VELOSO

Fez ontem uma semana, tive o gosto de apresentar OS LYSÍADAS num almoço (seguido de sarau) da AAECL - Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra em Lisboa, iniciativa que congregou 125 convivas que já não se encontravam desde o início da pandemia. Foi a oportunidade que a Associação teve de voltar a juntar amigos e de dar continuidade a eventos que foram cancelados por causa do Covid 19, como foi o caso do primeiro lançamento daquele livro, que deveria ter acontecido na sede da AAECL em 17 de Março de 2020.

Mas o que são, afinal, OS LYSÍADAS, de seu nome completo, OS LYSÍADAS. A Epopeia dos LyS.O.S., uma República de Coimbra no Porto?

Se eu vos disser como o livro começa,

Os ursos e os calões esperançados,

Que da ocidental terra das tricanas,

Por mares nunca dantes navegados,

Passaram ainda além de Vale de Canas,

E em perigos e guerras esforçados

Mais do que prometia a força e o tanas,

E entre as gentes do Norte edificaram

República, que tanto sublimaram;

já poderão imaginar que se trata de um poema épico que relata a saga de um grupo de estudantes de Coimbra que em 1959 rumaram ao Porto, «numa mão a guitarra e noutra a pena», para aí terminarem os seus cursos de Engenharia e Farmácia; e que, não tendo onde se aboletar, lá fundaram a Real República dos LyS.O.S., que é presentemente a única República de estudantes que ainda resta no Porto, a qual, por coincidência, deverá estar ainda a dormir a esta hora, já que festejou ontem rijamente o seu LXII Centenário!

Segundo reza a synopsys do livro, o poema «segue uma linha paralela à narrativa de Camões, adaptando os episódios mais marcantes da obra do Poeta aos temas que trata e aos tempos que retrata, de forma criativa, irreverente e bem-humorada».

E os temas e tempos que trata e retrata são, para além do que aos LyS.O.S. diz respeito, a história e as histórias de Coimbra, da sua Universidade e da sua Academia e, ainda, das tradições académicas centenárias, que haveriam de estender-se ao Porto e, mais tarde, a outras academias.

Mal me ficaria se, ao apresentar-vos OS LYSÍADAS, vos não trouxesse aqui um pouquinho mais do seu conteúdo. Escolhi sete estrofes do Canto IV, que fazem parte de uma passagem que antecede o “Episódio do Velho da Estação Nova”, personagem que, à semelhança do Velho do Restelo, não entendia a vã glória de ir estudar para tão longe, sujeitando-se a perigos nunca vistos, quando, em Coimbra, havia cursos de sobra.

A cena passa-se no largo em frente da Estação Nova, enquanto os LyS.O.S. se preparavam para entrar no comboio que os levaria rumo ao Norte. Em itálico está o que pertence aos Lusíadas de Camões.

27

A gente da cidade, aquele dia,

(Uns por amigos, outros por parentes,

Outros por ver somente) concorria,

Para olhar mais de perto as nossas gentes.

E junto co’a virtuosa companhia

Do povo humilde, gestos diligentes,

Estavam as forças vivas da cidade,

Que assim se despediam com saudade.

 

28

Logo à frente dos mais vinha o Teixeira,

Engraxador de toda a Academia,

Que um dia, no Casino da Figueira,

De fraque preto e calça fantasia,

Foi beber pirolito e bagaceira,

Dando o braço, cortês, à fidalguia.

Representava ali todos os mais

Das profissões chamadas liberais.

 

29

Representando o Grémio dos Logistas,

Negócio de Adeleiro, Roupa & Trapo,

O Pícalo, que nos trocava as vistas

Na prova da batina e do casaco

(E, de caminho, armava aos pugilistas,

Que ser forte, afinal, era o seu fraco),

Um precursor da moda do futuro:

Um só tamanho, em vez de furo a furo!

 

30

Um pouco mais atrás vinha o Pirata,

Onde tanto estudante, sem pagar,

Comeu, bebeu e só bateu a chapa

Um dia, quando já a trabalhar!

Representava ali todo o magnata

Que tem dinheiro seu para emprestar:

Casas de prego, bancas de mercado

E as lojas que vendem a fiado.

 

31

De boné preto e farda azul escura,

Bigode, perna curta, ar de Charlot,

’Tava o Sô Chico, em plena formatura

(Que nesse dia a Associação fechou),

Co’a rezinguice própria e a candura

De um porteiro que era já avô.

Representava as profissões fardadas:

Contínuos, cobradores, Forças Armadas.

 

32

Mas eis que também chega o Formidável,

Cauteleiro e fotógrafo amador.

Vinha de trás, com seu discurso afável,

Talvez pra consolar algum doutor,

Assim como, de forma memorável,

Quando Eusébio chorou a sua dor.

Representava as artes de olhar

E os jogos de fortuna e de azar.

 

33

Sua eminência o bispo é que faltava!

Nem cónego, prior, ou mais quem seja,

Nem freira ou sacristão se apresentava,

Representando a Santa Madre Igreja.

Mas lá de Santa Clara nos olhava

Com seu manto de seda, cor cereja

Aquela que p’los pobres sempre olhou

E o pão em rosas brancas transformou. 

