22 abril 2010

ESTUDANTES CONTRA FUTRICAS. UMA ESTÓRIA DE ÍNDIOS E COWBOYS?

Os comentários de Ricardo Figueiredo aqui no blogue têm-nos trazido vivências da velha Alta desaparecida e referências aos seus antigos habitantes autóctones, os Salatinas, os quais ele nos conta que mantinham com os estudantes uma boa relação. Foi para mim uma surpresa a existência de Salatinas, Chibatas e outros mais, já que na bibliografia dominante – escrita por antigos estudantes – não se fazem distinções entre os futricas, sendo todos eles apresentados por igual como inimigos figadais dos estudantes.
Mas é curioso, e confirma os comentários de Ricardo Figueiredo, que as grandes zaragatas entre estudantes e futricas são quase sempre descritas na Baixa, não acontecendo o mesmo na Alta, salvo as costumadas escaramuças que havia no rescaldo das fogueiras, quando os calores da dança incendiavam ciúmes e o verniz estalava entre uns e outros.
Mas o relacionamento conflituoso entre estudantes e futricas é uma estória cabeluda, como as guerras entre índios e cowboys. Uma estória em que uns (os índios, ou melhor, os futricas) habitavam um território que outros (os cowboys, ou melhor, os estudantes) viriam um dia a ocupar. Afinal, uma estória que, na origem, é semelhante a tantas outras de que a História está cheia, uma espécie de conflito étnico, a provar quão difícil é a co-existência pacífica entre ocupantes e ocupados, entre dominadores e dominados, tanto nos tempos idos como nos dias de hoje.
Voltando aos índios e cowboys, as estórias aos quadrinhos do meu tempo de garoto sempre me mostraram um intrépido branco – Bufallo Bill, Davy Crockett…– que, invariavelmente, se batia contra um bando de pérfidos peles vermelhas, liderados por um qualquer Boi Sentado. Posta desta maneira, a estória era sempre fácil de entender: de um lado os bons, do outro lado os maus.
Lembro-me de que um dia, eram os meus miúdos pequenos, me chamaram a correr ao televisor, numa manhã de domingo:
– Pai! Não estamos a entender nada desta fita. Quem são os bons?
– Depende do ponto de vista, meus filhos, as coisas nem sempre são assim tão simples. Tenho de vos contar a história do princípio...
Pois é. Estavam os habitantes de Coimbra postos em sossego, qual D. Inês no remanso dos seus doces fruitos, quando D. Diniz lhes resolveu mandar de presente uma horda desordeira que já em Lisboa se tinha distinguido por brigar com os habitantes do burgo. E, não contente com isso, toma os estudantes debaixo da régia protecção, manda que nenhum morador de Coimbra lhes faça agravo, determina que não possam ser julgados pelo foro comum nem ficar presos na cadeia onde os demais habitantes são encarcerados, ordena que uma comissão paritária avalie da justeza das rendas a cobrar pelo aluguer dos aposentos... e mais uma catrefa de regalias que me dispenso de enumerar. Ao invés, não consta que tenha dado, aos então habitantes da cidade, direitos simétricos que os defendessem dos eventuais abusos dos estudantes.
Se a tudo isto juntarmos os desmandos próprios da juventude em bando, fora de casa, os calotes por pagar em épocas de mesada curta ou de noitada longa, a boa vida de alguns que se podiam dar ao luxo de chumbar numa cadeira para ter um ano a mais de pândega e a jactância de quem se prepara para vir a ser a inteligência do reino, teremos o quadro quase pintado.
E digo quase, porque faltam ainda duas pinceladas. Antes de mais, o desprezo com que o estudante, alcandorado na Alta da cidade, tratava o povo que habitava a Baixa, chamando-lhe futrica, palavra que fede a metros de distância e que se admite que derive de fitricafilho de tricana – que o mesmo seria dizer "filho da mãe"…
E, por último – cherchez la femme! –, contam os livros que as tricanas, para além de se permitirem certas liberdades com os estudantes, sempre torciam pelos de fora, aquando dos arraiais de pancadaria com os da casa!
Torceriam? Provavelmente sim, já que é histórica e compreensível a atracção da mulher de Coimbra pela estudantagem jovem, irreverente, bem-falante e galanteadora, passaporte-quimera para uma vida melhor. Mas haverá que dar algum desconto, porque as crónicas da época foram escritas por quem sabia escrever, ou seja, pelos os ocupantes.
O conflito durou séculos. Continuava vivo no séc. XIX, altura em que, como muito bem retrata Eça de Queiroz no Conde de Abranhos, futricas e estudantes eram duas classes imiscíveis.
Mas chegou um belo dia o séc. XX e, com ele, o futebol. E o conflito encontrou um outro tabuleiro onde dissipar as suas tensões. A pancadaria mudou-se então das tabernas e ruelas da Baixa para o peão da Arregaça e a bancada do Santa Cruz, alimentando uma rivalidade Académica - União que durou até aos anos 70. E a ciumeira deixou de ser exclusiva da sorte aos amores para passar a abarcar também a sorte ao jogo.
Depois de um quadro destes, custa-me explicar de que lado estariam os bons e os maus neste conflito, como aliás em muitos outros que grassam por esse mundo fora. Dependerá sempre do ponto de vista. Como diria o outro: – É a vida...
Zé Veloso

