03 junho 2010

RECORDAÇÕES DO PENEDO

    Coimbra, 19 de Julho de 1955 – Os cruzados à vista do Santo Sepulcro não deviam sentir emoção maior do que um magote de garotos da aldeia, que vieram fazer exame, ao descobrirem há pouco do Penedo da Saudade o relvado do campo de futebol, no Estádio Municipal. Só faltou ajoelharem-se dentro do eléctrico.
    Para se entender o texto acima, retirado do Diário VII de Miguel Torga, é preciso estar familiarizado quer com a geografia da cidade de Coimbra quer com o sistema de ensino que imperava àquela data. Nos anos 50, a entrada para o 1º ano dos liceus (hoje 5ª classe) era antecedida de um exame de admissão, que trazia a Coimbra miudagem das aldeias que, nalguns casos, era a primeira vez que andavam de eléctrico, subindo da baixa no 3 e passando no Penedo da Saudade a caminho do Liceu D. João III (hoje Liceu José falcão).
    Foi este mesmo trajecto que resolvi fazer um dia destes, numa romagem a Coimbra. Apontei da Praça da República até aos Arcos do Jardim e segui, a partir daí, o trajecto do antigo 3, Cumeada acima. Ao chegar ao Penedo, parei o carro na meia laranja onde o 3 se quedava uns minutos à espera de se cruzar com o outro 3 que haveria de vir dos Olivais, ao seu encontro. Terá sido algumas dezenas de metros à frente daquele local que os garotos quase ajoelhavam no eléctrico à vista do campo da bola.
    Foi também dali, e não longe da data inscrita no Diário do Torga, que vi o meu primeiro jogo da Académica, encarrapitado no muro que ladeia a rua, o que seria impossível nos dias de hoje, quer pela vegetação que entretanto cresceu quer porque a cobertura das bancadas cortou as vistas aos borlistas.
    Visto de cima, o relvado do Calhabé parecia uma mesa de matraquilhos onde o movimento de uma bola invisível era adivinhado pela movimentação dos jogadores. O entusiasmo dos golos fazia chegar até nós um bruá tremendo, cujo atraso era bem a prova de que o som caminha ao pé-coxinho enquanto a imagem viaja de avião.
    Jogava a Académica contra o Benfica e este haveria de ganhar por uma batelada de 7-3, que me ficou marcada a ferros na memória até aos dias de hoje. Sei agora que foi na época de 1954-55, graças à obra enciclopédica ACADÉMICA – HISTÓRIA DO FUTEBOL (olá João Santana! Obrigado João Mesquita, estejas tu onde estiveres…), época em que o guarda-redes da Briosa era o Ramin, herói dos jogos contra o Sporting mas que me fez chorar de raiva contra o Benfica.
    Mas o tempo passa. O Calhabé já não é mais fora de portas, como o era em 55, e como mais ainda o era no Séc. XVIII, quando ali havia uma taberna famosa ligada à boémia coimbrã, onde um taberneiro chamado Calhabé, cujo nome se estendeu depois ao sítio, vendia o peixe frito e o vinho que animavam as fogueiras de S. João no arrabalde de S. José, juntando estudantes, futricas e tricanas numa noite que só acabava com o raiar do dia.
    Também o tempo do Penedo já se transformou. Dizem que se chama “da Saudade” porque uma lenda conta que D. Pedro ali ia chorar a morte da sua Inês. Seria então um sítio ermo, um local de paz e de silêncio…
    A vista ainda hoje é bonita mas todo o vale é agora de betão. Perdeu-se o bucolismo da paisagem. E é só quando me volto para Sul e estendo os olhos na direcção da Ponte Rainha Santa Isabel, que revivo o cheiro daquele ambiente calmo, onde o olhar se demorava e os namorados se esqueciam do tempo.
    O Penedo da Saudade continua a ser um ícone da cidade e uma recordação de quantos nela estudaram. A prová-lo está a profusão de placas de antigos cursos que ali continuam a fazer as suas romagens, placas essas que, aliás, me parecem de gosto duvidoso, emprestando ao local um certo ar de “cemitério de recordações”.
    Já as antigas lápides, com versos líricos de antanho, me parecem bem enquadradas. Um grupo no Facebook, animado por gente nova, chama a atenção para a necessidade do seu restauro, para que os poemas se possam ler. É sinal de que o Penedo da Saudade continua vivo. E a intervenção, se bem pensada e bem executada, poderá ser positiva. Mas fico dividido. Pessoalmente, gosto mais que as marcas do passado aparentem a idade dos acontecimentos que evocam. Saber envelhecer é uma virtude.
    Zé Veloso