E se bem tinha olhado pelos pobres, melhor a Rainha Santa olharia pelos LyS.O.S., já que ser-se lyso tinha não só a ver com a lisura e verticalidade de carácter, mas também com o ser-se teso, sem dinheiro, e ver-se forçado a enviar de vez em quando um S.O.S. à família.

Para além da parte poética – com dez cantos, tal como Os Lusíadas, mas com uma dimensão miniatura (30% das suas estrofes) – o livro contém ainda vasta informação em prosa, que complementa e contextualiza a narrativa épica, informação que acaba por constituir “um segundo livro".

Não me tendo sido possível fazer os lançamentos e apresentações que estavam programados, fiz chegar junto dos meus amigos, em Outubro de 2020, via e-mail e Facebook, um vídeo de apresentação do livro  obrigado ao meu amigo Valdemar Benavente pela edição do vídeo e ao Grupo Campa Rasa pela excelente banda sonora –, bem como um conjunto de depoimentos que pedi a quinze personalidades a quem também deixo aqui o meu agradecimento. Tanto o vídeo como os depoimentos podem ser visualizados abaixo.

VÍDEO DE APRESENTAÇÃO d’OS LYSÍADAS

DEPOIMENTOS SOBRE OS LYSÍADAS

O que está disponível neste momento é o “Volume I - De Coimbra ao Porto”, o qual termina com o Canto VI, ou seja, com a chegada dos LyS.O.S. à vista do Porto. É um volume centrado na vida académica coimbrã. Tem prefácios da autoria do Eng.º Augusto Carmona da Mota, primeiro Mor dos LyS.O.S., e da Dr.ª Fátima Lencastre, Presidente da AAECL.

Apesar de ser apenas a primeira parte de uma obra maior, este Volume I constitui um todo coerente, cuja compreensão não obriga à leitura do Volume II. O “Volume II - Já no Porto” sairá oportunamente. 

A forma mais rápida de adquirir o livro será, porventura, no site da MinervaCoimbra ou por e-mail para minervacoimbra@gmail.com.

Boas leituras!

Zé Veloso
Repúblico Lyso de 1966/67 a 1968/69


02 novembro 2021

PALMAS NAS SERENATAS. O CURIOSO EVOLUIR DAS TRADIÇÕES

Escrevo este post alguns dias depois de ter assistido pela internet à Serenata Monumental da Queima das Fitas de 2021 (adiada para Outubro). Uma vez mais pude ver aquele final em que, depois de se ouvirem os fados e as guitarradas em silêncio, se solta um F-R-A frenético que desencadeia uma erupção de capas, pastas e fitas no meio de palmas e gritos de júbilo, a lembrar um vulcão adormecido que entrou repentinamente em actividade. – Gostei!

No meu tempo de Coimbra (anos 60) era muito menos divertido. Depois de ouvida a serenata em religioso silêncio, havia, quando muito, uns foguetes… e estava feito. Nem palmas, nem fitas pelo ar, nem nada. Aliás, grelados e fitados tinham de levar as insígnias recolhidas dentro da pasta, uma vez que o “Decreto da Queima” anunciava que “a praxe só terminaria” horas depois, quando o Cabrão tocasse às sete da manhã. A minha Mulher ainda se lembra de ter sido ameaçada de levar nas unhas porque, como tinha um medo danado das canas dos foguetes, pôs a pasta na cabeça, a pasta abriu-se e as fitas ficaram à mostra. Como os tempos mudaram!…

Outra alteração significativa tem a ver com o bater palmas no final de cada fado ou guitarrada, no contexto de um espectáculo. Hoje isso é considerado normal e desejável por muita gente. Porém, na Coimbra dos anos 60 não era assim; palmas e serenatas eram líquidos totalmente imiscíveis, fossem quais fossem as circunstâncias.

Nas digressões que fiz com o Coro Misto e o Orfeon, recordo-me de que, durante os fados e guitarradas com que sempre acabavam os espectáculos, se alguém na plateia batesse palmas, logo a malta (que, depois de cantar, se tinha dispersado pelas cochias) começava a tossicar ou pigarrear – então a única forma de aplaudir – sussurrando também discretos “chiiiius”, dando indicação, a quem batia palmas, de que estas não eram bem-vindas ou, pelo menos, que não cabiam ali.

Tenho também na memória uma situação bizarra, que hoje seria impensável. Já a trabalhar em Lisboa, pelos anos 70 ou 80, fui a uma casa de fados, com um grupo de antigos colegas de Coimbra, onde, a determinada altura, se cantaram fados de Coimbra. Já me não recordo de quem cantava, talvez fosse o Machado Soares. Mas lembro-me bem do espanto da assistência ao reparar que o nosso grupo se mantinha mudo e quedo no final de cada fado. Que bárbaros, terão pensado!

O curioso, porém, é que este ortodoxismo da Coimbra dos anos 60 – “ao fado de Coimbra não se batem palmas”, sejam quais forem as circunstâncias – era uma tradição pouco antiga, que teve origem num facto absolutamente fortuito que me foi contado pelo saudoso cantor de fados Augusto Camacho Vieira, com quem criei uma grata amizade, apesar de só tardiamente nos termos conhecido.