20 comentários:

  1. Pouco sei destes tempos. A minha vivência académica foi completamente diferente, mais a sul, e 30 anos depois! E com uma enorme diferença, feita na minha terra, na terra onde já morava.
    Por isto tudo, não tenho facilidade em fazer comentários.
    Mas, vou lendo e aprendendo!
    Um deste dias desafio o autor :-) a um passeio interpretado por Coimbra. Terá, tenho a certeza, um encanto acrescido!
    Ah...e vou roubando umas ideias para o blog que dinamizo!

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  2. Ricardo Figueiredo25 abril, 2010 22:47

    Boa tarde, meu caro amigo Veloso
    Começo com um abraço para, de seguida, questionar:
    És o pai da hipótese da origem da palavra futrica? Filho de tricana ?
    Outra interrogação, como a origem da palavra Salatina.E Pirata,se o nome próprio era Joaquim… e era bom homem?
    Não sou versado na investigação,nas fontes, nos temas académicos de Coimbra. Apenas, vou lendo e colecionando o que vai aparecendo.
    Sobre o passado, mais recuado,temos recapitulações e resumos do que já foi escrito, por diversos autores , contemporâneos de muitos dos factos hoje retomados.Há, hoje, excelentes e muito completas edições sobre a vida estudantil coimbrã que nos contam os “costumes de antanho” e,também, o seu contraditório.Há estudos sociológicos sérios sobre a vida estudantil.
    (Academia de Coimbra-1880-1926-Manuel Alberto Carvalho Prata) e (A Academia de Coimbra 1537-1990-Alberto Sousa Lamy)
    Quanto a futricas, pelo dicionário, Candido de Figueiredo é“a designação escolar de quem não é estudante”Para mim, a mais consentânea com a que vem descrita nos livros que contam as estórias da Universidade e estudantes de Coimbra.Distinguia os que eram dos que não eram estudantes, não a sua origem genética. Mas, a de “homem ordinário,egoísta, de sentimentos baixos” não terá sido (?) a intenção dos nossos antepassados,mais próximos, colegiais de Coimbra. Pois, neste apodo, poderíamos também incluir os próprios estudantes, “salatinas”, “chibatas”, e “filhotes” que também os houve e haverá, com tais atributos.
    Mesmo nos anos 40, como descreve o meu contemporâneo escolar/primária,salatina, cantor de fado de Coimbra, José Henrique Dias “A outra face do Espelho –A Alta morreu e os meus colegas de escola, tantos deles, foram para o Bairro de Celas.Era longe.Perdemo-nos.Eu subia ao longo da Sereia para o liceu, alguns desciam à mesma hora, a caminho das suas lojas ou das suas oficinas.Aprendizes de marçano ou das mais variadas artes.Gente nobre.Pessoas notáveis.Mas a Coimbra de então fortificava distancias entre os que estudavam e os que trabalhavam.Éramos uns tontos.Quem me dera encontrá-los para lhes pedir perdão pela estúpida sobranceria da capa e batina”

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  3. Ricardo Figueiredo25 abril, 2010 23:00

