06 janeiro 2011

ÀS VOLTAS COM O ARNADO

Era uma vez um senfilista-amador, de seu nome António Madeira Machado, estudante de Direito, adepto fervoroso da Académica, que a 6 de Janeiro de 1935 – faz agora 76 anos! – mandou para o ar o primeiro relato radiofónico de um jogo de futebol em Portugal, segundo rezam as crónicas de Coimbra. Vide Nota 1.
A palavra senfilista – aquele que comunica sem precisar de fios – caiu em desuso há muitos anos. No meu tempo chamavam-se radioamadores e tratavam-se uns aos outros por “macanudos”. Eram tipos especiais, que tinham em casa um emissor-receptor de ondas curtas e que passavam horas a fio, pela noite e madrugada adentro, contactando outros “macanudos”, cuja cara nunca haveriam de ver, em países e continentes nas quatro partidas do mundo! Parecia estranho…
Mas hoje, na era da informação, com outro poder de compra e com a banalização da tecnologia, os computadores e os routers substituíram os emissores-receptores de ondas curtas, as redes sociais tomaram o lugar dos clubes de senfilistas, os “macanudos” foram destronado pelos “amigos” virtuais e pelos fãs… e já nada parece estranho. - É a internet, estúpido!
Mas voltemos ao relato de futebol. Dizem os livros que a Académica empatou com o União (1-1), apurando-se assim para o campeonato da I Liga; e que a tarefa mais difícil do senfilista foi impedir que os palavrões entrassem pelo microfone para que não se espalhassem pelo ar de Coimbra e arredores, certas palavras de desabafo saídas da boca de alguns entusiastas com a língua menos presa… Mas os livros dizem mais: dizem que o jogo se disputou no campo do Arnado!
Campo do Arnado? Coisa estranha!... Tanto tempo andei por Coimbra e nunca dele ouvira falar. Eu conhecia apenas o Largo do Arnado, espaço que hoje é totalmente ocupado pelas Galerias do Arnado mas que, nas décadas de 50 e 60, era um largo de terra batida, onde estacionavam as camionetas do José Maria dos Santos e dos Oliveiras de Águeda. A carreira para Ançã saía de lá, por isso eu conhecia o largo de olhos fechados. E as camionetas só desamparavam dali quando o Circo Luftman ou o Circo Mariano visitavam a cidade uma vez por ano, com seus trapezistas e palhaços, ilusionistas, equilibristas, cãezinhos amestrados e os famosos Irmãos Brother & seus músculos de aço. Os circos ocupavam todo o quadrado do largo e faziam-se anunciar por uma furgoneta que corria pela cidade. Dizia-se então que o Circo Luftman trazia chuva, o que era de grande utilidade, numa época em que as previsões meteorológicas deixavam muito a desejar.
Para mim… Arnado não rimava com futebol! Mas o livro da dupla João Santana / João Mesquita é rico em fotografias e facilmente me ajudou a localizar o tal Campo do Arnado, que foi construído em 1928 pelo Sport Clube Conimbricence. Ficava um pouco mais para as bandas do rio, a Norte da Rua do Arnado, nas traseiras da fábrica de malhas A Ideal e de umas oficinas que me dizem ter sido de molas para camiões. Na foto do campo (acima), que tem em fundo a silhueta da Alta, vêm-se os pavilhões das ditas oficinas. As ruinas destes pavilhões são reconhecíveis na foto ao lado, que obtive a partir do Google Maps (vide Nota 2), onde assinalei a localização do antigo campo de futebol com uma lágrima vermelha.
E como seria anteriormente, numa altura em que o campo não teria ainda nem balizas nem grande área? À falta de mais fotografias, vamos fazer um zoom sobre a primeira gravura conhecida de Coimbra, zoom este que apanha apenas a parte Norte do arrabalde, da Rua da Sofia ao Convento de Santa Cruz.
Nesta época (finais do Séc. XVI) o Campus Arnado, cujo nome é visível na esquerda baixa da figura, não era mais que um areal (campo arenoso… campo arenado) na margem direita de um Mondego ainda não amuralhado, cujas águas, alteadas pelo contínuo assoreamento do leito do rio, ousavam invadir, em cada Inverno, a área a que hoje chamamos Baixa Velha e o arrabalde que se estendia do rio até à novíssima rua da Sofia.
De tais assoreamentos e inundações se fez a história do desaparecimento de vários conventos e igrejas, que foram depois reconstruídos em cima dos primeiros ou em locais mais altos e distantes do rio, como aconteceu com o Convento de S. Domingos, que teve de mudar-se para a Rua da Sofia apenas 3 séculos depois de ter sido construído em pleno Campus Arnado, já que a força da água começou a lançar as areias por cima das mais altas margens, senhoreando-se do campo, e entupindo cercas, e oficinas. Tudo isto nos conta Borges de Figueiredo. Mas não consegui decifrar onde ficaria exactamente a pequena Capela do Senhor do Arnado, reconstruída em meados do Séc. XVIII, à custa de uma impostura, já que a confraria, não tendo meios para tal, fizeram espalhar a notícia de que o Santo Cristo do Arnado suara sangue e água, no primeiro dia de Agosto; e dali resultou começarem a afluir à capela quantos devotos e beatas havia em Coimbra e nos arredores, deixando à milagrosa imagem muitas e valiosas ofertas. E ainda alguns se espantam que em tempo de crise se procure ultrapassar a dita com uma mentirinha piedosa…
Procurando um pouco mais para trás na História, o cronista Nunes de Leão conta que Afonso Henriques, que à data habitava a alcáçova de Coimbra – onde ficam actualmente os Gerais – querendo tomar Santarém de surpresa mas temendo que as paredes da alcáçova tivessem ouvidos, levou os seus mais fiéis cavaleiros ao Campo Arnado e aí lhes deu conta das suas intenções. De regresso a Coimbra, na companhia de quantos com ele tinham estado, eis que ouvem em plena praça uma conversa entre duas mulheres, comentando a próxima façanha do rei Conquistador. O rei ficou naturalmente furioso e armou uma bronca com os seus, a quem chamou de traidores, mas nunca soube quem relatou o que no Campo Arnado se passara.
Quem teria sido? O cronista pensa que teria sido uma regateira que ouviu a combinação, ocasionalmente, quando passava a caminho do mercado. Eu apenas sei que não foi o senfilista. Esse também haveria de fazer o relato do que se passou no Campo Arnado, mas apenas oito séculos mais tarde.
Zé Veloso
Nota 1  António José Soares (Saudades de Coimbra) e João Santana / João Mesquita (Académica. História do Futebol) afirmam que foi o primeiro relato radiofónico realizado em Portugal mas tal informação não está correcta. A  Estação de Amador CT1GL, propriedade do Capitão Botelho Moniz, que veio mais tarde a fundar o Rádio Clube Português, transmitiu o relato do jogo entre as selecções de Portugal e da Hungria em 1933.
Nota 2 - Esta vista foi retirada do Google Maps em 17/2/2022.