A conversa começou no “Coimbra Taberna”, infelizmente também já de saudosa memória, durante uma sessão de fados de Coimbra que, alegremente, íamos aplaudindo um a um e onde eu lhe fiz notar que, no meu tempo, a tradição não era essa. Ao que ele me respondeu que, involuntariamente, tinha as suas culpas no cartório no tocante a tal tradição. E, a seguir, contou-me uma história curiosa, a que voltaria num longo almoço que com ele tive, em Abril de 2014, no Restaurante da Ordem dos Engenheiros.

Nesse almoço falámos do filme Capas Negras, sobre o qual eu andava a escrever um post, e sobre as tradições académicas no seu tempo. Quando chegámos às serenatas, de rua (as serenatas às raparigas) e das outras (as serenatas-espectáculo), eu voltei à carga, querendo saber se havia palmas. Reproduzo a sua resposta: «Na rua não, mas na Sé Velha sim. Só deixou de haver palmas na primeira Serenata de Coimbra com transmissão directa da Sé Velha, pela Emissora Nacional, através do Emissor Regional de Coimbra, em Dezembro de 1946. Eu cheguei-me à frente e mandei tapar um lampião com uma capa, só se via a luz da lua; e então pedi à malta que não batessem palmas para que parecesse mesmo uma serenata para quem estava a ouvir pela radiodifusão.»

E assim nasceu uma tradição! Como à primeira serenata radiodifundida outra se lhe seguiu – logo em Janeiro de 1947 [1] [2], também a partir da Sé Velha – e outras mais sobrevieram, mensalmente radiodifundidas de outros locais ao relento [3], tais como o Campo de Santa Cruz, o Jardim da Sereia e as Patelas / Ladeira da Conchada [2], fácil é admitir que a nova moda rapidamente tenha pegado.

“Todo o mundo é composto de mudança”… e as tradições também. Desde que estejam vivas, ou melhor, desde que sejam vividas, dificilmente se mantêm imutáveis. Umas vezes vão-se alterando de forma lógica, adaptando-se ao evoluir dos tempos. Outras vezes transformam-se de forma disruptiva, não raro por circunstâncias inesperadas, como acabámos de ver.

Zé Veloso

PS 1: O Augusto Camacho contou-me que na primeira serenata radiodifundida pela Emissora Nacional cantou também Jorge Gouveia e foram acompanhados por Carvalho Homem e Gabriel de Castro (1.ª e 2ª guitarras) e por Tavares de Melo e Aurélio Reis (violas). Camacho cantou "A água da fonte" e o "Fado das Águias". Jorge Gouveia cantou “Minho encantador” e outro fado de que não se recordava já.

Quanto ao “Fado das Águias”, sublinhou o Camacho que a primeira quadra é de Camilo Castelo Branco e que a segunda foi feita propositadamente para essa serenata por Fernando Quintela, poeta da sua República (Palácio da Loucura), a quem a pediu por ser um fado que tinha ouvido cantar lá na República apenas com a primeira quadra.

PS 2: Para falar das emissões radiofónicas da E.N., nada melhor do que o Coronel José Anjos de Carvalho, possuidor de um conhecimento enciclopédico sobre a temática da Canção de Coimbra, que, naquela altura, ainda era rapaz e estudava no Liceu de Évora. Contou-me que as serenatas eram transmitidas em directo às 11 horas da noite de domingo e repetidas na sexta-feira seguinte, antes do fecho da emissão da E.N., que acontecia às 14 horas. Ele e um seu colega ouviam-nas sempre e, enquanto ele apontava as letras dos fados, o seu amigo tirava os tons das músicas. Como curiosidade, a E.N. fechava todos os dias às 14 horas e só reabria por volta das 18:30, com música de dança a partir do Café Chave D’Ouro, no Rossio.

PS 3: O essencial da conversa que tive com Augusto Camacho Vieira vem confirmado num seu depoimento de 2005 no blogue Guitarra de Coimbra.

Nesse depoimento existe outra passagem em que Camacho se refere a aplausos em serenatas-espectáculo do seu tempo de estudante, mas, agora, aplausos numa serenata de salão: «Recordo dessa altura os futricas Fernando Rodrigues, tocador de viola, e seu irmão Flávio Rodrigues. Ouvia-os pela noite dentro e certa vez fomos ao Penedo e hoje ainda sinto a arte genial do Flávio, que me arrebatou a acompanhar-me no "Fado das Águias" assim como num sarau no Casino da Figueira em que me acompanhando com uma corda prima estalada no momento, talvez pela temperatura ambiente, fomos freneticamente aplaudidos». Sabendo-se a identidade que existia nessa altura entre as elites sociais e culturais de Coimbra e da Figueira da Foz (a Figueira era conhecida por "Coimbra-C"), não é difícil imaginar qual seria a praxis então seguida em Coimbra no que toca aos aplausos naquelas serenatas.

PS 4: Para afastar quaisquer dúvidas que possam ficar de uma leitura mais apressada, este post não se refere a aplausos nas serenatas de rua feitas às raparigas (as também designadas serenatas de cortejamento ou serenatas de galanteio) as quais se destinavam quase sempre às colegas e namoradas, quer dos cantores ou tocadores, quer de outros estudantes que, não tendo predicados musicais para tal, tinham de "encomendar" a serenata a quem soubesse fazê-la.

PS 5: Agradeço a dois amigos: ao Coronel José Anjos de Carvalho, por me ter aturado durante a preparação deste post; e ao Dr. Arménio Marques dos Santos, cantor de fados de Coimbra, a quem pedi que me revisse o texto e procurasse confirmar algumas informações.