    Encontrámo-nos…nos almoços dos Salatinas. Alguns,muito poucos, 2 ou 3, dos desterrados para Celas, vieram a usar capa e batina.Eram futricas..são “doutores”.
    Filhos de tricanas, alguns foram futricas e, outros,poucos, estudantes. Destes, uns “ gaiulos ou salatinas”, por nascidos na Alta e também “filhotes”, por nados em Coimbra.Outros, “vacões”,os habitantes dos arredores de Coimbra (Ançã, está de fora…)
    Filhos de pai incógnito, como se dizia na época, anos 40, não seria exclusivo da Alta nem dos futricas, da Alta e da Baixa. Era a anotação que ouvíamos, quando a miudagem se inscrevia, na Escola da Boavista, Rua de S.Salvador, eles, acompanhados pela mãe. Marcava, muito, esses nossos amigos da rua e, até, era anátema. E eles não tinham culpa..nem a mãe.
    Se vires a mulher perdida/Não a trates com desdém/Porque a pobre, coitadinha/Já foi honrada também.
    Que nunca ninguém afronte/Uma mulher quando cai/Nasce água limpa na fonte/Quem a suja é quem lá vai.
    Como relata ao neto, posteriormente, o Dr. Diamantino Calisto, aluno de Direito, nos anos de 1900-05:”Na Alta, quando do recenseamento militar, verificava-se que grande número de mancebos era só filho da mãe”.Não verifiquei os censos, não conheço a realidade coetânea, passado o Arco de Almedina, “que limita a Alta da Baixa e, consequentemente, o campo de estudantes e futricas”
    Borges de Figueiredo, quando descreve a visita,1886, “ à sua terra, no intuito de a tornar bem conhecida”, anota que “futricas são designados os que não são estudantes”.
    Quanto aos conflitos entre estudantes e futricas já virão de longe, como se lê, numa “carta de agravos de 30 de Maio de 1361”. Mas, nem sempre, os futricas estiveram contra os estudantes. “Os operários distribuíram um protesto contra a ordem que manda encerrar a Universidade, declarando colocarem-se com todo o entusiasmo ao lado de todos os académicos”, in Conimbricense- Revolta do Grelo-1903
    Com os futricas da Alta, só pontualmente, brigas pessoais, pelo menos na minha recordação. Morei, alguns anos, ao lado da Republica Baco, Rua do Forno,vindo da Rua dos Anjos e,depois, da Rua de S.João.
    O Largo do Castelo, Largo da Feira, Largo do Borralho, Rua Larga eram pontos de concentração estudantil e pontos de encontro da miudagem da Alta que os observava.
    Os “filhotes”? Boa gentes/Inimigos d’estudante?/Qual história!Seus repentes,/Mas amigos como dantes.
    Em Dezembro, 1951, Caro Veloso, lembras-te da “cegada” que foi, na Baixa, durante dias e noites?Já andavas pelo Liceu?
    De miúdo, assisti a algumas zaragatas, sem saber como começaram. Vendo, como acabaram –1ª. Esquadra, Largo da Feira, Edificio do Governo Civil-Chefe Silva,Chefe Caneiro, Cap.Sousa Vieira(?); nas romarias de St. António, autenticas batalhas campais, soldados/ronda, depois soldados, futricas e estudantes/policia,barracas e merendas e” tudo ao mólho”.Aproveita…rouba o boneco..Maria, olha a bilha…

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  4. Caro Ricardo;
    Obrigado pelos teus comentários, tão ricos de pormenores e sentimento, próprios de quem conheceu a velha Alta por dentro. Eu não tenho essa experiência: nasci já as demolições se tinham iniciado há 7 meses…
    Se sou o pai da hipótese futrica = fitrica = filho de tricana? Não. A informação veio do Paixão e Melo, que a leu num artigo da revista “Ilustração Portuguesa”, publicação ainda do tempo da Monarquia. Mas não haverá certezas. Acho essa teoria muito atraente – é o cão a morder o polícia! – mas o mais provável é que, sendo a palavra futrica sinónimo de “homem desprezível, vil, de sentimentos baixos”, ela fosse um anátema lançado pelos estudantes de antanho aos seus inimigos figadais. Resta saber onde estará o ovo e onde estará a galinha…
    Porquê chamar Joaquim Pirata a Joaquim Inácio, um homem tão bom? Seria por ser mestre em roubar a freguesia ao Jesuíta? Especulação pura… mas lá que o homem era astuto, era mesmo. Agarrava o cliente e não mais o largava!
    Se me lembro da pancadaria de 1951? Não estava ainda em Coimbra. Estava a 12 km da Estação Velha, o que na altura era muita distância.
    Finalmente, voltando aos antónimos estudante-futrica e alta-baixa, o antropólogo António Rodrigues Lopes escreve no livro “Sociedade Tradicional Académica Coimbrã” que, na sequência da ida definitiva da Universidade para Coimbra, se desenvolveram duas sociedades com identidades próprias – a Sociedade Académica e a Sociedade Futrica – “que partilharam o espaço da cidade: a Alta para a primeira e a Baixa para segunda”.
    De tudo aquilo que até hoje li, esta parece-me ser uma boa bissectriz. Por exemplo, em relação às tricanas, são referidas algumas vezes as “tricanas da Alta”, o que quer dizer que as tricanas “tout cour”, que pertenciam à Sociedade Futrica, habitavam a Baixa.
    Meu caro Ricardo, parece ser de concluir que os “salatinas” (futricas da Alta ou não-estudantes da Alta) se davam bem com a Sociedade Académica porque, ao fim de quatro séculos de convivência porta-a-porta com a Sociedade Académica, se foram com ela aculturando.