8 comentários:

  1. Um texto muito bem escrito e que me faz lembrar muito de Coimbra. O meu pai nascido e criado em Coimbra conta muito essas historias e aogra que falou nelas, lembro.me perfeitamente do meu pai me contar da goleada que a Briosa levou do Benfica que na altura nem era muito comum.
    Conta.me também o meu pai a final da taça de portugal de 1969 (salvo erro) em que os estudantes entraram no estadio com protestos contra o ensino e o Estado Novo.

    Conheço bem o Penedo da Saudade, lembro.me de o meu pai me la levar desde pequenina...lembro.me que foi o sitio onde levei o meu namorado a primeira vez (ele nunca la tinha estado) e assim tornou-se um sitio especial.

    Em parte concordo com o facto de saber envelhecer, mas tamém é importante mostrar às gerações vindouras o peso da tradição e da história Coimbrã, daí a importancia do restauro, mas sem apagar as marcas que a historia lá deixou.

    Nasci em Coimbra e por diversos motivos tive que me ausentar durante 10 anos...
    Aprendi muito fora de Coimbra, sobretudo aprendi a amar esta cidade, unica!
    Nenhuma tem tanta historia e tantos segredos para nos contar! Se esta cidade falasse, tinha muitas desgraças e amores para contar!

    Tenho 20 anos, estudo em Coimbra com muito orgulho, estou a passar pela melhor altura e pela época que mais nos liga a esta maravilhosa cidade, o ser estudante!

    Amo esta cidade! E nela tenciono fazer a minha vida...pois longe dela ja nao saberia viver!

    desculpe a invasao!

    Cumprimentos,
    Diana Damas

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  2. Parabén pelo agradável texto. Concordo com a sua opinião sobre as lápides: não posso evitar um leve arrepio de nostalgia quando as vejo. Há ali um certo ar de ruína, de tristeza, que bem podia ser evitado, mantendo as placas antigas mas permitindo alguma vida ao local. Afinal, Coimbra continua.

    Cumprimentos,

    Jessi Leal

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  3. Nunca fui um "enamorado" de Coimbra. No entanto vivi nela vários anos (cerca de 10)e sempre gostei da cidade enquanto lá vivi.
    Mas gostar da cidade é uma coisa, sentir a nostalgia do seu passado é outra.
    Comecei por conhecer Coimbra em 1964. Tentei entrar para a Faculdade de Letras mas o "terrível" e Grande Homem de Letras Paulo Quintela cortou-me "as pernas" na prova oral, o que mais tarde eu diria ser o melhor chumbo da minha vida.
    Mudei pois de vida, passei a estudar no Porto e sintomáticamente vim a acabar a licenciatura em engenharia...em Coimbra.
    Coimbra andou sempre pois junto comigo e criei muitos amigos dado lá ter trabalhado.
    Por isso, quando vejo o que escreves sobre Coimbra, eu aprecio, eu gosto...mas não sou um apaixonado do seu passado.
    Que melhor tradução para esta minha apreciação de Coimbra, se for pelo futebol. É que eu nunca fui pela Académica (a não ser quando ela me fosse útil) mas sim pelo União de Coimbra. Pecado mortal este para qualquer Coimbrão de gema.
    Parabens Zé pelo que escreves. E continua.

    Álvaro

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  4. Ricardo Figueiredo08 junho, 2010 15:58