Foto obtida do livro: ÍNÁCIO, Manuel Fernando Marques. O Canto e a Música de Coimbra – Fotobiografia de Augusto Camacho Vieira. Edições MinervaCoimbra, Coimbra, s. d.

[1]   CORREIA, Avelino Rodrigues. Do Choupal até à Lapa. Etnografia do Constructo da Canção de Coimbra. Tese de Doutoramento, Março 2014.

[2]   SOARES, António José; NUNES, António M. «Canções e Guitarras nas Décadas de 1930-1940», in Guitarra de Coimbra (Parte I), 2006, http://guitarradecoimbra.blogspot.com/2006/12/canes-e-guitarradas-nas-dcadas-de-1930.

[3]   Posteriormente, as serenatas radiodifundidas passaram a ser gravadas em estúdio. 


21 outubro 2021

REVISITANDO A ORIGEM DAS CARTOLAS E BENGALAS NA QUEIMA (PARTE III)

Este post é a continuação de REVISITANDO A ORIGEM DAS CARTOLAS E BENGALAS NA QUEIMA (PARTE II)

As minhas desculpas por só hoje vir dar continuidade a um assunto que deixei em suspenso há quase 22 meses.

Uma “primeira reunião de curso” muito especial

Chegou a altura de vos contar o que foi a dita “primeira reunião de curso” do V Ano Médico de 1931-32, evento que nem sempre tem sido relatado com o detalhe que merece e cuja data exacta tem ficado na sombra.

Faço-vos tal relato a partir das notícias que saíram no Diário de Coimbra [1], Gazeta de Coimbra [2] e O Ponney [3], notícias razoavelmente pormenorizadas, bem demonstrativas do prestígio que aquele curso granjeava na cidade, um curso que, liderado pelo “Pantaleão” (Henrique Pereira da Mota), tinha acabado de introduzir a Venda da Pasta na Queima das Fitas.

O evento teve lugar em 5 de Junho de 1932, domingo, nove dias depois do cortejo da Queima em que pela primeira vez desfilaram os cocos e cartolas (conforme testemunho de Maria José Carmona da Mota [4]). Eis como decorreu o encontro:

A seguir ao almoço, levando gaiteiros à frente, rumaram os futuros médicos (55 maduros) ao pátio da Universidade dispostos a representar a rábula de que se tratava de uma reunião de curso de antigos estudantes já bem instalados na vida. Para tanto, vestiram-se à futrica com os seus melhores fatos, cobriram-se com chapéus de coco ou de revirão e muniram-se de bengala.

Tirada a fotografia da praxe nas escadas da Capela da Universidade, ei-los que descem triunfantes e ruidosos até à Baixa, seguindo o mesmo percurso dos cortejos da Queima, para poderem receber os aplausos de quem estivesse na rua ou às janelas.

Uma vez na Baixa, o programa incluiu uma muito oportuna visita ao Laboratório Matos Beja. E digo “muito oportuna” porque logo se lhe seguiu uma sessão de comes e bebes – a que os vários jornais dão nomes diferentes, mas O Ponney apelida de “Xarope Peitoral ó clock Five” –, durante a qual os futuros médicos e alguns dos seus Professores e Assistentes confraternizaram e trocaram discursos e se nomeou uma comissão para organizar a reunião de curso de daí a 5 anos.

Imagino que, já bem-dispostos, lhes deve ter sabido bem sair para o ar puro e caminhar até ao Choupal, seriam umas seis da tarde, para cumprir a última parte do anunciado programa – afixar numa árvore uma lápide de papelão (ou cartolina, consoante a fonte) com duas quadras do seu colega e poeta Vasco de Campos, já que ir fazê-lo no Penedo da Saudade seria levar longe de mais (digo eu) a rábula da reunião de curso de antigos estudantes: 

«Adeus, Coimbra! Em teu seio
Vivemos a mocidade,
E desse encanto nos veio
A mais profunda saudade!

Se cá voltarmos, um dia,
Já velhinhos, alquebrados,
Dá-nos de novo alegria,
Lembra-nos tempos passados!...»

Escreveu ainda o Diário de Coimbra que «a lápide de cartolina será substituída por outra de mármore, brevemente» e que, durante a cerimónia, o curso ainda teve oportunidade de exercitar as suas artes médicas ao reanimar – «ministrando-lhe imediatamente vida artificial e injectando-a» (sic)  uma rapariga que acabava de ser salva de morrer afogada no Mondego.

Uma fotografia para a História

 

A fotografia da reunião de curso foi obtida da Revista Rua Larga [5], local de onde a consegui reproduzir em melhor estado. Porém, a foto foi publicada no mesmo número de O Ponney [3] que deu a notícia do encontro, legendada como segue: «Último curso de Urologia, clinicamente vestido, na sua despedida ou por outra, na sua primeira reunião». “Curso de Urologia” porque este número do jornal era dedicado ao Congresso Hispano-Português de Urologia que nesse dia se iniciava em Coimbra; “clinicamente vestido” por os seus membros se encontrarem já vestidos como médicos e não como alunos.

Como convidada especial do grupo vemos a Maria Marrafa, antiga distribuidora de sebentas, que viria a falecer três anos mais tarde (13/12/1935). Logo atrás da Maria Marrafa está Henrique Pereira da Mota, o irrequieto “Pantaleão”, que, a adivinhar pelo seu currículo, só pode ter estado na organização desta jornada.