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  5. Eu lembro-me perfeitamente do que o Ricardo designa por "cegada"; aquela batalha campal que demorou vários dias.
    Deve ter sido talvez por 1953, pois eu já morava por cima do "Piolho" e da Cesaltina dos matraquilhos (salvo seja!).
    Era da janela do meu quarto que assistia à passagem da GNR, a galope, para a refrega.
    Aquilo começava, se a memória não falha, pelas seis da tarde, junto ao Café Santa Cruz, na altura quartel general dos futricas.
    Destes passava para a polícia e quando esta ficava cansada vinha a GNR, a cavalo.
    Aqui, piava fino e a malta recuava estrategicamente para a Alta.
    Uns baldes de água com sabão, naquelas ruelas calcetadas, faziam tombar cavalos e cavaleiros e a malta podia ir jantar.
    Aquela brincadeira acabou com a chegada da polícia de choque do Porto, que era uma cambada de brutos.
    Também me lembro de ter sido reprovada a acção de um tipo da malta que cravou um bruto de um prego na moca que levava para o "ensaio" e que, assim o cravou na cabeça de um oficial da GNR que, por sinal, era o pai do Nana, na altura "ponta direita" da Académica.
    O homem esteve uma data de dias entre este mundo e o outro.

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  6. Ricardo Figueiredo02 maio, 2010 18:37

    Caro amigo
    Grato pela tua atitude, aceitando uma tão larga e até, abusiva,ocupação do teu espaço.Valeu a pena, pois a tua análise e conclusões, são muito plausíveis.
    Por certo, nos primórdios, os futricas, passado o Arco de Almedina, seriam os maus da fita. Os estudantes, os previligiados e, futuramente,a classe dirigente, os bons da fita.Os futricas da Alta, vivendo “à custa” e por meio dos estudantes(barbeiros,sapateiros,alfaiates, penhoristas,etc,) e assumindo, por vezes, as suas dores e problemas, eram os aliados dos bons. Na Alta, uma área tão circunscrita, a classe do Sr.Dr. era reconhecida e reverenciada pelos,salatinas, futricas e tricanas. Um jogo de interesses e, por vezes, de afectos sinceros e definitivos ou ocasionais e passageiros..
    Sim,tricanas haveria as da Alta, as da Baixa e as que vinham do campo.Estas, muito vistosas, no Mercado, no Dia da Espiga,Fogueiras de S.João
    O Joaquim “O Pirata”, meu vizinho na esquina da Rua de S.João, era um bom homem.Conheci-o , já viúvo, com um filho. Ter-me-á dado, alguma vez, um queque.Tinha a clientela, estudantil que não pagava atempadamente e ela própria anotava a divida, no “livro dos cães” (vi-o a ser fotografado nas reuniões de curso com uns tantos livros debaixo dos braços), pois ele era, ao que se sabe, iletrado.E depois, mais tarde, o cliente procurava a folha(s), somava e pagava.Por vezes, com bónus, de sua iniciativa. E sobreviveu até morrer.Entretanto, lembro-me que se casou(?) juntou com uma vendedora de hortaliças. O café, depois da Rua dos Estudos passou para os Arcos, já com o filho, e não era o mesmo café ou, então, os estudantes eram outros.A Alta morrera…

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  7. Ricardo Figueiredo02 maio, 2010 19:18

    Tomo a liberdade de dialogar com o teu amigo Pedro Costa, para alvitrar que, antes ou em simultâneo com o v/ passeio, por Coimbra, consultem Borges de Figueiredo, Coimbra Antiga e Moderna.É um guia antigo, em que ele mostra como se fosse acompanhado, com vantagem de mostrar, ao tempo, o que existia e o que fora destruido, mais evidente nos tempo actuais.