7 comentários:

  1. Ricardo Figueiredo07 janeiro, 2011 22:36

    Boa noite, amigo Veloso
    A tua prosa continua a ser uma leitura motivadora e gratificante para os amantes de Coimbra. Dos mais ferrenhos, aos iniciados...
    A tua interrogação sobre a localização da capela do Arnado,tem uma resposta/palpite em Ruas de Coimbra-Mário Nunes,pag.71-2003 "Em 1936...demoliu-se a capela do Arnado, um edifício à entrada da cidade no topo norte(ficava, mais ou menos, no sitio onde, hoje, se localiza o policia sinaleiro, à Auto-Industrial).
    Este sinaleiro, ainda conheceste ?
    Esta capela foi construida no local do "Cruzeiro
    do tipo do Senhor dos Caminhos" e que"recolheu a uma das capelas do Claustro da Sé Velha".
    A foto da capela ilustra o texto do citado autor.
    Abraço

    ResponderEliminar
  2. Um bom artigo, meu caro amigo. Espectacular, diria até. É um gosto ler o que escreve.
    Um grande abraço.
    Luís Fernandes

    ResponderEliminar
  3. Caro Ricardo Figueiredo,
    Obrigado por uma vez mais vires trazer achegas importantes aos posts do Penedo.
    A tua resposta sobre a possível localização da Capela do Arnado parece-me bem mais do que um palpite (como tu dizes), não só pela fonte que referes como também porque essa localização se casa perfeitamente com o que é publicado a págs. 349-350 do "Coimbra Antiga e Moderna" de Borges de Figueiredo.
    Um abraço, Zé Veloso

    ResponderEliminar
  4. Ricardo Figueiredo21 janeiro, 2011 16:31

    Boa tarde, Veloso
    Percorrendo o Arnado"Nêste ano tão faustoso, em que D.Sebastião subiu ao trono, como rei de facto,queimaram-se sete judias ali no Arnado e a Camara forneceu carrascos, pagou para os homens que armaram as fogueiras, trouxeram a lenha , levantaram os mourões, amarraram as cordas e deitaram o fogo com as candeias à joina e ao sobro.Até uma barca velha pagaram a António Fernandes e a um parceiro para que a transformassem em lenha"
    E depois, conforme os lançamentos do escrivão,à data, os custos individuais, em material e mão de obra "pagou mais ha hum ministro que afogou as ditas judias $200", num total de 4$615.
    Mais tarde... um cruzeiro de Cristo Redentor e uma Capela ao Senhor do Arnado.
    In -Finanças Quinhentistas do Municipio Coimbrão,A.da Rocha Brito,Coimbra-1943, pag.37

    ResponderEliminar
  5. Jorge Oliveira10 abril, 2011 21:53

    Com vossa licença, e satisfeito por ler o que se lê por estas paragens sobre a nossa Coimbra, gostaria de sugerir que espreitássem na Rua do Arnado, ao lado do recém ardido edificio da Ideal, a entrada usada por veículos e pessoas para acesso a um Restaurante. Vale a pena, para ver na parede da casa do outro lado da entrada, virada para a rua do Arnado, as bilheteiras do desaparecido Campo do Arnado, de que se tem escrito por aqui. Ao que sempre me disseram, naqueles armazéns ao longo da rua, até à Av. Fernão de Magalhães que albergaram várias oficinas de automóveis, funcionou ha muitos anos uma Fábrica de Descasque e Ensacamento de Arroz. Melhores cumprimentos ao Autor e a todos os Amigos que têm vindo a comentar.

    ResponderEliminar
  6. O local assinalado com A pertence agora ao Hotel Vila Gale Coimbra. Assinalei com B o Restaurante Joaquim dos Leitões onde poucos sabem que é onde se come o melhor leitão da Bairrada!

    http://maps.google.pt/maps?f=d&source=s_d&saddr=40.213690,+-8.435247&daddr=40.213654,-8.4347&hl=pt-PT&geocode=&mra=me&mrsp=1,0&sz=19&sll=40.213653,-8.434719&sspn=0.001628,0.003484&ie=UTF8&t=h&z=19

    ResponderEliminar
  7. Que pérola! Muito obrigado, caro Zé Veloso!

    ResponderEliminar

Os comentários são bem-vindos, quer para complementar o que foi escrito quer para dar outra opinião. O saber de todos nós não é de mais.