Como o dia estava frio e tinha chovido pela manhã [6], muitos levaram consigo sobretudo ou gabardina e houve quem substituísse a bengala pelo guarda-chuva.

De entre os 55 quintanistas que se contam na fotografia – qual deles o de aspecto mais respeitável – , cerca de 50% estão de chapéu de coco; mais ou menos 30% usam chapéu de revirão; oito estão em cabelo; e um só (!) usa cartola, que acabou por ser a forma que a tradição fez chegar até aos meus dias (anos 60) e até aos dias de hoje; afinal, a forma mais fácil de ser fabricada artesanalmente.

A foto acima pode ser observada com mais qualidade na pág. 73 da Fotobiografeta de “Pantaleão” [7]. 

Um curso que deixou marcas

Desde sempre os cursos de Medicina foram cursos prestigiados… e amados. A cidade ainda recordava os tempos em que o resultado dos exames de formatura dos médicos eram anunciados numa Congregação final e se todos fossem aprovados nemine discrepante – mas só nessas condições – estralejariam girândolas de foguetes lançados da Torre da Universidade e da Alameda de Camões e ouvir-se-ia o Hino Académico a anunciar a boa nova; e a cidade seguia ansiosa a espera daquele resultado, em comunhão com os estudantes.

O curso de Henrique Pereira da Mota (Pantaleão), Albino Gonçalves Dias (Topsius), Hugo de Moura Eloy, Justiniano d’Oliveira, Luís Olayo e tantos outros não era já desse tempo, mas estaria decidido a não deixar Coimbra sem que nela ficasse a sua marca e sem que dela tivesse uma despedida à altura dos seus pergaminhos.

A Venda Pasta tinha sido um sucesso, com uma visibilidade enorme. Toda a cidade teve a oportunidade de assistir e aplaudir da primeira fila, e os jornais não se cansaram de louvar a benemérita iniciativa. A sua continuidade estaria, portanto, assegurada. Já a ideia de levar os quintanistas a participar no cortejo da Queima, fazendo-os desfilar de fraque e chapéu de coco – uma ideia genial e revolucionária! – não terá tido a visibilidade esperada, o que facilmente se comprova pela total ausência de notícias nos periódicos de Coimbra.

O curso não podia despedir-se da cidade de uma forma tão pífia! Tenho para mim – especular um bocadinho não será crime... – que o pouco impacto do desfile de fraque e chapéu de coco no final do cortejo poderá ter espicaçado o curso e tê-lo-á levado a desencadear a insólita “primeira reunião de curso” em termos capazes de atrair os jornais e a população, deixando ao mesmo tempo uma imagem icónica para as gerações vindouras – os quintanistas de chapéu com suas bengalas em riste!

Será altura de dizer que o evento foi previamente publicitado, através de pequenos artigos que saíram de véspera e no próprio dia (Gazeta de Coimbra [8] e Diário de Coimbra [9] e [10]), onde se anunciava, inclusivamente, a presença do Reitor, Dr. Manuel Braga, e de outras individualidades que acabaram por não comparecer. Como se diria hoje, o curso “tinha boa imprensa” e “meteu a carne toda no assador”.

Bem hajam!, pela vossa iniciativa… e atrevimento.

Notícia da Gazeta de Coimbra de 4/6/1932

 

 








Notícia do Diário de Coimbra de 4/6/1932

 

 









Notícia do Diário de Coimbra de 5/6/1932

 






Zé Veloso

 

[1]     «Novos doutores, em medicina. A sua depedida a Coimbra», in Diário de Coimbra, 6-06-1932.

[2]     «Uma curiosa festa dos quintanistas de Medicina», in Gazeta de Coimbra, 7-06-1932.

[3]     «Reunião do Curso Médico 31-32», in O Ponney, 4-07-1932.

[4]     CARMONA DA MOTA, Maria José de Figueiredo. Testemunhos. Edição do autor, 2.ª ed. rev. e aum. Coimbra, 1997.

[5]     «Para o estudo das praxes coimbrãs», in Rua Larga, 1-08-1959.

[6]     Observações Meteorológicas, Magnéticas e Sismológicas Feitas no Instituto Geofísico no ano de 1932. 1ª Parte - Observações Meteorológicas, Vol. LXXI. Coimbra, Tipografia Atlântida, 1937.

[7]     Fotobiografeta de “Pantaleão”, https://tunauc.files.wordpress.com/2020/12/henrique_pereira_da_mota_pantaleao_2020.pdf.

[8]     «Uma Festa Académica», in Gazeta de Coimbra, 4-06-1932.

[9]     «Quartanistas de Medicina», in Diário de Coimbra, 4-06-1932.

[10]   «Quintanistas de Medicina», in Diário de Coimbra, 5-06-1932. 

12 junho 2021

10 DE JUNHO DE 1951. UMA FINAL PERDIDA, DUAS CANÇÕES ESQUECIDAS

 

Como é natural, recordamos sempre com gosto as duas Taças de Portugal que já ganhámos, ambas contra o que seria de esperar, qual David lutando contra Golias: em 1939, na primeira de todas as Taças, demos 4-3 nas Salésias a um Benfica que nessa época nos tinha ganho já por duas vezes; e em 2012, um Sporting emproado, que dizia ter contado as favas antes mesmo de entrar no Jamor, não conseguiu contrariar o golo solitário imposto por uma Briosa que tinha ficado pelo fundo da tabela no Campeonato.