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  8. Ricardo Figueiredo02 maio, 2010 19:22

    Boas vindas, Arménio
    Vamos a acompanhar o Veloso.Também terás as tuas vivencias.Não sei se o ano foi 1953 ou 1951.Os factos, com mais ou menos "molho"foram como relatas.Até o pormenor do pai do Nana..Parecia guerra civil.Abraço

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  9. Caros:
    Estive a refazer contas e a rever leituras.
    A tal "guerra civil" foi, efectivamente, em 1951.

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  10. Vivendo e aprendendo .... Nao fazia ideia da existência destas curiosas "personagens" da sociedade coimbrã.
    Estas "guerras civis" lembram-me o conflito entre classes - ricos versus arraia-miúda -
    Desconhece-se de que lado estava a razão, ou seja, quem eram realmente os "bons" e os "maus".
    É que, nem os Estudantes podiam com os Futricas, nem estes com os Estudantes. E isso acontecia, segundo consegui perceber, por duas razões: Primeira: a alguma inveja da condição de Estudante, por parte dos Futricas, e à convicção de uma superioridade deficientemente assumida, por parte dos Estudantes. Segunda razão: Ciúme. Os estudantes "roubavam" o coração das suas mulheres, as belas tricanas..
    De acordo com crónicas publicadas na época, os Futricas estavam proibidos de entrar nas "Festas dos Estudantes", sob pena de serem severamente castigados.
    O castigo que esperava os transgressores intrometidos era a agressão à mocada ou ainda, o famoso banho no Chafariz do Toural a que tantas vezes foram os Futricas sujeitos.
    “(...)
    Futricas, ouvi-me, que eu por aqui não fico,
    Porei a vossa tola em forma de penico.
    Se eu ouço um “ai”, se levantais o nariz,
    Acabareis molhados no velho chafariz!
    (...)”

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  11. Caro Arménio,
    Tenho seguido silencioso os teus comentários, sempre ricos e divertidos, dado que nada tenho a acrescentar-lhes. Mas lendo o que escreveste em 29 de Abril não posso calar o quanto ri com a descrição que fazes da pancadaria estudantes – futricas – polícia – GNR –
    polícia de choque do Porto.
    Destaco o facto de Polícia e GNR se revezarem na pancadaria. Grande pancadaria terá sido, já que por essa altura e antes disso era frequente ser uma a bater na estudantada e a outra a ter os favores da malta para, anos volvidos e a propósito de uma qualquer outra rixa, os papéis do “bom polícia” e do “mau polícia” se inverterem.
    Sobre a água ensaboada, contava-me o meu pai que, no tempo dele, se ensaboava a calçada para evitar que as cavalgaduras entrassem pelo Arco de Almedina acima.

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  12. Rosa Brava,
    Estou espantado! Alguém que “não entendia nada destas coisas” e que vem a jogo desta maneira!
    Essa do Chafariz do Toural – que nunca vi referido – onde fica? É que eu não sei mesmo…
    Mas as gravuras antigas mostram um chafariz no centro da Praça Velha (assim chamada a partir do momento em que se criou o mercado D. Pedro V), hoje Praça do Comércio. Em tempos idos corriam-se touros na Praça Velha por altura das festas religiosas. Seria isso o Toural?
    Como na Praça Velha se situava o centro cívico da cidade pós-medieval, no coração da cidade futrica, tudo isto cola com as descrições de pancadaria na Baixa, quando os estudantes, fugindo à vigilância da Polícia Académica iam para a borga e para a má-vida.

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  13. Ricardo Figueiredo18 maio, 2010 22:24

    Caro Zé Veloso e Rosa Brava
    Há uma estudo,que possuo, haverá outros (?), sobre “Fontes e chafarizes de Coimbra e suas imediações,General F.A…Martins de Carvalho, 1942” Não refere o citado Chafariz do Toural.Na toponímia coimbrã, com esse apelido, não encontro Rua ou Largo.Outras fontes ou chafarizes, mais próximo, só os do terreiro de Sansão, construídos nos anos de 1400.
    Quanto à praça de S.Bartolomeu (Praça Velha), em Coimbra, na referida obra,”já estiveram quatro chafarizes, em épocas diversas”,o primeiro, nos anos de 1570-72.Nesta praça, haveria mais presença e actividade dos estudantes, nos dias que lhe eram, semanalmente, destinados,até à criação da feira do Largo da Feira (antes, praça nova de Almedina).Referem os entendidos que foi em 1540 que D. João III ordenou que ali se fizesse a” feira franca dos estudantes e oficiais da Universidade”.Também tinha uma fonte que conheci, pois vivi perto, demolida com a Alta.Nesse Largo, dentro de um circulo feito com as capas enroladas, vi “tourear” caloiros.Não encontro referências "praxisticas" aos mergulhos dos futricas nesse tanque (alguns dos miúdos, da minha geração, da zona, o faziam…)
    No comentário da Rosa Brava haverá alguma confusão com as Festas Nicolinas, em Guimarães (Largo do Toural), cuja similitude só estará na apropriação do termo “futrica”.