    Boa tarde,Zé Veloso
    O teu blog continua a ser uma tentação para quem é “salatina”, nasceu na rua do Dr. Patacão,na antiga Alta, andou pela Escola da Boavista, brincou no Largo da Feira dos Estudantes, frequentou a Sé Nova, jogou a bola no Largo das Quimicas, andou no eléctrico 1, viu o “Pirata”, o Ricardo Caganeta, o “Bolinhas-Tintim”…o “Pica”, as “Cacaus”, a Laura Turca, o “Cameirão”…. e , por fim, frequentou a nossa UC.
    No Penedo da Saudade, temos também a nossa PEDRA-grelados de 1958-logo à entrada, com os versos do Fernando Veloso que enviarei de seguida, colocada em 2008, com alguns dos teus companheiros Lysos (Augusto, Antero).
    Recordo-o desde os anos 40, em que só as moradias salpicavam toda a área entre o Jardim Escola, Infantaria 12, Av.Infante D.Henrique,Av.Dias da Silva, até aos Olivais. Com o Jardim dos Patos e o Botânico era um local de merenda.
    Também,ali, o busto de João de Deus,o poeta da Cartilha Maternal, o patrono do primeiro Jardim Escola que frequentei dos 4 aos 7 anos, onde os alunos que podiam pagavam para suprir os custos dos menos abonados.
    Instituição que em breve fará 100 anos, 2 de Abril de 2011, a quem muito devo.
    Foi o esforço filantrópico do Orfeão Académico (António Joyce) que possibilitou a obra.Mais tarde, anos 40, outros estudantes teriam "desviado" os bonitos cisnes do nosso lago, o que muito nos desgostou e o lago foi aterrado.

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  5. Ricardo Figueiredo08 junho, 2010 16:22

    Como prometido, o que está gravado na nossa Pedra
    Bodas de Ouro (1958-2008)
    Cursos de Ciências,Engenharias,Ciências Geográficas e Farmácia

    Escuta Penedo,
    Ouve baixinho,
    Não tenhas medo
    Não estás sozinho

    E quando do Além
    Te mirarmos
    Não chores por nós,
    Que não estás abandonado!
    Acena-nos, diz-nos Adeus
    Que havemos de a ti voltar
    Mas sempre para Celebrar!

    Voltaremos para te contar
    Que o Poeta nos ensinou
    Que o sonho comanda a Vida
    Permanece…não findou!
    E a ti diremos, a segredar,
    Que tens toda a razão:
    Saudade rima com idade
    E amor com coração!

    Escuta Penedo,
    Ouve baixinho,
    Não tenhas medo
    Não ficas sozinho!

    DE TODOS NÓS
    F.A.C.Veloso
    Coimbra, Maio de 2008

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  6. Caro Zé Veloso o poema sobre o qual o questionei na página do fb, que penso ser o 1º colocado no Penedo da Saudade, é o seguinte:

    V Ano Jurídico
    (905-906)
    "Se esta velha pedra ouvisse
    O que rimos aos vint'anos
    Ais D'Amor, sonhos, enganos...
    - Talvez que a rir se partisse.

    Mas tivesse olhos e olhasse
    Os espectros que hoje somos,
    Tão mudados do que fomos...
    - Talvez a pedra chorasse.

    23 de Junho de 1931 Carlos Amaro

    Nota - Carlos Amaro de Miranda e Silva,(1879 -1946), Jurista, Dramaturgo e amigo pessoal do nosso grande poeta Camilo Pessanha. As cartas que ambos trocaram ao longo da vida fazem, agora, parte do espólio da Biblioteca Nacional.

    Rosário Bem

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  7. Este poema foi, dentre os milhentos que por lá estão, um dos que sempre mais me impressionou.
    Creio que aquele curso foi o primeiro que se seguiu ao Enterro do Grau.
    Parabéns ao "anónimo" que aqui o colocou.

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    1. Zé, fez-me saudades do meu passeio de uma tarde no Penedo da Saudade, debaixo de um calor tórrido que não esmoreceu a minha vontade de rever os cantinhos todos que não via há mais de 40 anos, desde a minha primeira passagem por lá, com o meu pai e irmãs.
      Recordava-me de uma Coimbra verdejante nas margens do Mondego e, apesar de nunca ter lá vivido, foi essa a primeira sensação que experimentei, lá do alto: o betão tinha invadido o espaço bucólico. Mas a paisagem é sempre de prender a respiração face ao espelho de agua que brilha ao longe, pelo que me sentei para escutar o que fala à nossa volta, no Penedo. Esqueci-me do betão e estive a admirar os recantos, fotografando todas as lápides (se falhou uma foi por acaso). Na realidade, amei decifrar os versos que estavam mais apagados pelo tempo, pelo que passou grande parte da tarde sem eu dar por isso, num colóquio poético com cada uma. Preservá-las sem as alterar, ainda consigo compreender. Mas não lhes retirem a magia da marca do seu tempo!

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