Também costumamos relembrar com certo orgulho, ainda que a amargura nos invada, aquelas duas Taças que perdemos de forma tão ingrata na década em que tivemos as melhores equipas de sempre: a final de loucos de 1967 contra o Vitória de Setúbal, quando o Jacinto João fez o 3-2 aos 144 (!) minutos; e a final de 1969, em plena crise académica, em que Eusébio nos desfeiteou por 2-1 no prolongamento depois de termos estado a ganhar a 5 minutos do fim.

Mas há uma quinta final que é muito pouco referida e da qual também eu não me lembraria, não fora um amigo ter-me enviado as letras de duas canções que as claques cantaram nessa altura, canções que, também elas, foram caindo no esquecimento.

Vamos aos factos! A final foi no Jamor a 10 de Junho de 1951, fez anteontem precisamente 70 anos! Foi contra o Benfica e perdemos pela bonita soma de 5-1.

Pela Académica alinharam Capela, Branco, Torres, Melo, José Miguel, Azeredo, Duarte, Gil, Macedo, Nana (cap.) e Bentes, sendo treinador Oscar Tellechea. Mas contam-nos o João Santana e o João Mesquita – que nestas coisas do futebol de antanho são quem mais sabe –, que os nossos jogadores estavam em péssima forma física devido à época de exames e que, para ajudar à missa, tiveram contra si uma arbitragem que a imprensa da época reconheceu ter-nos sido altamente desfavorável. Enfim, por alguma razão viemos de lá com uma abada.

Porém, nem por isso deixámos Lisboa de cabeça baixa, depois de termos feito a festa antes e durante o jogo. «E, mesmo após a derrota, um grupo de estudantes, encabeçado pelo inevitável Augusto Martins, ainda teve disposição para ir visitar a redacção de “A Bola”. Fazendo tal alarido que deixou estupefactos os lisboetas que circulavam pelo Bairro Alto, para quem aquela gente só podia ter acabado de ganhar a Taça de Portugal»… Enfim, era assim naquele tempo. Era assim a Académica!

Voltando às letras das canções que a claque cantou, elas constam de um panfleto frente e verso, tipografado pela Atlântida, que foi distribuído às claques que se deslocaram de Coimbra até Lisboa, quer em caravana automóvel, quer em comboio especial.

De um lado do folheto temos DÁ CÁ A TAÇA, que deveria ser cantada com música de “Larga a Mala”. Não consegui encontrar esta música, mas admito que se tratasse de “Olha a Mala” (carregar), que aqui está interpretada por Celeste Rodrigues em 1955.

Do outro lado do folheto temos o HINO DA ACADEMIA, que deveria ser cantado com música de “Tomara que Chova” (carregar), que aqui está interpretada por Emilinha Borba em 1950.   


Rezam as crónicas que a canção mais cantada foi esta última, cuja estrofe final é bem premonitória:

E do Estádio Nacional
A Taça de Portugal
Só a nós trazer compete
E fique toda a gente a saber
(Sempre é bom isto lembrar)
Que a história se repete.

Repetiu-se em 2012 e poderá bem repetir-se mais à frente! Haja esperança!

Zé Veloso

PS: Depois te ter colocado este post na página do Facebook Penedo d@ Saudade - TERTÚLIA, recebi um comentário de Francisco Bento Soares, que afirma recordar-se de que seu irmão e seus colegas, quando regressados de Lisboa em 1951, cantavam a seguinte quadra: Podem emalar a trouxa / Boa noite ó tia Maria / Que a malta não ligava à Taça / Já toda a gente sabia.
Esta quadra é, obviamente, uma adaptação da conhecida quadra de 1939: São horas de emalar a trouxa / Boa noite ó tia Maria / Que a malta ganhava a Taça / Já toda a gente sabia! (quadra que chegou até nós também na versão: São horas de emalar a trouxa / Boa noite, tia Maria / Que a Briosa ganhava a Taça / Obrigado! Já cá se sabia!  

- Foto da equipa retirada do livro Académica. História do Futebol de João Santana e João Mesquita.

- Fotos do folheto cedidas pelo grande academista Luís Pinheiro de Almeida.

06 março 2021

CARTA PARA JORGE CONDORCET

 

Caro Jorge, deixa-me reviver,

Primavera de 1964, Férias da Páscoa. O Coro Misto (ou Místaro, como dizia o Sô Chico) vai em digressão pelo Norte do país. A cena passa-se em Lamego. Mas repetir-se-á na noite seguinte em Vila Real e depois em Chaves e Póvoa do Varzim.

O cine-teatro está apinhado. Depois de o Coro ter interpretado o seu alinhamento e antes que a jornada acabe com os Fados e Guitarradas, estamos a meio das Variedades.

É a vez d’Os Álamos. E é de cima do palco que observo o que se passa à minha frente. De súbito, em vez de sair mais uma música yé-yé, como seria de esperar de uma formação tipo Les Chats Sauvages, arrancamos com o Nivram, o único tema jazzístico dos Shadows. O público surpreende-se… e mais intrigado fica quando, do fundo da plateia, começa a vir um “bruá” de risos que cresce a pouco e pouco e cuja causa ninguém entende nas filas cá mais para a frente, por muito que estendam os pescoços na nossa direcção, pois que é no palco que é suposto acontecerem as coisas. Que se passa?