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  14. Dei uma volta pelas leituras coimbrãs e, acerca das batalhas com os futricas, encontrei a descrição de uma, sucedida um século antes da chamada "revolta das mamas" de 1951.
    É descrita em "Memórias do Mata-Carochas", um estudante brasileiro de nome Antão de Vasconcelos que estudou em Coimbra por volta de 1860.
    Ficou denominada "tomarada", aparecendo também designada por "entrudada", pelas razões descritas no texto.
    Este é um pouco extenso, mas não resisto a trancrevê-lo na íntegra:

    " Foi pelo Carnaval. Em Coimbra este divertimento é de uma brutalidade inconcebível durante as tardes, embora à noite sejam brilhantes os bailes de máscaras e haja coisas de muito espírito.Jogava-se então o entrudo com limões de cera que partiam vidros, cabeças e cegavam; com laranjas verdes, ovos, vermelhão, fundo de panela e pó de sapateiro.
    Estúpido, era entretanto engraçado.Era de morrer a rir, borrar a cara a um súcio com vermelhão e vê-lo todo desnaturado a berrar e a descompor.
    Na entrudada, um estudante atirou um ovo contra uma futriquinha que estava à janela com o pai. O futrica deu uma chula descompostura no estudante e disse-lhe: Se é capaz atire em mim! O rapaz avançou para atirar o ovo, quando recebeu, à traição, tremenda punhalada no coração que o prostou instantaneamente morto.
    Conhecido o desastre, um magote de estudantes dirigiu-se ao local para transportar o cadáver e fazer-lhe o enterro. Foi assaltado à falsa-fé, por dezenas ce futricas, esbordoando-os sem piedade, desarmados como estavam, e o mesmo fazendo ao cadáver.Os estudantes tiveram que fugir perseguidos, todos eles feridos ou contusos.
    Estava declarada a guerra. Uniu-se a Academia, armou-se e avançou sobre a cidade baixa em busca do cadáver.
    Os futricas, de seu lado, armaram-se e vieram ao encontro dos estudantes que eram capitaneados pelo José Lobo, do Porto, o bravo dos bravos. O choque aos gritos de "Avante Coimbra!" foi medonho e logo aí pereceram alguns futricas e ficaram alguns mortal e outros gravemente feridos, enmtre os estudantes. Foi, enfim, reivindicado o cadáver à custa de muito sangue e feito o enterro. A Academia jurou vingá-lo.
    Avisado o Governo da luta fraticida que se travou em Coimbra, mandou para ali tropa em profusão com ordem de sufocá-la. É fácil de compreender que os futricas confraternizaram com a milícia contra a Universidade.
    Nessas condições, a Academia concentrou-se no seu bairro, o Alto; aguardando o ataque ou a invasão, que se não fez esperar.
    O comando militar, que então se limitava à baixa, começou a alargar as asas e estendeu as patrulhas por todo o Bairro Alto, onde só reinava o sossego, com ordem de prender fosse quem fosse, que transitasse pelas ruas depois das nove horas.
    A Academia armou-se de toda a prudência e aguardou.
    Em uma noite foi preso pela patrulha um estudante que se recolhia às horas do costume.
    O José Lobo, já então nomeado Capitão General da Academia, popr acaso passava na ocasião, tomou o companheiro e correu a patrulha a cacete.
    Novas patrulhas reforçadas em pessoal e número localizaram-se no Bairro Alto e os dictérios, chufas e coisinhas foram tomando corpo, até que a Academia resolveu libertar-se e daí em diante os piquetes e patrulhas eram corridos à pedrada, a cacete, até às divisas da Baixa.

    Já estou cansado e a máquina não deixa continuar! Continua no Próximo nùmero!