És tu, Jorge Condorcet, que, imponente na tua casaca branca, cheia de caricas ao peito a simular medalhas, e trazendo uma vistosa flor na mão, vens descendo lentamente pelo corredor central da plateia em direcção ao palco.

Mas antes de cá chegares, há que fazer o primeiro número. Tu sabes que na primeira fila está a gente importante da terra. E que num dos lugares centrais deverá sentar-se a filha, ou talvez a jovem esposa, do Presidente da Câmara ou do Governador Civil. É para ela que te diriges, cortês, fazendo menção de lhe entregar a flor, que a jovem aceita, levantando-se da cadeira, confiante. Mas a mão que tu estendes à moça esconde um caule partido, de tal forma que, no instante seguinte, a pobre rapariga fica literalmente agarrada ao pau, enquanto tu segues impassível, de flor na mão, a caminho do palco, sob o riso e o aplauso da plateia. Ainda a actuação não começou e já tu, Jorge Condorcet, tens o público agarrado!

Presenciei esta cena dezenas de vezes e nunca me cansei de a ver. Dezenas de vezes estive atrás de ti, Jorge, em digressões do Coro Misto e do Orfeon (Angola e Açores), já que Os Álamos actuaram durante alguns anos nas Variedades daqueles organismos. E nunca nos cansávamos de te ver, apesar de já conhecermos de cor o teu repertório, porque tu nos davas a ilusão de que nos ensinavas a fazer os truques – o que nunca acontecia – e porque nos encantava ver a maneira como embarrilavas o público com a tua simplicidade e um humor muito fino, onde não havia espaço para o azedume. Um “ilusionista humorístico”, não um “ilusionista cómico”, como fizeste questão de me emendar, quando te dei a corrigir o texto que sobre os Condorcet escrevi em Os Lysíadas [1]. E tu fazias as coisas de uma forma tão elegante, que apenas uma vez vi um gesto de despeito nas moças que eram desfeiteadas no “truque” da flor; ao invés, terminado o efeito surpresa, também elas recebiam com alegria o seu aplauso, como qualquer partenaire.

Diz a tua biografia que frequentaste «em Coimbra as Faculdades de Medicina, de Farmácia, de Letras e de Ciências e Tecnologia desde 1950 a 1980, tendo completado o Curso Profissional de Farmácia, o Bacharelato e a Licenciatura (antes de Bolonha) em Biologia no ramo científico» [2] e que actuaste «mais de 1000 vezes em perto de 150 estados da Europa, África, América, Ásia e Oceânia» [2]. Mas o que aqui gostaria de destacar é a transversalidade e a consensualidade da tua pessoa dentro da Academia de Coimbra. Entre outras coisas que nem vou referir, actuaste com o Orfeon Misto (mais tarde, Coro Misto), o Orfeon, a Tuna, os Antigos Orfeonistas e os Antigos Tunos – sempre pro bono –, e foste até hoje o único sócio da Académica a quem foi dado o emblema de platina (75 anos de filiação ininterrupta)!

Mas tu, Jorge, tu tiveste a quem sair! Antes de ti existiu teu pai, Júlio, cuja história me apetece relembrar.

Júlio Condorcet, médico radiologista nascido em 1903, que cursou em Coimbra nas décadas de 20 e 30 do século passado, era uma pessoa extremamente criativa e divertida cujas façanhas e partidas nos são contadas em vários livros de memórias, quer de antigos colegas de curso, quer de outros compagnhons de route dos tempos em que, continuando a viver em Coimbra, se cruzou com muitas outras gerações de académicos nas quais fez amigos. Para se ter uma ideia do seu espírito irrequieto, deixo-vos aqui o que sobre ele escreveu Camilo de Araújo Correia [3]:

Condorcet foi um aluno de medicina com tanto de estudioso como de pândego. Não sei se por necessidade, se para arranjar mais uns cobres para a estroinice, foi também sebenteiro. Noites e noites a passar à máquina os apontamentos colhidos nas aulas, ditados por um condiscípulo, seu colaborador na preparação das sebentas.

Certa noite, a certa altura, saiu esta frase dos apontamentos:

– …”diz a mitologia que foram uns corvos que tiraram aos deuses o poder de curar e o deram aos homens”…

– Alto aí! – cortou o Condorcet.

– Que é?!

– Como se chamam esses corvos?

– Sei lá! Aqui não está nome nenhum…

– Mas devia estar! Uns corvos dessa importância não podem deixar de ter nome, caramba!... Ora deixa cá ver… deixa cá ver… Que dizes a “Giribites”? [4]

– Põe lá o nome que quiseres mas olha que pode dar mau resultado! – cortou o companheiro, morto por andar para a frente com os apontamentos.

Não deu mau resultado. O que deu foi um gozo medonho nos exames de “História da Medicina” desse ano.

Na primeira referência de um examinando aos “corvos Giribites” o lente deu um salto na cadeira e perguntou fora de si:

– Corvos quê?!!

– Giribites… – respondeu, a medo, o aluno?

– Giribites?!?!... Onde é que o senhor aprendeu isso?

Como, nesse tempo, os lentes não podiam ouvir falar em “sebentas”, o rapaz foi-se defendendo com a mentirazinha do costume.

– Foi num livro que me emprestaram… já bastante antigo…

– Hum… bem… bem…

Assim desarmado, o mestre continuou o exame sem mais incidentes. Incidentes houve, depois, com os alunos que não sabiam dizer o nome dos corvos!!!

– … foram uns corvos da mitologia… Ia dizendo o aluno.

– Como se chamavam esses corvos? Perguntava o mestre, atento à lengalenga.

– …… – Emudeciam os ignorantes.

– Giribites, senhor!... Giribites!... Vocês não estudam nada!... É tudo pela rama… tudo pela rama!...»

Júlio Condorcet, que era um animador de serões nato, quer nas tertúlias académicas quer fora delas, desde cedo se iniciou na arte do ilusionismo, adoptando como nome artístico Conde d’Orcet, the King of Embarrilation, inspirando-se para tal no seu próprio nome (Condorcet) e também na controversa figura do artista amador e nobre francês da primeira metade do séc. xix Comte d’Orsay. Aliás, disseste-me tu, Jorge, que em tempos tinhas visto cartões de visita do teu pai relativos à sua actividade artística, mas não te recordavas já se neles estaria Conde d’Orcet ou Conde d’Orsay.

Contrariamente ao que muitos pensam, Condorcet não é nome de família! É nome próprio!... como tu próprio me contaste:

Tudo começou na geração de teu pai, nado em Montemor-o-Velho, cujo nome completo era Júlio Condorcet de Carvalho Pais Mamede. Nessa altura era normal serem os padrinhos a escolher os nomes próprios dos afilhados; e o nome Júlio Condorcet foi “negociado” entre a família (a mãe do menino chamava-se Júlia) e o padrinho, que, vindo da zona de Abrantes, gostava do nome Condorcet, nome popular por ali.

E se o nome era popular por Abrantes, mais popular ficou depois por Coimbra, onde, mesmo na vida profissional, todos tratavam o Dr. Júlio Pais Mamede por Dr. Condorcet.

O Dr. Condorcet logo que teve um filho varão, ou seja, logo que tu nasceste, resolveu dar continuidade à dinastia com ele começada e chamou-te Jorge Condorcet (dos Reis Pais Mamede). E a partir daí foi-se consolidando a tradição de colocar o nome Condorcet como segundo nome próprio dos primogénitos varões da família Pais Mamede, que passou a ser conhecida por muitos como “Família Condorcet”.

Conheci a Família Condorcet na Praia de Mira das longínquas décadas de 40 e 50, quando as famílias de banhistas, que todas se conheciam, criavam as suas próprias diversões. O Dr. Condorcet, teu pai, estava ali como peixe na água, com a sua criatividade e irreverência, ajudado por meios que mais ninguém tinha na altura – gravador de fio, máquinas de filmar e projectar. De tarde reunia-se com o meu pai e mais dois comparsas e gravavam um “Jornal Sonoro” que via «a luz do dia todas as noites às 22 horas!» [5] a partir da varanda do café mais concorrido da Praia.  

Por essa altura tinhas mais dez anos do que eu, um puto de calções, pelo que pouco nos falávamos. Na década de 60, porém, fizemos uma boa amizade durante as digressões do Coro Misto e do Orfeon; a tua jovialidade quebrava barreiras! Depois disso estivemos meio século sem nos vermos, apenas tendo trocado alguns telefonemas. Finalmente, demos de caras um com outro no Palácio de S. Marcos, aquando das comemorações do 730.º aniversário da UC. Agora já éramos da mesma idade…

Foi a 1 de Março de 2020, precisamente um ano antes de nos deixares. A foto diz tudo sobre a alegria do reencontro! Não mais esquecerei este teu sorriso bom, Jorge.

Até sempre!

Zé Veloso

06/03/2021

PS: Três semanas depois de publicada esta carta, o Luís Filipe Colaço, meu colega d'Os Álamos,  editou e publicou no YouTube um “cover” do vídeo original “100 anos Ilusionismo Condorcet”, que apresenta a parte de ilusionismo do Espectáculo "Venham mais 30" Comemorativo dos 30 anos da Associação dos Antigos Tunos da Universidade de Coimbra (AATUC) e dos 100 anos de Ilusionismo da Família, “cover” esse que sonorizou com a música do “Nivram” em fundo, de forma a recriar o ambiente que descrevo mais acima. Carregue AQUI.
Obrigado, Colaço.


[1]  VELOSO, Zé. Os Lysíadas. Vol. I, De Coimbra ao Porto. 1.ª Edição, MinervaCoimbra, Coimbra, Fevereiro 2020.

[2]  «Jorge Condorcet», in Antigos Tunos da Universidade de Coimbra, https://www.uc.pt/aatuc/Colaboracoes/Condorcet.

[3]  CORREIA, Camilo de Araújo. Coimbra Minha. Almedina, Coimbra, 1989.

[4]  Fernando Rolin disse-me um dia que o nome dos corvos seria “Giribitsman” e não “Giribites”.

[5]  VELOSO, Maria Vitória Pinheiro das Neves Veloso de Carvalho Serra; colab. VELOSO, José Luís M. P. À Mesa Éramos Dez. Edição da autora, 2019.