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  15. Continuando...
    Nesse tempo tinha chegado a Coimbra uma ala da Guarda Municipal de Lisboa, com ordens severas.
    As patrulhas agarraram dois estudantes que deixaram esbordoar por futricas e conduziram-nos presos para o Aljube, prisão pública.A Academia ergueu-se em peso e avançou para a Baixa, a fim de trazer os rapazes, o que conseguiu; voltava a seus arraiais quando foi de surpresa atacada na Praça de S. Bartolomeu por futricas e um corpo de soldados. Travou-se medonho combate em que os soldados e futricas, vencidos, tiveram que abandonar o campo de batalha.
    Nesse momento rompe fogo na rua da Calçada; o José Lobo corre da Praça de S. Bartolomeu para dirigir os rapazes no combate da Calçada e subia à pressa as escadinhas que ligam um ponto ao outro, quando foi fuzilado, pelas costas, por um piquete da Municipal que vinha em auxílio
    dos já derrotados. Atravessou ainda a rua e caiu morto à porta de Abílo ourives, trespassado por oito balas de fuzil!
    Assim se finou, sucumbindo ainda à traição, esse vulto Homérico, herói de legenda, aos 22 anos, intemerato até à loucura. De cacete em punho, embriagava-se com o cheiro da pólvora e rompia contra a tropa, pelo meio das balas e das descargas, abrindo caminho através das suas filas, a manobrar a clava esmagadora, deixando por atestados da sua passagem os que por terra se estorciam!
    Fazia lembrar o Gardingo na batalha do Chrisso contra os Mouros.
    Para a Academia o choque foi brutal, a perda irreparável.
    Sem chefe, hostilizada agora abertamente pelos elementos contrários reunidos, tropa e futricas, tomou uma decisão digna dela e para sua eterna glória, diga-se: não houve um divergente: foi em massa,em peso!
    Arranjaram convenientemente uma pequenina peça que estava no castelo, de forma a dar fogo.
    Pela calada da noite saquearam as casas de armas que, reunidas a algumas tomadas à tropa, armaram cerca de 1500 estudantes.
    Saquearam das casas de negócio todas as carapuças existentes e logo organizaram 3 batalhões, que se distinguiam pelas cores delas: Brancas, azuis e encarnadas.
    Assim uniformizados e municiados, à meia noite em ponto, deitaram fogo aos quatro cantos de Coimbra. Enquanto a população e a tropa acudiam ao incêndio, os académicos desfilaram silenciosamente pela ponte e seguiram para Lisboa.
    Avisado, o Governo destacou, a marchas forçadas, infantaria e cavalaria de lanceiros, com ordem de barrar-lhes o caminho e fazê-los voltar ou dispersá-los.
    Estavam acampados em Tomar, razão porque esta jornada tomou esse nome e chamou-se Tomarada, quando foi avistada a tropa, que acampou à distância de dois tiros.
    O Coronel Comandante, cujo nome se me varreu da memória, mandou um parlamentar pedir uma conferência ao chefe académico; deu-lhe ciência das ordens que trazia e das quais o intimava, tornando-o responsável pelas consequências, visto que, pela madrugada, avançaria, varrendo o que encontrassa pela frente.
    Os rapazes prepararam~se durante a noite, tomando posições boas, apoiando-se nas casas de Tomar e estenderam linha de batalha por dentro dos pinhais, protegendo-se assim contra a cavalaria.
    Vai continuar...

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  16. Continuando...

    Às 7 da manhã a tropa avançou em ordem de marcha e veio dar em cheio sobre a linha académica, com a sua artilharia assestada, enfiando a estrada.
    Tocaram cornetas, rufaram os tambores e a tropa fez um movimento ofensivo contra a Academia; esta ficou firme, esperando que diminuisse a distância, visto que suas armas eram de pequeno alcance e carregadas a chumbo, além de não disporem de munição em abundância, principalmente para a artilharia que era carregada com cabeças de pregos e pedaços de chumbo.
    O humanitário coronel, não querendo assumir a responsabilidade de um ataque, em que teria de dizimar, por centenas, aqueles rapazes cheios de vida e de brio, as esperanças da Pátria, acampou de novo e comunicou ao Ministro da Guerra a situação em que se achava, declarando-lhe que, em caso de ter de romper as hostilidades, atacando as linhas académicas, o mandasse fazer por outrem, pois ele não o faria, ainda que tivesse de perder os seus galões e o seu posto.
    Reunido o Conselho de Estado, ou o Gabinete, pouco importa, a Rainha opôs-se tenazmente e foi então ordenado à tropa que batesse em retirada.
    A tropa voltou, seguida pela Academia e assim entraram em Lisboa, onde os rapazes foram aboletados por conta do Governo e chamaram a isto: Rendição do exército português e tomada de Lisboa.
    Como é soberbo!
    Os três batalhões académicos foram encorporados fazer sua reclamação à Soberana, destacando uma comissão que pediu a mudança da Universidade para o palácio de Mafra.
    Sua Magestade prometeu obter isso do Parlamento e veio à janela receber os calorosos vivas, com que há muito a saudavam os académicos.
    Passaram em continência sob as janelas onde se achava a Soberana que, mais uma vez teve ocasião de julgar, de ajuizar dos heróis de Setúbal, pelo garbo e bravura dos sucessores.
    Esta tragédia sanguinolenta, que ceifou tantas vidas preciosas e em que tanto sangue se derramou, foi em 1853, penso eu; não é do meu tempo mas, posso garantir sua veracidade pela uniformidade das narrações que me foram feitas.
    Quando eu vinha de Lisboa para Coimbra, foi meu companheiro de viagem o Dr. Damásio (o grande Damásio) de que fala Trindade Coelho e mostrou-me em Tomar, estação de Mala Posta, o lugar onde os rapazes haviam acampado; mais tarde, em Coimbra, mostraram-me o corcunda serigueiro que na entrudada levou 11 punhaladas na muchila e não morreu, tendo sido ele um dos maiores algozes contra a Academia de então.
    Pena é que outrem, mais hábil, mais abalizado, não tenha escrito a epopeia desta jornada gigante, prova segura de que o sangue dos heróis de Portugal não degenerou, não arrefeceu nas veias da sua descendência.
    Quem conhecer esta parte da gloriosa história da Universidade de Coimbra, jamais enfrentará uma capa e batina sem se desbarretar respeitosamente ante o símbolo da União e do Brio."

    Pronto! Acabei!

    Nota: Aquela referência aos "heróis de Setúbal" reporta-se aos elementos da Academia de Coimbra que aí se bateram contra os miguelistas, integrados, portanto, nas hostes da Rainha.

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  17. Veloso:
    Até parece que me estou a apropriar da loja!
    Agora é só para acrescentar que em 2004 foi editada, pela C.M. Coimbra, um trabalho da autoria de José Maria de Oliveira Lemos que se intitula "Fontes e Chafarizes de Coimbra".
    Não se encontra lá, efectivamente, referência ao indicado por Rosa Brava.
    E, já agora, a antiga rua da Calçada é a actual
    Ferreira Borges.

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  18. Fiquei positivamente assombrado com o que acabo de ler,tanto do autor do blogue,como dos vários comentadores.Mas isto é,verdadeiramente,a História de Coimbra!Eu,futrica,estudante da Brotero,temporáriamente a morar na Corpo de Deus desde o final de 1949,até meados de 1950,vivi os episódios aqui retratados.Ia calmamente a passar em frente do Santa Cruz,a caminho das aulas e fui apanhado no meio da pancadaria. Levei uma bastonada de um PSP com aqueles bastões que pareciam mangueiras.O problema tinha começado anteriormente,quando um jogador da Académica,(Curado?)pegou uma jovem(empregada de balcão numa loja do Largo de Sansão),no Arco de Almedina e,sob a capa,a abraçou e beijou.Os ânimos,sempre exaltados quando se tratava de questões entre o "Ónião"e a "Briosa",tiveram,nesse incidente,a razão para mais uma cena de porrada.Quanto ao tal episódio referido,quando os habitantes das calçadas,nomeadamente da Corpo de Deus,lançaram água com sabão para a rua,deu-se porque um grupo numeroso de cidadãos percorreu,desde a Portagem,até à Sofia,em Marcha Silênciosa,protestando,creio,contra o Governo.Da janela de minha casa,vi os cavalos da GNR,entretanto requisitada,aos tombos pela rua abaixo.A cena provocou naturalmente gargalhadas e os policias apontaram pistolas às janelas.Esta era a Coimbra desse tempo,tão bem retratada por Zé Veloso e seus distintos omentadores(evidentemente,excluindo-me).Cândido Pereira

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  19. O "Mata-Carochas" faz relato pormenorizado (indirecto) do ocorrido em 1853, em que até a tropa teve de intervir numa verdadeira batalha, com a academia de um lado e futricas do outro, usando armas de fogo e canhões.
    Tudo despoletado pro incidentes durante o Carnaval, foram várias mortes e episódios que demonstram o grau de violência que existia na altura.

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    1. Peço imensa desculpa por apenas hoje ter publicado este comentário mas acontece que não dei pelo alerta da sua entrada.
      Zé Veloso

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